sábado, 28 de fevereiro de 2009

A Casa

Alexandre Aragão



Nossa primeira casa é o útero materno. O útero é uma casa grávida, a gerar a vida dentro si. Nela nos nutrimos do alimento material e espiritual de nossa mãe. Nela nos movemos com total segurança e destreza. Nela nos desenvolvemos e preparamo-nos para alçar novos vôos.
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E nossa casa familiar deveria ser nosso segundo útero - o útero social – a partir do qual iremos formar nossa personalidade como pessoas e não apenas como indivíduos. Aprenderemos que o Eu é confirmado pela presença do Tu (o outro). No outro o eu se encontra e no eu dá-se o encontro do outro. Um é a extensão do outro, e assim formam-se os sujeitos. Uma casa grávida é aquela que é capaz de gerar a vida relacional de todos os que nela habitam.
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A cidade deveria ser nosso terceiro útero - o útero político - onde as casas se encontram, ampliando os relacionamentos e gerando novas expressões do viver. Uma cidade grávida é aquela capaz de gerar, nas mais diferentes expressões, relacionamentos inclusivos e solidários, onde todos se sintam verdadeiramente filhos e filhas desse útero civil, conseqüentemente, onde se sintam irmãos.
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Para Bachelard (1984), em sua Poética do Espaço, pode-se dividir a casa em vários espaços, como por exemplo, “a casa das coisas”, representada pelas gavetas, armários, guarda-roupas; ou a “casa da intimidade”, representada pelos espaços destinados ao repouso e ao banho; e ainda a “casa do encontro” representada pela sala ou pelo terraço; a “casa ecológica” representada nos jardins e quintais. Mas, apesar de toda diversidade, na casa há sempre uma unidade: “A casa nos fornece simultaneamente imagens dispersas e um corpo de imagens”.
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No Brasil, existe um déficit habitacional estimado em 8 milhões de unidades, dos quais 90% atingem essencialmente famílias com renda mensal de até cinco salários mínimos. Para solucionar esse problema estrutural de déficit de moradia, tramita na Câmara Federal a PEC 285/2008 (Projeto de Emenda Constitucional) que vincula recursos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios aos respectivos Fundos de Habitação de Interesse Social, por um período de trinta anos, numa clara demonstração que o tratamento dado a esta questão não pode ser uma política de governo, mas de Estado.
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Segundo os parlamentares que propuseram a PEC, “identificadas as premissas necessárias para uma política habitacional sustentável, podemos planejar uma legislação que atenda de forma justa à demanda por habitação de interesse social, pois é consenso geral que a solução para atender o primeiro segmento do déficit habitacional [famílias sem capacidade de pagamento ou aquelas que não possuem renda disponível para sequer satisfazer as necessidades básicas] deve ter como lastro uma sólida política de subsídios. Para tanto, nada mais oportuno do que garantir na Constituição Federal a vinculação de recursos orçamentários de todos os entes da federação até o saneamento do déficit”.
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A vida de nossas casas uterina, familiar e política é responsabilidade de cada um de nós.
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Sem casas grávidas não há vida.
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sábado, 21 de fevereiro de 2009

Reflexões sobre a comunhão

Alexandre Aragão


Comunhão é um substantivo feminino que significa ato ou efeito de comungar; ação de fazer alguma coisa em comum ou efeito dessa ação; sintonia de pensar, sentir ou agir; comunicar, colocar em comum; união. Deriva do latim communio, comunidade.
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Marcel Mauss (2001), em sua obra Ensaio sobre a dádiva, ao observar grupamentos antigos da Melanésia, da Polinésia e do noroeste Norte-Americano, registra que, para aqueles povos primitivos, recusar-se a dar como recusar-se a receber uma dádiva, equivale a declarar uma guerra, é recusar a aliança e a comunhão. Ou seja, a dádiva surge nas relações sociais dessas comunidades primitivas como superação da guerra. Uma forma de contrato arcaico, o potlatch. Sua constatação é de que em todas as instituições desta parcela da humanidade tudo se passa como se houvesse troca constante de uma matéria espiritual, mediatizada pelas coisas e pelos homens, entre clãs e indivíduos. Ele afirma:

Se damos as coisas e as retribuímos é porque nos damos e nos retribuímos <> - dizemos ainda, delicadezas. Mas também é que damos a nós mesmos ao darmos aos outros, e, se damos a nós mesmos, é porque <> nós mesmos – nós e o nosso bem – aos outros (p. 140). As sociedades progrediram na medida em que elas próprias, os seus subgrupos e, enfim, os seus indivíduos, souberam estabilizar as suas relações, dar, receber e, finalmente, retribuir. (...) Os povos, as classes, as famílias, os indivíduos, poderão enriquecer, mas não serão felizes senão quando souberem sentar-se à volta da riqueza comum (p.196).
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Comentando esses registros de Mauss, o professor Marcos Lana (2000) afirma que o ato de dar e receber implica não só uma troca material, mas também uma troca espiritual, uma troca entre almas. Ao dar dou sempre de mim mesmo. Ao aceitar, o recebedor aceita algo do doador, aproximando um do outro. Por mais que elas variem, as dádivas sempre reiteram que, para dar algo adequadamente, devo colocar-me um pouco no lugar do outro, entender, em maior ou menor grau, como este, recebendo de mim, recebe a mim mesmo.
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O antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (2007), seguindo a mesma linha de pensamento, afirma:

Toda sociedade humana se preserva e transforma na medida em que conserva e inova sistemas de reciprocidade através dos quais constantemente fluem e são trocadas entre categorias de sujeitos sociais: os seus bens, as suas pessoas e as suas mensagens. (...) A reciprocidade, a troca e a aliança, eis o que nos fez passar do bando biológico ao grupo cultural. Eis a pedra fundamental do edifício social da cultura. (p.16). E o princípio de tudo o que cria a uma só vez o ser humano, a sociedade humana e a cultura parte de algo absolutamente novo como experiência de vida no mundo. Parte de uma tomada coletiva de decisão iniciada em atos de renúncia de si e completada com um dar ao outro o que é meu, na espera de que este se obrigue a uma semelhante renúncia e a uma equivalente dádiva. (p.17).
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Daquilo que Mauss pesquisou pode-se observar que a vida das sociedades primitivas é mais complexa, mais ativa e mais dinâmica do que muitas vezes pensamos; a vida econômica está ligada à valores morais e à religiosidade; para ele a coesão social exige também a reciprocidade, mesmo se expressa em laços contratuais de compromisso, no sentido de respeito mútuo, apontando para além do cálculo utilitário.
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Segundo a socióloga pernambucana Vera Araújo, primeiramente existe um “dar” contaminado pela vontade de poder sobre o outro, que em vez de emancipação recíproca, busca a dominação ou mesmo a opressão de indivíduos e povos; como também o dar utilitarista que está interessado no proveito próprio, que no fundo, um e outro, são expressões egoístas características da cultura de pensamento único neoliberal atual. Essa forma de dar não é geradora de uma cultura nova, porque é um dar aparente que na verdade aprisiona em vez de libertar. Por outro lado existe um dar que se abre ao outro – indivíduo ou povo - e busca o respeitando sua dignidade e subjetividade. Esta inclui usos, costumes, cultura, tradições etc. Nesta modalidade, dar-se e dar constituem um único movimento. Este dar é capaz de construir mundo novo a partir de uma nova mentalidade de comunhão recíproca e emancipação dos sujeitos. Portanto, não é dar e receber de qualquer forma. É preciso promover aquele dom que gere uma reciprocidade profundamente humana, capaz de uma cultura nova e emancipadora (Araújo, 2000).
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Na visão do teólogo João Batista Libânio (2006), no princípio está a comunhão do Trino e não a solidão do Uno, ou seja, confessar a Trindade significa dizer que o último fundamento do ser humano é a comunhão com os outros e com o Outro, e não a solidão egoísta. Esta confissão trinitária compreende em si conseqüências densas e profundas para uma cultura, política e economia de comunhão. Na base da convivência está a comunhão: se o cristão se convence de que se origina da comunhão trinitária e, encarnando-a em sua vida, anuncia-a aos outros, resulta-lhe a necessidade de antecipar nas sociedades terrestres a comunidade que será o convívio eterno.
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Outro aspecto da comunhão, como no-la apresenta Leonardo Boff (1986), é que a comunhão implica um caminho de duas vias que vai de um ao outro. Não há comunhão só de um lado. A comunhão, em seu próprio conceito, supõe pelo menos duas presenças que se relacionam. Há, pois, uma reciprocidade entre as duas presenças. A reciprocidade, por sua vez, tem como pressuposto certa co-naturalidade entre os que comungam. Dois seres totalmente distintos, entre os quais pouco há de comum, dificilmente podem estabelecer laços de comunhão. Entre recíprocos e co-naturais vigora certa atração quanto maior, mais perfeita se apresenta a comunhão; nunca haverá fusão, pois cada parte conserva sua identidade; mas o desejo e o impulso de fusão, de tornar-se um com o outro, caracterizam o nível de profundidade da comunhão.
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Segundo o professor Boaventura de Sousa Santos (2005), o novo conhecimento pós-moderno emancipatório a ser produzido precisa basear-se sobre a solidariedade como forma de superação do colonialismo que consiste na ignorância da reciprocidade e na incapacidade de conceber o outro a não ser como objeto. A solidariedade é o conhecimento obtido no processo histórico de nos tornarmos capazes de reciprocidade, através da construção e do reconhecimento da intersubjetividade.
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O professor Marcos Arruda (2006, p. 209) reflete que:

A chave para conseguir erguer esta ponte entre o pessoal e o social, entre o diverso e o uno, é que cada um respeite a subjetividade do outro como quer que a sua seja respeitada. Respeito e aceitação do outro, compreensão da alteridade como prolongamento e complementaridade de si próprio, busca cotidiana de superação da tensão entre o Eu e o Outro, tudo isso tem o nome simples de amor. Para articular criativamente diversidade e unanimidade, para realizar a democracia, a partilha, a racionalidade dirigida à satisfação das necessidades de todos (eqüidade), a transcendência (sacrifício), a consideração para com as outras gerações (sustentabilidade), a responsabilidade pelo humano e pelo natural, a solidariedade, a sociabilidade, a conviviabilidade, a irmandade... a chave é o amor.
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Assumir a comunhão como estilo de vida, segundo Tévoédjrè (1986), é também a recusa de uma maneira egoísta e consumista de viver e de estar no mundo. Nenhuma pessoa que, em sua vida interior e em suas relações, não tenha enfrentado essa opção, que implica uma recusa concreta e contínua, poderá falar de solidariedade contratual ou de comunhão. É preciso, antes de tudo, que se encarne em nós mesmos a energia da organização solidária que nos conduza a uma cultura de uma sociedade fraterna a ser construída com os outros.
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O sociólogo italiano Tommaso Sorgi (1998) sublinha que não se trata apenas de dar, mas também de dar a si mesmo. Além de ser uma comunhão de bens, constata-se claramente no Projeto Economia de Comunhão* uma comunhão também de pessoas. O resultado é o surgimento de novas situações sociais, com novos tipos de relacionamentos, novos modelos socioculturais, frutos de uma nova mentalidade.
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Os animais, segundo Maturana (1996), possuem duas maneiras básicas e opostas de se relacionarem: a) aceitação mútua, confiança e ato de comungar e cooperar; b) oposição, desconfiança, luta pela força ou astúcia pelo domínio.
Enquanto os macacos têm sua maneira de viver centrada em posições hierárquicas, manipulação mútua por meio da intimidação, em contínua luta por acesso privilegiado a sexo e comida, agregados em grandes bandos de 15 indivíduos ou mais, a maneira do Homo viver é centrada na ternura, sexualidade aberta, partilha, cooperação e intimidade em pequenos grupos de 07 a 08 membros. Maturana alerta que nos últimos séculos nosso espaço psíquico tem se assemelhado ao dos macacos devido ao desenvolvimento de uma cultura humana que privilegia a conduta de relações de domínio, de vantagens e privilégios em relação aos bens produzidos material e culturalmente.
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Nesse sentido, Marcos Arruda (2006) nos adverte que não se criam novas estruturas, novas instituições e novas relações sociais com velhos seres humanos. Para o autor, velhos somos todas e todos que carregamos conosco a marca profunda, e diariamente renovada, da cultura do egoísmo, da competição predatória contra o outro, do consumismo desenfreado, do mimetismo, do culto fetichista às máquinas e à técnica, do materialismo vulgar que só reconhece como realidade o visível e o imediato. Uma cultura de comunhão é a da valorização da diversidade como base para a elaboração de projetos em comum e da colaboração para torná-los realidade. Esta é também a cultura do respeito ao outro, do acolhimento, da busca de complementaridades que enriqueçam o que sou e o que tenho, a fim de que, juntos e conscientemente solidários, sejamos mais e melhores do que temos e somos individualmente. Uma cultura de comunhão é também uma cultura do amor. Colocar o homem no centro da economia requer um tipo de pessoa capaz de criar estruturas econômicas a serviço do homem em plena comunhão com a natureza, para satisfação de suas necessidades e para seu crescimento.
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Para Bruni (2005) o objetivo do Projeto Economia de Comunhão (EdC)* não é apenas o de partilhar os resultados das empresas com sujeitos empobrecidos, mas uma parte dos resultados é destinada a estruturas de formação de homens e mulheres novos, porque somente com uma mentalidade e uma práxis nova é possível construir um mundo novo. Ou seja, para a EdC homens e mulheres novos não são resultado de um epifenômeno, de uma simples mudança das estruturas de produção ao redor, como pressupõe algumas teorias sociais. É um processo dialético de relação entre a mudança pessoal interna, fruto da vontade e da consciência humana de construir uma realidade nova, com as realidades objetivas naturais e sócio-culturais. Tratam-se de motivações intrínsecas que, logicamente, no processo dialógico de construção da realidade retroalimentam-se das objetividades sociais construídas.
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Como atesta Amorim (2003), revolucionar a estrutura da produção parece ser necessário, mas não suficiente, porque uma revolução pode mudar de rumo e degringolar como ocorreu historicamente. A transformação deve se dar em outros níveis, sobretudo num nível antropológico mais profundo.
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* O Projeto Economia de Comunhão (EdC) é uma expressão no campo sócio-econômico-cultural da espiritualidade da unidade do Movimento dos Focolares.
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segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Livres da fome!

Alexandre Aragão



Quando procuramos recepcionar amigos em nossas casas, a partilha do alimento apresenta-se como um importante gesto de apreço em nossa cultura, momento central do acolhimento. Em torno da mesa sentamo-nos para celebrar a alegria do encontro com o outro.
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Consumir o alimento não é um ato qualquer. Mais que uma necessidade básica, é um momento de comunhão sócio-cultural, porque, mesmo se sozinhos, sempre estamos em relação, alimentando-nos dos frutos da natureza e do trabalho humano.
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Como assinala o antropólogo Néstor Canclini, “não se trata de uma possessão individual, mas de uma apropriação em relações de comunhão”. Conseqüentemente, a fome a que estão submetidos milhões de pessoas no mundo denuncia a injustiça presente no sistema sócio-econômico global, num total desrespeito aos direitos humanos e ao princípio solidário da vida humana.
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O artigo 11 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Socais e Culturais reconhece o direito fundamental de toda pessoa de estar livre da fome e obriga os Estados-Parte a adotarem medidas e programas para atingir esse fim. Da mesma forma o Comentário Geral n. 12, do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU), estabelece que o direito à alimentação adequada é de essencial importância para a fruição dos demais direitos. Trata-se de um direito universal e incondicional a ser garantido a todo e qualquer ser humano.
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No Brasil, a partir da iniciativa do sociólogo Herbert de Sousa [Betinho], com sua campanha de mobilização nacional denominada “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida” - começou-se a introduzir uma política nacional de segurança alimentar com a criação do CONSEA, Conselho Nacional de Segurança Alimentar, buscando atender à determinação da Constituição de 1988, que enfatizou o reconhecimento dos direitos sociais e a necessidade de reverter a dívida secular da Nação com nossos irmãos empobrecidos.
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Em janeiro de 2004 foi criado o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que tem por missão incrementar as ações governamentais voltadas para a inclusão social, onde se destaca o Bolsa Família que unificou diversos programas de transferência de renda anteriores. Essa unificação é muito importante, pois a centralização em um único programa evita a fragmentação e permite maior clareza em relação aos órgãos públicos responsáveis. A partir do conceito de segurança alimentar, introduziu-se no Brasil um mecanismo que permite aos sujeitos empobrecidos a não mais ter de vender sua força de trabalho no Mercado em troca do alimento. Com isso eles podem ir em busca de atividades que lhes possibilitem um ganho salarial maior, rompendo com o clientelismo secular em nossa estrututra sócio-econômica. Mas é preciso lembrar que existe ainda uma enorme população que deveria ser beneficiária, mas ainda não conseguiu ser contemplada. Isto precisa ser corrigido imediatamente, pois a fome fere a dignidade humana de forma implacável.
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Do ponto de vista operativo, o Poder Público municipal realiza o cadastramento dos beneficiários, cabendo à sociedade civil a responsabilidade de controlar a ação local através de conselhos ou comitês instalados pelas Prefeituras.
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Portanto, uma das tarefas fundamentais para nós da sociedade civil é a de ocuparmos nosso lugar como controladores do Bolsa Família, no sentido de garantir e ampliar o direito à alimentação adequada às pessoas que dele necessitam, de todas as faixas etárias, sem exceção, num processo de libertação da fome e de construção de uma nação solidária que garanta os direitos humanos básicos para todos.
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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Dialogando com o outro

Alexandre Aragão


Nesses dias voltei a caminhar e de novo encontrei-me com Gabriel, meu companheiro de estrada: - Oi, Alexandre. Já fazia algum tempo que você não aparecia na praça. Eu continuo firme, a cada manhã estou aqui, caminhando.

- Que bom, Gabriel! Mas para mim a luta pela sobrevivência tem me ocupado bastante e raramente tenho uma folguinha para andar com calma e contemplar a natureza presente nesta bela praça. Sei que tenho uma parcela de culpa por não dedicar o tempo devido a essa caminhada diária, mas não é muito fácil mudar a cultura e a estrutura social que nos obriga a dedicar todas as nossas forças para a atividade laboral em detrimento de nossas outras dimensões existenciais.

- Vamos caminhar? O que você tem feito, Alexandre?

- Nós estamos levando para frente, Gabriel, com nossa escola de formação política para jovens, uma pesquisa sobre a juventude de um determinado bairro de Fortaleza. Ao todo são oito jovens envolvidos. Interessante o que eles afirmaram na justificativa do projeto:

Queremos com esta pesquisa aplicar o conhecimento obtido no curso “A fraternidade como categoria política”, no qual concebemos a política como instrumento ético de construção de projetos societários que viabilizem o bem coletivo, a partir da compreensão de que somos todos irmãos e irmãs por possuirmos a mesma origem humana. Como sujeitos políticos, entendemos ser nosso dever assumir a parcela de responsabilidade histórica que recai sobre nós diante da construção do bem da comunidade humana, agindo a partir dos lugares existenciais aonde atuamos.

Sabe Gabriel, é muito legal ver que a juventude continua a mirar novos mundos. Este projeto está me deixando muito motivado porque a pesquisa tem um caráter participativo, ou seja, será construída com os jovens da região a ser investigada, onde devolveremos a eles os resultados colhidos em nossos questionários a fim de possibilitar-lhes uma visão mais profunda de seu processo de ação cidadã. Com esta devolução dos resultados pensamos em colaborar com eles no sentido de mantê-los como sujeitos ativos do seu processo social ao alimentarmos a sua capacidade reflexiva, prevendo inclusive a realização de um seminário local, convidando a todos os envolvidos na pesquisa para verificarmos os resultados e pensarmos juntos sobre o que fazer, pois os estudantes da nossa escola entendem a política não apenas como uma reflexão sobre a realidade, mas como uma ação coletiva conseqüente a partir dessa compreensão. Esta ação tem provocado em mim uma reflexão sobre a importância do outro em nossa vida. De fato, Gabriel, são muitos “outros” com quem nos relacionamos no dia a dia.

O primeiro outro, possivelmente, é o outro-eu com quem dialogamos interiormente nos mergulhos que realizamos em nós mesmos constantemente. Esse diálogo com o outro-eu permite-nos compreender melhor nossa dignidade, nossas necessidades, nossas buscas e escolhas, desenvolvendo o cuidado por nossas vidas pessoais, zelando por elas.
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O segundo outro podemos dizer que é o outro-tu, aquele com quem dialogamos diretamente e que nos confirma em nossa existência. Tzevetan Todorov nota que ao final de algumas semanas após o nascimento, dá-se um acontecimento especificamente humano: a criança tenta captar o olhar da mãe – o outro-tu -, não só para que ela venha a alimentá-la ou reconfortá-la, mas porque esse olhar fornece por si só um complemento indispensável: ele o confirma em sua existência. Também Leahy assinala que é por meio do olhar e do sorriso da mãe que a criança é despertada para a autoconsciência de ser aceita e amada; pelo amor desse outro-tu humano, que é a mãe, a criança chega a saber que é amada, digna de amor e capaz de ir além de si mesma no amor. Despertada na consciência também de que não é a criadora desse outro-tu que lhe ama e, gradativamente, vai compreendendo que mãe e pai não são tudo, mas que existe um “Tu Absoluto” para o qual se está orientado de modo misterioso. É porque o outro-tu nos ama, nos fala e nos olha que nós existimos enquanto sujeitos humanos. Sem a presença do outro-tu nós não poderíamos aceder à humanidade.
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Num terceiro momento existe também o outro-ele, aquela pessoa que existe em seu ser pessoal-social, mas que necessariamente não mantemos com ele um relacionamento direto. É também aquele outro de quem falamos. Na maioria das vezes nos relacionamos com o outro-ele através das instituições: o Estado, as igrejas, o mercado, as associações. Pelos diálogos anteriores cultivados com o devido cuidado com o outro-eu e com o outro-tu, vamos ter a compreensão que também o outro-ele é portador de necessidades semelhantes às nossas, é capaz do diálogo amoroso semelhante ao que mantemos com o outro-tu e, consequentemente, estas instituições através das quais nos relacionamos precisam garantir a existência de sua vida em plenitude.
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Na relação face a face do eu com o tu nós podemos entender a dimensão ética do ser humano. Sob a ótica da fraternidade, à medida que me relaciono não posso não ser responsável. Como afirma Lévinas, a responsabilidade por outrem é o que de mais substancial há em mim e que me constitui como humano. É o que confere “espírito ao homem”. O outro, em sua vulnerabilidade, deixa-me igualmente vulnerável e não sou capaz de me esquivar ao seu olhar. Ao percebê-lo, não por meio de minha inteligência, mas de minha sensibilidade fraterna, sinto-o como sobre a minha pele. Coloco-me no seu lugar e sofro seu sofrimento em mim.
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Com a chegada do outro-ele, a dimensão ética amplia-se para a dimensão política, significando a existência de outros, da multiplicidade de sujeitos que fundam e constituem a polis. Portanto, a democracia entendida como democracia radical, pressupõe o reconhecimento e a valorização dessa diferença. Implica a aceitação da diferença, onde o “outro” muitas vezes não compartilha com o “eu” os mesmos ideais ou valores, mas requer o reconhecimento mútuo do direito que todos tenham as mais diferentes expressões na vida da comunidade humana. Uma democracia radical e plural consiste na abertura para ouvir a voz do outro e construir sínteses capazes de convivência solidária e vida humana autêntica para todos.
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Logo, a responsabilidade pelo outro torna-se maior quando se trata da responsabilidade política que tem por finalidade o bem da coletividade. Como atesta Hans Jonas, a responsabilidade é um correlato do poder. Se o poder e o seu exercício corrente crescem até alcançar certas proporções, modifica-se não somente a magnitude, mas a natureza qualitativa da responsabilidade, pois os feitos do poder geram o conteúdo do dever, sendo esse essencialmente uma resposta àquilo que acontece. Assim, aquilo que liga a vontade ao dever, o poder, é justamente o que desloca a responsabilidade para o centro da moral. Mas isso é exatamente o que Aristóteles havia dito ratio essendi do próprio Estado: este surge para tornar possível a vida humana e continua a existir para que o bem coletivo seja possível. Essa deve ser a preocupação do verdadeiro homem público.
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Ainda segundo Hans Jonas, a ética existe porque os homens agem; ela tem de existir para ordenar suas ações e regular seu poder de agir. Sua existência é tanto mais necessária quanto maiores forem os poderes do agir que ela tem de regular. Mas o homem ético não é tanto aquele que cumpre as regras morais, mas principalmente quem faz o bem ao outro em virtude do outro, que faz o bem em virtude do bem.
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E por último, Gabriel, existe o outro-cósmico, que em sentido cronológico seria o primeiro outro, de onde todos nós brotamos. Um casamento interessante entre esses outros-cósmicos se deu, por exemplo, entre o hidrogênio e o oxigênio, dois fluídos combustíveis que, ao se tornarem um, deram vida a Água, um líquido não combustível. Para mim, esse casamento mostra a força oculta de que é portadora a unidade da vida.
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Por isso, Gabriel, para mim tem sido importante lapidar o meu olhar para o sentido desses relacionamentos: porque a vida só tem um sentido, que precisamos ir descobrindo-o sempre nessa nossa caminhada.
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Bom dia, Gabriel! E obrigado pela companhia de hoje.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Educar para a mudança

Alexandre Aragão


Direito à educação significa garantir acesso igual de todos os membros da comunidade nacional a uma educação de qualidade, que lhes forme para uma cidadania ativa e solidária. O Estado tem a obrigação de financiar a escola pública, que deve ser democrática e participativa no que se refere à sua gestão, devendo existir como escolas-comunidades, capazes de solucionar os conflitos inerentes à vida social através de uma prática dialógica contínua de mútua compreensão. A escola pública deve ser um espaço para a construção de uma nova cidadania, para a defesa dos direitos humanos, buscando a gestação de um espaço público de decisão estatal, visando a uma sociedade fraterna.

E o que seria pensar a educação na perspectiva de direitos humanos?

Antes de tudo é pensar a elaboração de uma nova cultura fundamentada no respeito à dignidade de toda e qualquer pessoa e no fortalecimento do vínculo solidário social baseado no reconhecimento do outro como um irmão-irmã pela mesma origem humana. Trata-se de uma educação que vise à afirmação dos relacionamentos de gratuidade e reciprocidade, respeitando as diferenças. Requer, portanto, uma mudança radical do nosso pensar, sentir e agir.

Entre as diversas iniciativas podemos citar o MEB – Movimento de Educação de Base – organismo da sociedade civil vinculado à CNBB, que há 47 anos realiza ações diretas de educação popular procurando “contribuir para a promoção integral de jovens e adultos através da formação de camadas populares para a cidadania, buscando trilhar os caminhos de superação da exclusão social”; a associação civil Instituto Paulo Freire, que se constitui numa rede em mais de 90 países, oferecendo consultoria, assessoria e educação continuada, com o objetivo de construir referências eco-político-pedagógicas e instrumentos concretos que viabilizem a realização de uma educação cidadã nas escolas.

Merece ainda destaque a experiência da Escola Santa Maria (ESM), na empobrecida Zona da Mata pernambucana, em Igarassu, com 557 estudantes, mantendo-se através de uma rede de solidariedade à distância, composta por famílias brasileiras e estrangeiras, que assumem as mensalidades dos alunos. O projeto pedagógico da ESM tem como objetivo “a educação integral do homem, procurando formar sujeitos ativos e transformadores, capazes de injetar no mundo em que vivem valores como a solidariedade, a justiça e o amor, estando também mais aptos e preparados para ingressar no mundo do trabalho”. Dez professores atualmente trabalhando na ESM são ex-alunos/as seus. A gestão se dá de forma participativa, integrando os esforços da equipe administrativa, corpo docente e discente, funcionários e famílias dos alunos. Segundo a diretora, “procura-se conduzir a Escola com o olhar que brota de uma fraternidade social realimentada semanalmente”.

O advento de um novo mundo passa necessariamente por uma educação para a mudança de nossa forma de ser, que nos leve a um novo olhar com sensibilidade e responsabilidade as necessidades do outro.