sábado, 21 de fevereiro de 2009

Reflexões sobre a comunhão

Alexandre Aragão


Comunhão é um substantivo feminino que significa ato ou efeito de comungar; ação de fazer alguma coisa em comum ou efeito dessa ação; sintonia de pensar, sentir ou agir; comunicar, colocar em comum; união. Deriva do latim communio, comunidade.
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Marcel Mauss (2001), em sua obra Ensaio sobre a dádiva, ao observar grupamentos antigos da Melanésia, da Polinésia e do noroeste Norte-Americano, registra que, para aqueles povos primitivos, recusar-se a dar como recusar-se a receber uma dádiva, equivale a declarar uma guerra, é recusar a aliança e a comunhão. Ou seja, a dádiva surge nas relações sociais dessas comunidades primitivas como superação da guerra. Uma forma de contrato arcaico, o potlatch. Sua constatação é de que em todas as instituições desta parcela da humanidade tudo se passa como se houvesse troca constante de uma matéria espiritual, mediatizada pelas coisas e pelos homens, entre clãs e indivíduos. Ele afirma:

Se damos as coisas e as retribuímos é porque nos damos e nos retribuímos <> - dizemos ainda, delicadezas. Mas também é que damos a nós mesmos ao darmos aos outros, e, se damos a nós mesmos, é porque <> nós mesmos – nós e o nosso bem – aos outros (p. 140). As sociedades progrediram na medida em que elas próprias, os seus subgrupos e, enfim, os seus indivíduos, souberam estabilizar as suas relações, dar, receber e, finalmente, retribuir. (...) Os povos, as classes, as famílias, os indivíduos, poderão enriquecer, mas não serão felizes senão quando souberem sentar-se à volta da riqueza comum (p.196).
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Comentando esses registros de Mauss, o professor Marcos Lana (2000) afirma que o ato de dar e receber implica não só uma troca material, mas também uma troca espiritual, uma troca entre almas. Ao dar dou sempre de mim mesmo. Ao aceitar, o recebedor aceita algo do doador, aproximando um do outro. Por mais que elas variem, as dádivas sempre reiteram que, para dar algo adequadamente, devo colocar-me um pouco no lugar do outro, entender, em maior ou menor grau, como este, recebendo de mim, recebe a mim mesmo.
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O antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (2007), seguindo a mesma linha de pensamento, afirma:

Toda sociedade humana se preserva e transforma na medida em que conserva e inova sistemas de reciprocidade através dos quais constantemente fluem e são trocadas entre categorias de sujeitos sociais: os seus bens, as suas pessoas e as suas mensagens. (...) A reciprocidade, a troca e a aliança, eis o que nos fez passar do bando biológico ao grupo cultural. Eis a pedra fundamental do edifício social da cultura. (p.16). E o princípio de tudo o que cria a uma só vez o ser humano, a sociedade humana e a cultura parte de algo absolutamente novo como experiência de vida no mundo. Parte de uma tomada coletiva de decisão iniciada em atos de renúncia de si e completada com um dar ao outro o que é meu, na espera de que este se obrigue a uma semelhante renúncia e a uma equivalente dádiva. (p.17).
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Daquilo que Mauss pesquisou pode-se observar que a vida das sociedades primitivas é mais complexa, mais ativa e mais dinâmica do que muitas vezes pensamos; a vida econômica está ligada à valores morais e à religiosidade; para ele a coesão social exige também a reciprocidade, mesmo se expressa em laços contratuais de compromisso, no sentido de respeito mútuo, apontando para além do cálculo utilitário.
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Segundo a socióloga pernambucana Vera Araújo, primeiramente existe um “dar” contaminado pela vontade de poder sobre o outro, que em vez de emancipação recíproca, busca a dominação ou mesmo a opressão de indivíduos e povos; como também o dar utilitarista que está interessado no proveito próprio, que no fundo, um e outro, são expressões egoístas características da cultura de pensamento único neoliberal atual. Essa forma de dar não é geradora de uma cultura nova, porque é um dar aparente que na verdade aprisiona em vez de libertar. Por outro lado existe um dar que se abre ao outro – indivíduo ou povo - e busca o respeitando sua dignidade e subjetividade. Esta inclui usos, costumes, cultura, tradições etc. Nesta modalidade, dar-se e dar constituem um único movimento. Este dar é capaz de construir mundo novo a partir de uma nova mentalidade de comunhão recíproca e emancipação dos sujeitos. Portanto, não é dar e receber de qualquer forma. É preciso promover aquele dom que gere uma reciprocidade profundamente humana, capaz de uma cultura nova e emancipadora (Araújo, 2000).
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Na visão do teólogo João Batista Libânio (2006), no princípio está a comunhão do Trino e não a solidão do Uno, ou seja, confessar a Trindade significa dizer que o último fundamento do ser humano é a comunhão com os outros e com o Outro, e não a solidão egoísta. Esta confissão trinitária compreende em si conseqüências densas e profundas para uma cultura, política e economia de comunhão. Na base da convivência está a comunhão: se o cristão se convence de que se origina da comunhão trinitária e, encarnando-a em sua vida, anuncia-a aos outros, resulta-lhe a necessidade de antecipar nas sociedades terrestres a comunidade que será o convívio eterno.
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Outro aspecto da comunhão, como no-la apresenta Leonardo Boff (1986), é que a comunhão implica um caminho de duas vias que vai de um ao outro. Não há comunhão só de um lado. A comunhão, em seu próprio conceito, supõe pelo menos duas presenças que se relacionam. Há, pois, uma reciprocidade entre as duas presenças. A reciprocidade, por sua vez, tem como pressuposto certa co-naturalidade entre os que comungam. Dois seres totalmente distintos, entre os quais pouco há de comum, dificilmente podem estabelecer laços de comunhão. Entre recíprocos e co-naturais vigora certa atração quanto maior, mais perfeita se apresenta a comunhão; nunca haverá fusão, pois cada parte conserva sua identidade; mas o desejo e o impulso de fusão, de tornar-se um com o outro, caracterizam o nível de profundidade da comunhão.
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Segundo o professor Boaventura de Sousa Santos (2005), o novo conhecimento pós-moderno emancipatório a ser produzido precisa basear-se sobre a solidariedade como forma de superação do colonialismo que consiste na ignorância da reciprocidade e na incapacidade de conceber o outro a não ser como objeto. A solidariedade é o conhecimento obtido no processo histórico de nos tornarmos capazes de reciprocidade, através da construção e do reconhecimento da intersubjetividade.
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O professor Marcos Arruda (2006, p. 209) reflete que:

A chave para conseguir erguer esta ponte entre o pessoal e o social, entre o diverso e o uno, é que cada um respeite a subjetividade do outro como quer que a sua seja respeitada. Respeito e aceitação do outro, compreensão da alteridade como prolongamento e complementaridade de si próprio, busca cotidiana de superação da tensão entre o Eu e o Outro, tudo isso tem o nome simples de amor. Para articular criativamente diversidade e unanimidade, para realizar a democracia, a partilha, a racionalidade dirigida à satisfação das necessidades de todos (eqüidade), a transcendência (sacrifício), a consideração para com as outras gerações (sustentabilidade), a responsabilidade pelo humano e pelo natural, a solidariedade, a sociabilidade, a conviviabilidade, a irmandade... a chave é o amor.
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Assumir a comunhão como estilo de vida, segundo Tévoédjrè (1986), é também a recusa de uma maneira egoísta e consumista de viver e de estar no mundo. Nenhuma pessoa que, em sua vida interior e em suas relações, não tenha enfrentado essa opção, que implica uma recusa concreta e contínua, poderá falar de solidariedade contratual ou de comunhão. É preciso, antes de tudo, que se encarne em nós mesmos a energia da organização solidária que nos conduza a uma cultura de uma sociedade fraterna a ser construída com os outros.
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O sociólogo italiano Tommaso Sorgi (1998) sublinha que não se trata apenas de dar, mas também de dar a si mesmo. Além de ser uma comunhão de bens, constata-se claramente no Projeto Economia de Comunhão* uma comunhão também de pessoas. O resultado é o surgimento de novas situações sociais, com novos tipos de relacionamentos, novos modelos socioculturais, frutos de uma nova mentalidade.
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Os animais, segundo Maturana (1996), possuem duas maneiras básicas e opostas de se relacionarem: a) aceitação mútua, confiança e ato de comungar e cooperar; b) oposição, desconfiança, luta pela força ou astúcia pelo domínio.
Enquanto os macacos têm sua maneira de viver centrada em posições hierárquicas, manipulação mútua por meio da intimidação, em contínua luta por acesso privilegiado a sexo e comida, agregados em grandes bandos de 15 indivíduos ou mais, a maneira do Homo viver é centrada na ternura, sexualidade aberta, partilha, cooperação e intimidade em pequenos grupos de 07 a 08 membros. Maturana alerta que nos últimos séculos nosso espaço psíquico tem se assemelhado ao dos macacos devido ao desenvolvimento de uma cultura humana que privilegia a conduta de relações de domínio, de vantagens e privilégios em relação aos bens produzidos material e culturalmente.
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Nesse sentido, Marcos Arruda (2006) nos adverte que não se criam novas estruturas, novas instituições e novas relações sociais com velhos seres humanos. Para o autor, velhos somos todas e todos que carregamos conosco a marca profunda, e diariamente renovada, da cultura do egoísmo, da competição predatória contra o outro, do consumismo desenfreado, do mimetismo, do culto fetichista às máquinas e à técnica, do materialismo vulgar que só reconhece como realidade o visível e o imediato. Uma cultura de comunhão é a da valorização da diversidade como base para a elaboração de projetos em comum e da colaboração para torná-los realidade. Esta é também a cultura do respeito ao outro, do acolhimento, da busca de complementaridades que enriqueçam o que sou e o que tenho, a fim de que, juntos e conscientemente solidários, sejamos mais e melhores do que temos e somos individualmente. Uma cultura de comunhão é também uma cultura do amor. Colocar o homem no centro da economia requer um tipo de pessoa capaz de criar estruturas econômicas a serviço do homem em plena comunhão com a natureza, para satisfação de suas necessidades e para seu crescimento.
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Para Bruni (2005) o objetivo do Projeto Economia de Comunhão (EdC)* não é apenas o de partilhar os resultados das empresas com sujeitos empobrecidos, mas uma parte dos resultados é destinada a estruturas de formação de homens e mulheres novos, porque somente com uma mentalidade e uma práxis nova é possível construir um mundo novo. Ou seja, para a EdC homens e mulheres novos não são resultado de um epifenômeno, de uma simples mudança das estruturas de produção ao redor, como pressupõe algumas teorias sociais. É um processo dialético de relação entre a mudança pessoal interna, fruto da vontade e da consciência humana de construir uma realidade nova, com as realidades objetivas naturais e sócio-culturais. Tratam-se de motivações intrínsecas que, logicamente, no processo dialógico de construção da realidade retroalimentam-se das objetividades sociais construídas.
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Como atesta Amorim (2003), revolucionar a estrutura da produção parece ser necessário, mas não suficiente, porque uma revolução pode mudar de rumo e degringolar como ocorreu historicamente. A transformação deve se dar em outros níveis, sobretudo num nível antropológico mais profundo.
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* O Projeto Economia de Comunhão (EdC) é uma expressão no campo sócio-econômico-cultural da espiritualidade da unidade do Movimento dos Focolares.
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3 comentários:

  1. Grande Alexandre!!
    Como vai? Recuperando bem?
    Fico aqui em unidade contigo neste momento de "aprofundamento espiritual", torcendo pela tua pronta recuperação.
    Muito bom o texto sobre a comunhão!!! É já um resultado da atual experiência?
    Grand abraço
    Tatu

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  2. Caro Alexandre,

    Parabéns pelo excelente artigo, fundamentado na doutrina de pessoas do mais alto nível de diversos campos do conhecimento. Obrigado por mais essa contribuição que você nos brinda, para reflexão à tão importante matéria. Mauricio M. Lima.

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  3. Alexandre,
    Tenho acompanhado suas notícias pelo seu blog! Muito interessante!
    Aceita um grande abraço, e mande notícias, quando puder.

    João Manoel Motta

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