quinta-feira, 25 de novembro de 2010

UMA NOVA ETAPA DE NOSSA CIDADANIA

ALEXANDRE ARAGÃO



Em 2010 rememoramos 185 anos da execução de FREI CANECA. Um enorme brasileiro, que infelizmente não foi escolhido pelos marechais que implantaram a república brasileira como o herói da nação. Espertamente, na disputa final entre os dois nomes, a elite escolheu Tiradentes, que morreu calado, mais como mártir do que como herói ou lutador. Um símbolo que incomoda bem menos ao ser rememorado. Uma figura pacata, silenciosa.

Caneca, ao contrário, morreu gritando: Viva a Liberdade! Uma de suas afirmações mais célebres foi: "Já está na hora de honrarmos o nosso sangue africano do qual fomos feitos". Afirmava isto numa época em que os escravos não eram considerados humanos pela legislação nem pela busca de "sangue nobre", muito em voga em sua época.

A manifestação da jovem paulista, estudante de Direito, contra os brasileiros e brasileiras de origem nordestina não deixa de ser uma continuação desse caráter preconceituoso que está na matriz formadora da elite brasileira, contra a qual Caneca lutou abertamente até a morte executada pelos fuzis oficiais de D. Pedro I.

Um texto belíssimo do escritor e historiador Marco Morel sobre Caneca diz assim: "No princípio não era o Verbo, e sim uma certa Maria, Maria sem sobrenome. Maria das estrelas que a tradição oral, de geração em geração, embalou na memória, de forma nebulosa, não deixando saber se era índia ou africana. Poucas famílias brasileiras, ainda hoje, não conhecem seus antepassados. Em geral a memória perde-se numa aldeia indígena, numa senzala ou do outro lado do Atlântico. Quatro gerações antes de Frei Caneca, esta Maria poderia ser uma tapuia, ou uma tupinambá, ou uma rainha Jinga com seus pontos de fé”.

O tempo de hoje requer de nós uma nova compreensão de nós mesmos, como uma nova atitude mais articulada entre cidadãos e cidadãs soberanos, na construção de nossa sociedade. Sem preconceito, mas com muito amor no coração e coragem para enfrentar os novos desafios. Como diz Milton Nascimento, "quem traz na pele essa marca, Maria, Maria, possui a estranha mania de ter fé na vida!".

sábado, 13 de novembro de 2010

APRENDER A CONVIVER DEMOCRATICAMENTE

Alexandre Aragão



Ainda respirando o clima pós-eleitoral, parece importante exercitar a reflexão em torno de algumas manifestações que emergiram após o resultado do pleito, mais particularmente em relação à onda de mensagens preconceituosas postadas nos twitters, a partir de uma jovem paulista estudante de Direito que, não aceitando a derrota do candidato José Serra, deflagrou um ataque preconceituoso e generalizado contra cidadãos e cidadãs brasileiros de origem nordestina, responsabilizando-os pela vitória de Dilma Roussef.

Também foi sintomático constatar nos diálogos e reflexões que mantive por e-mail com algumas dezenas de jovens durante o segundo turno das eleições, alguns deles, residentes no sul e sudeste do Brasil, haverem afirmado que “problema de nordestino é coisa de nordestino”.

Primeiramente é importante registrar que a vitória da presidenta Dilma é antes de tudo a vitória da democracia brasileira.

Depois, é fundamental buscar compreender que a democracia é uma experiência muito recente na vida da humanidade.

Até 1989, por exemplo, grande parte da Europa oriental era dominada por um sistema político que não contemplava o pluralismo partidário, nem a competição política em eleições diretas para dirigentes de seus governos, como tampouco possuía a liberdade de imprensa nem econômica. O Sindicato Solidariedade, dos trabalhadores portuários de Gdansk, na Polônia, foi um dos grandes atores na virada dessa situação.

Por outro lado, somente em 1994 a África do Sul pôs fim de fato ao seu regime de apartheid racial, elegendo pela primeira vez um homem negro para presidência daquele país, Nelson Mandela. Paradoxalmente, os países europeus que desenvolveram a ideia da democracia, impuseram sua truculenta dominação imperialista e colonialista ao resto do mundo, além de serem os grandes predadores do meio ambiente em escala planetária.

E no Brasil, após duríssimos anos de ditadura militar (1964 -1988), retomamos, com a promulgação da Constituição de 1988, nossa caminhada de construção democrática. São apenas 22 anos de percurso e aprendizado.

Mas, afinal, o que é a democracia?

A democracia é antes de tudo um reconhecimento que a humanidade faz de si mesma. Ela percebe que os indivíduos e as coletividades são capazes de ser atores de suas histórias, enquanto sujeitos livres e iguais. Mais do que ser capazes, indivíduos e grupos têm o direito de agir enquanto sujeitos criadores de sua vida individual e coletiva, exercendo sua liberdade positiva, e não somente de ser libertados dos grilhões que lhes aprisionam. O eixo central da democracia é a soberania popular, a afirmação de que a ordem política é produzida pela ação humana.

Consequentemente uma cultura democrática alimenta-se pelo esforço da combinação entre a diversidade e a unidade, entre a liberdade individual e a realização de vínculos e projetos coletivos tendo em vista a convivência comum. Não existe democracia se esses dois elementos não forem respeitados e articulados. Assim, a democracia não se define apenas pela representação, pela participação e pela formação de consensos políticos; mas pelo reconhecimento e pelo respeito mútuo das diversidades culturais, territoriais, religiosas, econômicas. Conforme afirma Charles Taylor, a democracia é uma política de reconhecimento mútuo.

Viver democraticamente requer o aprendizado de uma convivência com nossas diferenças em um mundo que seja aberto às diversidades. Tanto a unidade, sem a qual a comunicação e uma convivência pacífica se tornam impossíveis, quanto a diversidade, sem a qual não se poderia pensar numa efetiva liberdade criativa e autônoma dos indivíduos, não devem ser sacrificadas uma à outra.

Portanto, o individualismo – o isolamento do indivíduo das responsabilidades da vida coletiva - não é um princípio suficiente para a construção da democracia, porque o indivíduo guiado apenas por seus interesses particulares, pela satisfação de suas necessidades pessoais, ou até mesmo pela recusa de modelos centrais de conduta, nem sempre é portador de uma cultura democrática. Como lembra Touraine, aqueles que são guiados pelos respectivos interesses nem sempre defendem a sociedade democrática em que vivem e preferem salvar seus bens pela fuga ou simplesmente pela busca de estratégias mais eficazes que lhe beneficiem sem levarem em consideração o sofrimento do outro nem tampouco a defesa dos princípios, dos procedimentos e das instituições democráticas.

Para viver democraticamente é preciso conhecer as razões do outro, e não simplesmente fechar-se nas próprias razões. Construir uma vida comum democrática significa partir de visões e responsabilidades partilhadas. E o diálogo é a ferramenta essencial.

O fechamento em si mesmo – seja como indivíduos, seja como comunidades – produziu barbáries impensáveis. Um dos últimos exemplos históricos, vividos no final do século XX, foi a ação armada dos sérvios que, em nome de uma purificação étnica e homogeinização cultural, promoveu o extermínio de pessoas de filiações nacionais e religiosas diferentes, com quem haviam convivido há anos. Isto sem falar no horror que representou para a humanidade a ideologia nazista da raça pura.

Vivemos num país único, construído a partir da ampla diversidade cultural e regional. As regiões interpenetram-se constantemente para formar aquilo que chamamos de Brasil: o nordeste está no sudeste, assim como o sudeste está no nordeste; o norte está no sul bem como o sul no norte, e assim ocorre entre todas as regiões. Um único Brasil não é apenas resultado de nossa miscigenação racial e cultural, mas é também fruto da solidariedade e de nossa capacidade acolhedora do outro que nos formaram como civilização bem distinta, nas palavras de Darcy Ribeiro.

Não basta, portanto, o veemente repúdio ao ato deflagrado pela jovem paulista estudante de Direito. É preciso mais.

Que este fato abra os olhos de todos para a necessidade de um aprendizado democrático eficaz e contínuo, capaz de gerar uma cultura verdadeiramente democrática na qual nos relacionemos em sociedade através do reconhecimento e do respeito mútuo, pela via do diálogo e não do preconceito.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

AS PRIMEIRAS PALAVRAS

Alexandre Aragão


As primeiras palavras são aquelas com as quais manifestamos nosso sentir mais profundo diante de uma novidade em que nos encontramos. São expressão de uma verdade interior mais sentida do que racionalizada por não ser fruto de experiência vivida, mas da vontade que impulsiona o querer vivê-la. É a paixão que nos compromete com a vida que pulsa ao nosso redor.
.
Em seu primeiro discurso como a primeira mulher eleita presidenta do Brasil, pode-se marcar algumas palavras centrais do sentimento expresso por Dilma Roussef.
.
Primeiramente quero destacar a sua imensa alegria por ter recebido dos milhões de brasileiros e brasileiras, pelo voto direto, a missão mais importante de sua vida, com a qual buscará honrar sobretudo as mulheres, pelo fato de ter sido a primeira mulher eleita à Presidência da República, colocando em relevo um princípio essencial da democracia: a igualdade de condições.
.
Se antes, os cidadãos e cidadãs soberanos haviam colocado no poder, pelo voto, um operário que produziu uma ruptura histórica com o modelo de condução das políticas públicas até então vigentes no Brasil, introduzindo um novo olhar político voltado para o crescimento com distribuição de renda, agora a expectativa gerada com a chegada de uma mulher na condução do governo federal é que seja aprofundado este projeto, ampliando ainda mais as condições econômicas, ecológicas, sociais e políticas que permitam a todos o exercício pleno da cidadania sustentável.
.
Ou seja, espera-se, como Dilma mesmo afirmou, que a Democracia seja valorizada em toda a sua dimensão. Que seja uma democracia para todos e não apenas para alguns. Onde todos tenham liberdade e igualdade de condições para poderem viver com dignidade e autonomia.
.
E para isso é preciso acreditar no ser humano. Acreditar na capacidade do povo brasileiro de empreender e superar a adversidade com a criatividade que lhe é típica, segundo suas palavras.
.
A capacidade e a decisão de acreditar no outro constitui um dos atos antropologicamente mais significativos e expressivos da humanidade. Todo e qualquer sistema político-econômico que impossibilite a realização da confiança mútua e da solidariedade nos diversos níveis da vida humana é um sistema desumanizador.
.
O desenvolvimento da solidariedade só é possível se cada indivíduo tiver uma esfera própria livre de ação e, conseqüentemente, uma personalidade. Dizer personalidade significa afirmar que homem e mulher são pessoas, ou seja, seres dotados de subjetividade e dignidade, capazes de agir de maneira refletida, planejada e racional e de decidirem por si mesmos no exercício de sua realização pessoal.
.
Consequentemente, é preciso que os novos arranjos econômicos contemplem os trabalhadores e trabalhadoras não como um instrumento, não como uma máquina, mas como pessoas que trabalham, como sujeitos do trabalho: o valor ético do trabalho resulta justamente deste sentido subjetivo. E isto precisa acarretar conseqüências concretas na ordem política, econômica e jurídica capazes de garantir sempre mais uma ética no mundo econômico que contemple verdadeiramente a dimensão subjetiva do trabalho como fonte de desenvolvimento humano e justiça social. Isso significa “qualificar o desenvolvimento econômico”, não apenas com o aperfeiçoamento técnico, mas simultaneamente com o aperfeiçoamento ético-social.
.
Essa não é apenas tarefa de governo, como alertou a Presidenta, mas de todos os brasileiros e brasileiras. Desta forma, com este compromisso, é possível erradicar as misérias que continuam insistindo em manterem-se como marca de nossa história.
.
Resumindo, é preciso “cuidar com responsabilidade”. Saber cuidar deve transformar-se em cultura. Isso demanda um processo pedagógico que se desenvolve principalmente no âmbito das famílias e da escola formal, devendo transbordar para as instituições, capaz de fazer nascer um novo estado de consciência na vida de um povo. Importa, como lembra Leonardo Boff, desenvolver a economia das qualidades humanas, o valor ético da produção social.
.
Duas ferramentas importantes nessa construção são o diálogo público e a transparência dos atos, como bem assinalou Dilma.
.
O diálogo, com todos, ganha uma importância fundamental enquanto ferramenta humanizadora da ação política. Os gregos distinguiam as sociedades políticas daquelas não políticas precisamente pela capacidade de diálogo em público que essas sociedades possuíssem ou não, uma vez que essa práxis instaurava uma nova forma de solução aos conflitos: o debate público implicava desde então a responsabilidade pela solução dos problemas comuns.
.
Como lembra Nelson Mandela, não se pode chegar à solução dos problemas de uma sociedade, sem levar em conta a visão daqueles que se opõem fortemente à sua visão. Neste sentido é digno de registro o agradecimento respeitoso que Dilma externou aos eleitores que votaram em outros candidatos, sinalizando concretamente, a partir deste momento, que o diálogo não será algo abstrato no exercício do seu mandato.
.
Como ela mesmo afirmou, “agora é a hora da união”.
.