quinta-feira, 9 de setembro de 2010

MERGULHANDO EM ÁGUAS MAIS PROFUNDAS

Alexandre Aragão

O momento das eleições é sempre uma etapa fundamental na vida democrática de um país no qual o seu povo soberano tem a possibilidade do exercício de uma nova autorização a ser concedida a representantes, que em seu nome exercerão o poder político na condução dos negócios públicos.
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Logicamente a soberania popular não se reduz apenas ao ato de autorizar cidadãos e cidadãs a exercerem o poder. Votar é apenas uma etapa do exercício soberano. Faz parte do estatuto soberano acompanhar, controlar e participar do poder público para que o exercício da democracia seja efetivo. Portanto, a democracia não constitui um mero acidente ou uma simples obra de engenharia institucional como muitos querem reduzi-la ao formalismo do voto. A democracia constitui uma nova gramática social, uma forma sócio-histórica de construir e organizar a vida em comum que não é determinada por quaisquer tipos de leis naturais ou apenas pelo procedimentalismo de uma eleição: requer a participação e a inovação das ações dos cidadãos organizados. Consequentemente, em seu dinamismo próprio, a democracia implica certas rupturas com tradições estabelecidas, na tentativa de instituir novas concepções e determinações capazes de atender as necessidades atuais de um povo ou de uma parcela deste.
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Dizendo de outra forma, sem uma larga participação dos cidadãos na vida política até mesmo as mais bem projetadas instituições cairão nas mãos daqueles que buscam dominar e impor sua vontade privada através do aparelho de Estado, seja por sede de poder, seja por razões de interesse econômico. A garantia da liberdade e da justiça social exige a participação ativa dos cidadãos e cidadãs organizados da sociedade civil na condução dos negócios públicos, seja como intervenção direta nas ações políticas ou como interlocução social que determina, orienta e controla a ação dos representantes.
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As eleições de 2010 vêm possibilitar, mais uma vez, a reflexão em torno do caminho traçado pelo nosso povo, a partir de 2002, quando colocou um nordestino torneiro mecânico como Presidente da República Federativa do Brasil. Nos últimos 8 anos dos seus dois mandatos presidenciais assistimos a uma ruptura com o rumo que vinha sendo adotado pelos seus antecessores que seguiam a cartilha neoliberal do consenso de Washington cujo fundamento central era a redução do Estado a zero. De fato, os presidentes anteriores, ao mesmo tempo em que abriam o país para a economia globalizada, trataram de promover o desmonte do Estado brasileiro, deixando nas mãos do Mercado a única possibilidade de distribuição de renda e reparo da injustiça estrutural – econômica e social – vigente em nosso país desde que foi fundado.
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Mas o neoliberalismo não é um estado qualquer. É exatamente o estado de guerra onde vence o mais forte. A competividade neoliberal, nas palavras do professor Milton Santos, tem a guerra como norma: há, a todo custo, que vencer o outro, para tomar o seu lugar. Esta guerra como norma justifica toda forma de apelo à força, utilizado para dirimir os conflitos dessa “razão competitiva”. Ela se funda na invenção de novas armas de luta, num exercício em que a única regra é a conquista da melhor posição. É uma espécie de guerra onde vale tudo e, desse modo, sua prática provoca um afrouxamento dos valores morais e um convite ao exercício da violência. Para exercer a competitividade em estado puro e obter o dinheiro em estado puro, o poder econômico deve ser também exercido em estado puro. O uso da força sendo tornada uma necessidade. Não há outro telos, outra finalidade que o próprio uso da força, já que ela é indispensável para competir e fazer mais dinheiro. E tudo isso vem acompanhado pela desnecessidade de responsabilidade perante o outro, a coletividade próxima e a humanidade como um todo.
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A perversidade do sistema neoliberal consiste, portanto, na instituição da competitividade como regra absoluta, competitividade que escorre sobre todo o edifício social. O outro, a pessoa humana, aparece como um obstáculo à realização dos fins de cada um e deve ser removido, sendo considerado uma coisa. Decorrem daí a celebração do egoísmo, o alastramento dos narcisismos, a banalização da guerra de todos contra todos, com a utilização de qualquer que seja o meio para obter o fim colimado, isto é, competir e vencer. Como subproduto da competitividade surge a corrupção. Os papéis dominantes, legitimados pela ideologia, pela mídia e pela prática da competitividade, são a mentira, o engodo, a dissimulação e o cinismo, glorificando a esperteza, negando a sinceridade, glorificando a avareza, negando a generosidade. Desse modo, o caminho fica aberto ao abandono das solidariedades e ao fim da Ética e, consequentemente, da Política.
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Mas o Estado moderno foi politicamente construído justamente para barrar o estado de guerra civil produzido pela lei do mais forte. Seguindo o pensamento de Rousseau, é justamente porque a força do Mercado neoliberal está empenhada em destruir a igualdade, que a força do Estado deve agir para sempre tender a conservá-la, porque para uma democracia ser um projeto racional é preciso que nenhum cidadão seja assaz opulento que possa comprar o outro, e nenhum tão pobre que seja constrangido a vender-se. E cabe justamente ao Estado ser o mediador desta questão, evitando os males que uma desigualdade neoliberal venha a produzir, principalmente num país estruturalmente heterogêneo, social e economicamente desigual, como é o nosso, nas palavras de Celso Furtado.
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Portanto, diante da herança recebida de um Estado zero, era preciso reinventar a política, reinventando o Estado brasileiro. Era preciso antes de tudo rever o olhar político.
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Em dezembro de 2002, dias antes de Lula tomar posse, o quadro econômico brasileiro deixado pelo seu antecessor era o seguinte. O dólar custava R$ 3,63 (três reais e sessenta e três centavos), registrando uma inflação cambial desde a implantação do real da ordem de 327%; as reservas internacionais desabaram para o valor irrisório de US$ 27 bilhões, sendo necessário nessa época fazer um empréstimo emergencial ao FMI de US$ 30 bilhões; o salário mínimo alcançou nessa época o valor real de US$ 56, uma perda em torno de 37% desde a implantação do real como moeda nacional; o chamado Risco Brasil atingiu o índice de 2.436 pontos (BANCO CENTRAL, 2009). Esses são apenas alguns dados que retratam o resultado da política neoliberal dos antecessores de Lula.
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Qual era a tarefa histórica urgente que o novo governo precisaria assumir?
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Implantar transformações capazes de reverter o quadro de instabilidade, alterando-o para um ambiente produtivo. Era preciso reduzir substancialmente a vulnerabilidade brasileira a choques advindos de fluxos de capitais estrangeiros e variação de preços; consolidar a estabilização da moeda que se encontrava sob ameaça real; acumular reservas internacionais e poupança interna, recuperar a credibilidade do país externamente, para somente assim pensar em crescimento, orientado por uma estratégia de longo prazo, com premissas tais como inclusão social e desconcentração de renda, com crescimento econômico e ambientalmente sustentável, buscando reduzir disparidades regionais, dinamizado pelo mercado de consumo de massas e fortalecimento da cidadania e da democracia. E isto não era uma tarefa do Mercado, mas do Estado democrático
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Foi necessário adotar ações que promovessem a inclusão social e a cidadania por meio de acesso à propriedade, a bens e serviços e à universalização de direitos, bem como a superação da marginalização, o combate às desigualdades, buscando uma resposta eficaz ao problema da construção de uma estratégia socialmente inclusiva e transformadora de desenvolvimento, promotora da redução das desigualdades sociais e regionais de forma sustentável.
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Que resultados podem-se aferir com essa mudança de rumo?
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Em 31/12/2008, o salário mínimo atingia a marca recorde histórica de US$270. A cotação do dólar nessa mesma época despencou para US$ 1,71 (menos da metade que em 2002). As reservas internacionais nesse período já atingiam o valor recorde histórico de US$ 206,8 bilhões. E o chamado Risco Brasil desabou para 224 pontos, caindo a 10% do valor de 2002 (BANCO CENTRAL, 2009).
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É essa uma das lições que o povo brasileiro está aprendendo. Não foi apenas a competitividade lançada a seu bel prazer que possibilitou uma nova realidade no Brasil. Mas a reinvenção do Estado brasileiro. Ou melhor, pela primeira vez na história do Brasil o Estado tem como foco o planejamento estratégico com vistas a combater a desigualdade e a construir uma democracia inclusiva e participativa. Oxalá a sociedade brasileira , com esse novo marco democrático com a concepção e organização do Estado brasileiro comprometido com a emancipação do seu povo, consiga ampliá-la, consolidá-la e mantê-la de forma sustentável.
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