sábado, 11 de julho de 2009

A CIDADANIA EM DEBATE

Alexandre Aragão


Nosso saudoso e querido sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, dizia; “a criança é um princípio sem fim, o fim da criança é o fim de todos nós”.

No dia 13 de julho comemoramos dezenove anos de existência do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei federal no. 8.069, fruto de uma grande mobilização social pela perspectiva de um instrumento jurídico que pudesse provocar uma mudança substancial na forma de tratamento por parte do Estado, da Sociedade Civil e das famílias em relação a esses seres humanos, sujeitos de direitos que necessitam de atenção e proteção integral, devido à sua condição peculiar.

Todo ser humano é sujeito, independente de sua idade ou condição social. Como nos lembra Charlot (2000), sujeito é um ser humano aberto a um mundo que possui uma historicidade. É portador de necessidades e desejos, além de estar em relação com outros sujeitos humanos. O sujeito é ao mesmo tempo um ser social, com uma determinada origem familiar, que ocupa um determinado lugar social e se encontra inserido em relações sociais. É também um ser singular, que tem uma história, que interpreta o mundo e dá-lhe sentido, assim como dá sentido à posição que nele ocupa. Ser sujeito é ser ativo, agir no mundo e sobre o mundo, e nessa ação o sujeito se produz e, ao mesmo tempo, é produzido no conjunto das relações sociais no que se insere. O ser humano se constitui na relação com o outro.

Mas existem várias maneiras de se construir como sujeito, e uma delas se refere aos contextos de desumanização nos quais o ser humano é proibido de ser, privado de desenvolver suas potencialidades, de viver plenamente a sua condição humana, como acontece com uma grande parte das e dos jovens brasileiros pobres, filhos dos trabalhadores rurais e urbanos, discriminados por alguns setores da sociedade brasileira, pela sua condição social e de cor, como apontam diversos estudiosos.

Sposito lembra (2006) que a questão social no Brasil durante a maior parte do século XX foi tradicionalmente tratada como questão de polícia. De modo muito gradativo a assistência social trouxe-a para a esfera dos direitos. Até 1990, no lugar do ECA, existia o Código de Menores, com sua doutrina da situação irregular, “uma espécie de código penal disfarçado para punir as crianças e adolescentes, dependendo de sua condição social”, nas palavras do procurador Odilon Aguiar. Naquela época, crianças e adolescentes eram tratados como “menores”, “trombadinhas”, “pivetes”, “pixotes”, não tinham chance de defesa, não havia processo legal quando recolhidos pelos comissários de menores para os orfanatos, nos quais permaneciam indefinidamente, por ato unitário e personalíssimo da autoridade judicial.

Com o advento do ECA, a realidade juvenil passa a ser vista a partir do prisma político. Crianças e adolescentes são reconhecidos como sujeitos de direitos, entre estes, o direito à sobrevivência, à integridade, ao desenvolvimento humano alicerçado na equidade entre os sujeitos e sustentabilidade. A Política, diferentemente da polícia, é produtora da possibilidade de construção de novos significados e, consequentemente, de trazer à luz aqueles sujeitos que permanecem colocados na sombra, não atingidos pelos pressupostos republicanos e democráticos da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Somente quando alcança o estatuto de um problema político [e não policial] a realidade da criança e adolescência começa a ocupar a agenda pública que demanda políticas específicas e efetivas.

Para Rua (1998), “política pública é um conjunto de decisões e ações destinadas à resolução de problemas políticos”. Requer a presença do aparelho público-estatal na sua definição, implementação, acompanhamento e avaliação, assegurando seu caráter público, mesmo que em sua realização ocorram algumas parcerias. Ou seja, políticas públicas são um conjunto de ações permanentes que asseguram e ampliam direitos civis, políticos, econômicos, sociais e coletivos de todos, que devem ser amparados por lei, de responsabilidade do Estado o seu financiamento e a sua gestão, e com a participação e controle da sociedade civil.

Passados 19 anos do ECA, quase duas décadas, impõem-se novas reflexões em torno das conquistas obtidas, mas principalmente em relação aos novos desafios que se nos colocam no sentido de garantir que os dispositivos legais previstos na Lei sejam de fato concretizados pelo Estado brasileiro, garantindo às nossas crianças e adolescentes cidadania plena. Entendemos que as mobilizações sociais não devem restringir-se a eventos pontuais, mas devem assumir-se como processos permanentes que buscam vincular as questões conjunturais com as estruturais. No capitalismo global a exclusão social apresenta-se como um fato estrutural, um desafio posto para a sociedade civil mundial contemporânea. Além de continuarmos alimentando a democracia como um valor, urge afirmar a construção de espaços permanentes de participação popular nas decisões que dizem respeito à existência de todas as pessoas em todos os campos da vida econômica, política, social e cultural, colocando nossa cidadania em movimento permanente para garantir espaços e instrumentos eficazes e democráticos de acompanhamento e gestão das políticas e recursos.

É um novo tempo de engajamento em busca de realizar a humanização da humanidade.




quarta-feira, 8 de julho de 2009

O SENTIDO DA VIDA

Alexandre Aragão

Hoje pela manhã, após o café, percebi que a pia da cozinha estava repleta de louças por lavar. Assim, concluída a refeição matinal, decidi-me pela limpeza dos pratos, panelas e talheres. Minha esposa, antes de sair para o seu trabalho, deu-me um beijo e disse-me que “eu ficava muito bonito lavando os pratos”. Sorriu e partiu.

Depois de sua saída, percebi que aquele tinha sido um belo elogio para o início de mais uma manhã que teria entre outras coisas novas leituras na construção do meu referencial teórico para a elaboração de minha dissertação. Mas parei para curtir um pouco sobre o que ela me falou.

Perguntei-me: que motivação profunda me fez tomar aquela iniciativa?

Rapidamente viajei no tempo, chegaram-me várias imagens. Primeiramente a imagem de meu pai. Lembro-me quando as enchentes históricas do rio Capibaribe assolavam Recife na década de 1960, ele após deixar-nos em lugar seguro, geralmente na casa de minha bisavó Lila [pois a nossa casa ficava inundada pelas águas do rio consagrado por João Cabral de Melo Neto], saía de barco, com alguns amigos, para socorrer pessoas em dificuldade tomadas de surpresa pelas enchentes.

Outro episódio marcante para mim, numa noite, quando um mendigo fora brutal e covardemente agredido por um de nossos vizinhos, imediatamente colocou-o num táxi e levou-o para o hospital. E ainda, quase que diariamente, após chegar do trabalho, colocava uma bermuda e camiseta branca, pulava o muro e ia prosear com o seu tio, portador de deficiência motora e visual. Este cuidado e atenção de meu pai pelo outro, seja ele quem fosse, foi um ensinamento que carrego comigo desde minha tenra idade. Esses atos de gratuidade e solidariedade ficaram registrados desde sempre em mim.

Outra lembrança foi a de minha avó Conceição. Em sua modesta casa, até o final de sua vida, sempre fora aberta a todos, principalmente aos empobrecidos. Porém, o que mais eu gostava nela era quando, no final dos anos 60, chamava-me para contar histórias da vida dos santos. Eu, aos meus sete anos de idade, me maravilhava naqueles relatos sobre aquelas pessoas capazes de feitos grandes e imprevistos por amor ao outro.

Lembrei-me também do que diz o filósofo Manfredo de Oliveira: o ser humano constrói a vida a partir dos sentidos e das categorias a que recorre para descrever o mundo. Eles nos condicionam e condicionam o mundo que nos rodeia. Isso torna possível diferentes interpretações da mesma experiência. Assim criam-se mundos espirituais – individuais e sociais. Na realidade todos os conceitos são idealizações da realidade empírica e, por essa razão, emerge a possibilidade de perguntar-nos se as representações são verdadeiras e se os desejos são moralmente corretos. O ser humano pode dizer sim e não (internamente e externamente). E aqui está uma grande descoberta humana: a idéia do que é Verdadeiro e do que é Bom. É uma descoberta ineliminável, pois mesmo aquele que julga toda verdade uma ilusão tem de considerar verdadeira a sua convicção. O Verdadeiro e o Bom abrem para o ser humano um espaço de liberdade. Ele sempre pode se perguntar sobre as razões teóricas e práticas de suas suposições e com isso libertar-se de causas cegas que o impulsionam. Assim o ser humano está sempre além de qualquer realidade dada. Ele pode perguntar-se pelo sentido de tudo. O ser humano é o ser que pode levantar questão sobre a validade de sua prática: o que é e não deveria ser, e o que não é e deveria ser.

Não há liberdade, sem processo de libertação. Liberdade, em sentido pleno, é auto-determinação. Ação livre é aquela que o ser humano determina a si mesmo ao invés de ser determinado por outros poderes, ação em que o ser humano não é simplesmente de causas fora dele mesmo, mas determinado pelo que é racional. Para Tomás de Aquino, o fim, determinado pela vontade que o gerou, especifica, enquanto bem ambicionado, forma caráter ético da ação humana. O fim é a primeira causa que movimenta a vontade para uma ação. A liberdade sempre implica motivação, ou seja, uma deliberação racional a respeito dos motivos a favor ou contra a escolha de um determinado valor. O ser humano é tanto mais livre em relação ao finito quanto mais se radica no infinito. A presença do infinito nele é condição de possibilidade de sua liberdade. O Absoluto é a raiz da liberdade.

Se a liberdade num primeiro momento é transcendência, autonomia do eu sobre toda a fatalidade, e se num segundo momento é decisão tomada de posição diante de uma multiplicidade de possibilidades, ela só se plenifica na medida em que se exterioriza, se faz mundo, se autoconfigura como ser efetivo na natureza e na sociedade. A liberdade efetiva é liberdade enquanto construção intersubjetiva de relações, a construção do ser pessoal como ser-com-a-alteridade, decisão a respeito da configuração específica desse ser-com. O que torna possível a constituição de sujeitos enquanto sujeitos é esse processo de construção de comunhões como espaço de efetivação da liberdade na contingência dos eventos.

Construir espaços de comunhão, a partir da gratuidade do agir pessoal como um dom para o outro. Penso que este tenha sido o sentido profundo que me levou a lavar os pratos hoje pela manhã. Um simples gesto concreto como este chamou atenção sensível de minha esposa, arrancou-lhe um sorriso, um elogio e um beijo. Maravilha!