quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Bolsa Família, nove anos depois

Estamos postando artigo de Tereza Campello, ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome


Bolsa Família, nove anos depois

No dia 20 de outubro de 2003, o Bolsa Família foi lançado pelo presidente Lula sob expectativa de garantir que todos os brasileiros passassem a ter três refeições ao dia. Hoje, podemos comemorar muito mais.

Ao priorizar as mulheres como titulares dos benefícios, mais que assegurar recursos para alimentação, remédios, material escolar e higiene às crianças e à família, conquistamos avanços com aumento do poder decisório da mulher e do exercício de seus direitos reprodutivos.

Optamos por soluções simples e modernas, como o pagamento via cartão magnético -instrumento que não só facilita o controle como também torna as relações impessoais e reduz interferências políticas.

O cartão colocou o benefício diretamente na mão da família, fortalecendo sua autonomia, desburocratizando o programa e injetando dinheiro diretamente na economia.

Já imaginávamos que o Bolsa Família traria dinamismo às economias locais, mas não contávamos com o efeito multiplicador que o programa teria, algo que se fez notar com maior nitidez a partir da crise que eclodiu em 2008 nos países ricos.

Submetidos a todo tipo de pesquisas, estudos e questionamentos, muitos mitos, preconceitos e dúvidas sobre o Bolsa Família foram paulatinamente sepultados.

Não houve estímulo à natalidade ou o chamado "efeito preguiça" entre os beneficiários. Pesquisas mostram impactos positivos do Bolsa Família na progressão e frequência escolar de crianças e adolescentes, na realização de pré-natal, na vacinação e na amamentação. Pela primeira vez, crianças e jovens pobres apresentam resultados melhores que a média do país em indicadores como taxa de aprovação e evasão escolar.
Nove anos depois do lançamento, temos um programa que chega aos quatro cantos do país, beneficiando 50 milhões de pessoas a um custo de 0,46% do PIB.

Abrangente, eficiente e bem focalizado nos mais pobres, o Bolsa Família viabilizou a construção de um cadastro socioeconômico das famílias mais pobres do Brasil, integrando a maioria dos programas sociais e transformando o Brasil em exportador de tecnologia social. Tornou-se modelo de programa de transferência de renda no mundo e está entre os mais recomendados pela ONU.

O sucesso do Bolsa Família nesses nove anos só foi obtido graças à dedicação de dezenas de milhares de profissionais das áreas de assistência social, educação e saúde no nível federal, nos Estados e em todos os municípios. Juntos, construímos mais que um programa: a mais ampla articulação federativa em políticas públicas, colocando o Estado a serviço de quem mais precisa.

Essas conquistas permitiram à presidenta Dilma Rousseff propor o desafio de buscar a superação da extrema pobreza por meio do Brasil Sem Miséria. Utilizando o mapa da pobreza desenhado a partir do Bolsa Família, estamos expandindo a oferta de vagas de qualificação profissional pelo Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), de escola em tempo integral pelo Mais Educação, de vagas em creches e muito mais.

Com o Brasil Carinhoso -ancorado no Bolsa Família e com ênfase na saúde e na educação de crianças extremamente pobres com menos de seis anos- demos mais um passo decisivo: reduzimos em 40% a extrema pobreza no Brasil.

O Bolsa Família ajudou a construir um país mais justo e mais igual ao longo desses nove anos. O Brasil está de parabéns.

TEREZA CAMPELLO, 50, economista, é ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

sábado, 25 de agosto de 2012

A FORÇA DA DEMOCRACIA



Alexandre Aragão de Albuquerque


Conta-se que num país não muito distante milhões de seus habitantes eram excluídos do uso do bem da energia elétrica em suas residências, em pleno século XXI. Os governos até então nada tinham feito por essas populações.

Ao tomar posse por meio do sufrágio universal popular, vitorioso nas eleições presidenciais diante do candidato da situação, uma das primeiras iniciativas do governo do Presidente recém-eleito foi a de criar um programa cujo desafio era o de acabar com a exclusão elétrica em seu país, com a meta de levar o acesso à energia elétrica, gratuitamente, para mais de 10 milhões de pessoas do meio rural. 

O mapa da exclusão elétrica daquele país revelava que as famílias sem acesso à energia estavam majoritariamente nas localidades de menor Índice de Desenvolvimento Humano e nas famílias de baixa renda. Cerca de 90% delas têm renda inferior a três salários-mínimos.

Na reunião com o grupo de trabalho de técnicos que estudaram como implantar o programa, o Presidente teve uma grande decepção. Os tecnocratas apresentaram-lhe uma dezena de obstáculos para a implantação do referido programa. 

Ao final, após ouvi-los pacientemente, o Presidente disse ao grupo de profissionais que não estava ali para escutar deles a relação de obstáculos para a implantação daquela política pública, mas para saber que procedimentos deveriam ser adotados para os respectivos obstáculos serem superados. Com sua sensibilidade política, perguntou-lhes: “Vocês já viveram em uma residência e numa comunidade sem luz elétrica?”. 

E concluiu: “Este programa que objetiva disponibilizar luz para todos será implantado. Caso vocês não tenham a capacidade de encontrar soluções, nós podemos convidar outros profissionais para compor um novo grupo de trabalho”.

Ao final, ele decidiu conceder àqueles profissionais mais quarenta e cinco dias de prazo para realizarem pesquisas e estudos que viabilizassem a implantação da política pública de inclusão de energia elétrica. Finalmente, findo o prazo estabelecido, os técnicos apresentaram um projeto capaz de viabilizá-la.

O objetivo da política pública que viabiliza luz para todos ficou assim definido: “que a energia seja um vetor de desenvolvimento social e econômico dessas comunidades, contribuindo para a redução da pobreza e aumento da renda familiar. A chegada da energia elétrica facilitará a integração dos programas sociais do governo federal, além do acesso a serviços de saúde, educação, abastecimento de água e saneamento”.

Sabe-se que até a presente data o Programa já alcançou cerca de 14,4 milhões de moradores rurais daquele país. 

Mas os benefícios da chegada da energia elétrica vão além. Estima-se que as obras do Programa tenham gerado cerca de 439 mil novos postos de trabalho e utilizado 1 milhão de transformadores e mais de 7,3 milhões de postes, dos quais 13,3 mil foram desenvolvidos com nova tecnologia utilizando resina de poliéster reforçada com fibra de vidro, que facilitou seu transporte pelas estradas e rios, já que por serem mais leves e por flutuarem, dispensam o uso de caminhões, muitas vezes intrafegáveis.

Foram empregados também 1,4 milhão de km de cabos elétricos, parte deles subaquáticos para a travessia de rios, vencendo distâncias que antes não poderiam ser alcançadas. Só num único estado, foram utilizados 28 mil metros de cabos elétricos colocados dentro dos rios. Além disso, a economia também se beneficia com a instalação da eletricidade no campo. A pesquisa de impacto realizada no ano de 2009 mostrou que 73,3% passaram a ter geladeiras em suas casas e 24,1% compraram bombas d’água, entre outros.

Isso é resultado da política, daquela força estranha chamada democracia.


terça-feira, 5 de junho de 2012

UM MARCO CIVILIZATÓRIO


Alexandre Aragão de Albuquerque


Em maio passado, a democracia brasileira deu mais um passo rumo à sua consolidação por meio da implantação da Comissão da Verdade: um marco civilizatório iniciado com as lutas do povo brasileiro pela conquista das liberdades democráticas, pela anistia, pelas eleições diretas, pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte, pela estabilidade econômica, pela busca do crescimento com inclusão social e redistribuição de renda. 

Uma redemocratização construída passo a passo, e à nossa maneira, por meio de sacrifícios humanos irreparáveis, como também mediante a construção de pactos nacionais de grande valor, traduzidos na Constituição de 1988.

Como afirmava o memorável Ulysses Guimarães, “a verdade não desaparece quando é eliminada a opinião dos que divergem do poder. Ela não mereceria esse nome – verdade – se morresse quando censurada”. A verdade, de fato, não morre por ter sido ocultada: ela continua lá, esperando o tempo amadurecer para finalmente emergir e tornar-se patrimônio comum de um povo livre e soberano.

Os regimes autoritários sobrevivem pela interdição da verdade. E foi isso que vivenciamos durante os anos da ditadura militar então vigente em nosso país. Agora, é obrigação da democracia fazer o seu resgate. De fato, verdade, na tradição grega ocidental, é exatamente o contrário da palavra esquecimento ou ocultação. Verdade é memória e história: a capacidade de recordar e contar o que aconteceu, possibilitando ao coração e à mente darem sentido à existência humana passada, presente e futura.

Como tão bem definiu a presidenta Dilma Rousseff, “a ignorância sobre a história não pacifica, mantém latentes mágoas e rancores. A desinformação não ajuda a apaziguar, apenas facilita o trânsito da intolerância. A sombra e a mentira não são capazes de promover a concórdia”.

De fato, encontramos no ensinamento milenar da tradição cristã a expressão “a verdade vos libertará”. Portanto, o bem comum, fundamento sobre o qual deve se apoiar qualquer projeto de democracia, não pode florescer num terreno de engodo e de mentira. O bem comum só pode ser verdadeiramente bom se for edificado sobre a rocha da verdade.

Nem o ódio nem a mentira nos libertam; pelo contrário, são fontes de opressão de humanos contra humanos. Ser livres significa estar orientados para agir em função do bem pessoal e coletivo. É precisamente por meio de suas ações – políticas, econômicas, sociais e pessoais – que os seres humanos ser aperfeiçoam enquanto tal, formando o mundo ao seu redor e formando-se como pessoas. Os atos humanos não produzem apenas uma mudança do estado das coisas externas, mas enquanto escolhas deliberadas qualificam moralmente o sujeito que os pratica e determinam a sua profunda fisionomia interior. Criamo-nos e recriamo-nos pelas escolhas e ações que deliberadamente praticamos.

Assim a ordenação racional da ação humana para o bem na sua verdade, com a procura voluntária e incansável deste bem, conhecido pela razão, constitui o cerne da moralidade. E nisso nenhuma pessoa, ou governo democrático, pode esquivar-se a perguntas fundamentais que orientem o seu agir cotidiano: o que fazer? Como discernir o bem do mal? E, com certeza, uma pergunta fundamental a se colocar seja: que bem devemos buscar e promover?

Com certeza aquele que garanta o bem de todos os sujeitos. Agir com convicção e exigência irreprimíveis para proteger a vida humana em suas diversas dimensões, criando as condições para a plena comunhão das pessoas na família e na sociedade, tendo em vista um desenvolvimento humano integral para todos os cidadãos e cidadãs.

A Comissão da Verdade poderá produzir um grande bem ao nosso povo na medida em que permitir uma reflexão mais amadurecida do quanto é importante encontrar os caminhos moralmente corretos para a construção do bem comum.

Não basta fazer boas obras, é preciso fazê-las por caminhos corretos, éticos, moralmente justos. Como lembra a Regra de Ouro, não fazer aos outros aquilo que não gostaríamos que fosse feito a nós. Com certeza, nenhum de nós gostaria de ser torturado nem tampouco não saber do paradeiro de um ente querido.

Pensar uma nova perspectiva democrática requer que assumamos em nossas ações pessoais – enquanto cidadãos no espaço da micropolítica – como em nossas ações institucionais – como agentes investidos de poder – uma postura moral que nos leve a encontrar caminhos justos na construção do bem de nossa coletividade.




sexta-feira, 27 de abril de 2012

A CAMINHO DA IGUALDADE


Alexandre Aragão de Albuquerque

O processo de emancipação humana é histórico e concreto. Não acontece no vazio existencial, nem cai do céu. É resultado da ação, ou seja, como diria Hannah Arendt, da política. Isto é, o caminho se faz ao andar. 

No Brasil, os problemas da pobreza, da miséria e do acesso aos direitos de educação ultrapassam a questão racial. Por isso são necessárias medidas como, por exemplo, a garantia de cotas nos vestibulares para estudantes oriundos das escolas públicas: uma das inúmeras inciativas que podem ser efetivadas para que a população de maneira geral, e principalmente os mais pobres, tenha acesso ao ensino universitário público e de qualidade. 

No entanto, a questão racial existe e deve ser levada a sério. É necessário fazer uma pequena revisão histórica para compreendê-la. Tivemos 300 anos de escravidão negra do Brasil. Fomos o último país da América Latina a “libertar” seus escravos negros, já quando não tínhamos mais escolha. Quando o fizemos, algumas regiões do país, como, por exemplo, o sudeste brasileiro, promoveram deliberadamente políticas de “branqueamento” da população, não incorporando a mão de obra negra, mas incentivando a imigração europeia – vide os escritos do Conde de Gobineau. 

Nesse contexto, como ilustração, podemos lembrar o famoso samba da Escola de Samba da Mangueira, cantado na voz de Jamelão, nos 100 anos de comemoração da Lei Áurea: “Livres do açoite da senzala, presos na miséria da favela”. Do regime escravocrata, no qual se era oprimido por um senhor, passou-se a ser oprimido por um sistema. 

A democracia se fundamenta em dois princípios básicos: liberdade e igualdade. São duas faces de uma mesma medalha que caminham dialeticamente na busca de um equilíbrio dinâmico. Há, portanto em nossa estrutura social uma injustiça histórica contra o princípio da igualdade que precisa ser reparada por meio de ações políticas afirmativas. Justiça, disse o ministro Ayres Brito, é algo que se sente. O substantivo sentença deriva do verbo sentir. É preciso não apenas a razão para definir uma sentença. É preciso sentir o outro, a dor do outro, à injustiça histórica a que o outro foi  submetido, colocar-se em seu lugar, enfim, fazer-se um com o outro. 

Nossas crianças negras crescem sem serem atendidas por médicos negros, sem enfermeiras negras, nem por professoras negras. Sem verem advogados e magistrados negros. Nossos jovens vão à universidade e não veem professores doutores negros, cientistas negros, pesquisadores negros. Até pouco tempo não havia nem bonecas negras para elas poderem brincar. 

Nossas meninas crescem achando que o ideal de beleza é ter o cabelo do branco europeu. Não assumem a negritude. Ou só a assumem quando dizem respeito ao carnaval e ao futebol. Como construir uma identidade sadia? Qual a cidadania que queremos para a população negra? 

Por isso as cotas hoje - e até quando precisar - são necessárias para corrigir um erro histórico. Isto não quer dizer de modo algum que outras camadas sociais não têm esse direito e que não devamos lutar para efetivar canais de acesso a elas também. O caminho se faz ao andar.

A decisão do Supremo Tribunal Federal foi unânime. 

O ministro relator, Ricardo Lewandowiski, em seu voto, entre outras coisas, afirmou que "as políticas de ação afirmativa adotadas pela UnB estabelecem um ambiente acadêmico plural e diversificado, e têm o objetivo de superar distorções sociais historicamente consolidadas". Além disso, segundo ele, "os meios empregados e os fins perseguidos pela UnB são marcados pela proporcionalidade, razoabilidade e as políticas são transitórias, com a revisão periódica de seus resultados". 

Já o ministro Luiz Fux foi veemente ao frisar que "a Constituição Federal impõe uma reparação de danos pretéritos do país em relação aos negros, com base no artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal, que preconiza, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária". Ou seja, o art. 3, inciso I, mostra que a liberdade e a igualdade não podem ser meramente uma declaração formal, precisam concretizar-se historicamente através de sua construção. 

Para a ministra Rosa Weber, "cabe ao Estado adentrar o mundo das relações sociais e corrigir a desigualdade concreta para que a igualdade formal volte a ter o seu papel benéfico”. Para a ministra, "ao longo dos anos, com o sistema de cotas raciais, as universidades têm conseguido ampliar o contingente de negros em seus quadros, aumentando a representatividade social no ambiente universitário, que acaba se tornando mais plural e democrático". 

Já a ministra Carmen Lúcia Antunes votou frisando que “as ações afirmativas são uma etapa. O melhor seria que todos fossem iguais e livres, salientando que as políticas compensatórias devem ser acompanhadas de outras medidas para não reforçar o preconceito. Ela frisou ainda que as ações afirmativas fazem parte da responsabilidade social e estatal para que se cumpra o princípio da igualdade". 

Por sua vez, o presidente do STF, ministro Ayres Brito afirmou que "o preconceito racial é histórico, e existe desde pelo menos o segundo século da colonização". Ele sustentou que "quem não sofre preconceito já se posiciona de forma vantajosa na escala social, e quem sofre internaliza a desigualdade, que se perpetua. O preconceito, assim, passa a definir o caráter e o perfil da sociedade. Nossas relações sociais de base não são horizontais. São hegemônicas, e, portanto, verticais. E o preâmbulo da Constituição é um sonoro ‘não’ ao preconceito, que desestabiliza temerariamente a sociedade e impede que vivamos em comunhão, em comunidade nacional”.

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terça-feira, 3 de abril de 2012

EMBRIOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

Alexandre Aragão de Albuquerque


A embriologia é uma ciência que estuda o desenvolvimento de embriões e fetos.  Surgiu com o aumento da capacidade humana em perceber a micro-vida por meio do aumento da sensibilidade dos microscópios. Todos os textos de embriologia contemporânea, em suas edições mais recentes, afirmam que o desenvolvimento humano ocorre a partir do encontro, quando o ovócito é fertilizado pelo espermatozoide: ser humano é ser fruto do encontro!

Nesse encontro é formado um DNA único que jamais será repetido ao longo da existência. É por isso que a mulher deixa de menstruar assim que está grávida: porque o seu cérebro recebe uma comunicação que existe um ser diferente – outro DNA que não é o seu - dentro de si.

Esses mesmos textos científicos afirmam que o desenvolvimento humano é um continuum. Todos nós somos expressão do fluxo irreversível de eventos biológicos ao longo do tempo, que só para com a morte. Todos nós passamos pela mesma fase do desenvolvimento intrauterino: fomos um ovo, uma mórula, uma blastocisto, um feto. E todos os embriologistas expressam sua admiração ao fato de uma célula – o ovo – dar origem a algo tão complexo como o ser humano.

O embrião humano é um conjunto de células pluripotentes organizadas e articuladas tão extraordinárias que dão origem a um indivíduo completo. Portanto, o ser humano, desde o ovo até o final da vida, passa por diversas fases de desenvolvimento - a ONTOGENIA – onde uma depende da fase anterior, mas em todas elas é o mesmo indivíduo que se autoconstrói e se auto-organiza.

Por ser um ciclo de desenvolvimento relativamente longo, houve uma necessidade contemporânea da criação de estatutos que protejam fases específicas da vida humana que requerem uma atenção especial. Criaram-se, assim, os estatutos da criança, do adolescente, do idoso.

Diante da visão utilitarista, que coisifica o ser humano, e pelo fato de o ser humano intrauterino estar totalmente desprovido de recursos de expressão externa que lhe possibilitem sua autodefesa da sua vida, torna-se mister a criação do Estatuto dos Seres Humanos Embriões e Fetos, para evitar que eles sejam assassinados por qualquer motivo.

Como sabemos, o Estado moderno foi criado justamente para garantir a vida humana, que estava ameaçada pela luta do homem forte sobre o homem fraco: homo hominis lupus. Não se pode permitir um retrocesso para o estado de barbárie por meio do assassinato de humanos indefesos e inocentes.



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sexta-feira, 30 de março de 2012

PREFÁCIO DO NOVO LIVRO DE ALEXANDRE ARAGÃO


Protagonismo e participação: desafios da ação política


Espaços institucionais são lugares que podem ser ocupados de muitas maneiras. Lamentavelmente, pela corrosão que vem se procedendo nos regimes democráticos pelo mundo afora, essa ocupação tem se dado de modo formal, para cumprir agendas políticas, pautas de plataformas de estados e governos, que não raramente privilegiam interesses outros e não a vida concreta das pessoas, suas relações sociais, seus estilos de vida. Não é novidade, nem recente, a divulgação de resultados de pesquisas feitas por vários órgãos que atestam a descrença das pessoas nas instituições, sejam elas tomadas no seu aspecto imaterial (como a religião, a política, a família), sejam no seu aspecto concreto (os partidos, as igrejas, as políticas públicas, os movimentos sociais, etc.). Muito comum também é o discurso sobre a apatia da juventude, a sua “alienação”, o seu individualismo, marcadamente ancorados no consumismo e no hedonismo, que se tornaram baluartes dos modos de viver na contemporaneidade. 
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O trabalho que Alexandre Aragão nos apresenta vem na contramão dessas “lógicas”. Trata-se de um fragmento de longas experimentações, que constituem a trajetória de militância política e vida acadêmica do autor, desde a sua participação na política estudantil dos anos 1980, na Universidade Federal de Pernambuco até a coordenação da Escola Civitas de Fortaleza, entre 2007 e 2009. Desse longo percurso, que agrega silenciosamente tantas outras experiências - não relatadas no texto, mas implícitas em muitas passagens do trabalho -, foi gestado o objeto da sua dissertação de mestrado apresentado ao Programa Políticas Públicas e Sociedade, da Universidade Estadual do Ceará, em 2011: a participação de jovens estudantes do ensino médio de uma escola pública, no Orçamento Participativo de Fortaleza. Problematizar como se deu a participação dos jovens que ocuparam o espaço público na condição de protagonistas e não de meros expectadores, foi o desafio posto a si mesmo pelo autor e o coração da pesquisa por ele empreendida.

Falo em protagonismo remetendo à origem etimológica da palavra: agonia em luta. Neste sentido, toda experiência de participação política tem a sua agonística: ela emerge do conflito, da disputa travada no jogo de forças que os homens tramam entre si, do combate nas ações cotidianas. Tal espírito de luta, como nos ensinam as narrativas épicas dos gregos, entretanto, não exalta o aniquilamento dos vencidos, mas a afirmação da nossa condição de homens livres, capazes de desenvolver o espírito de tolerância, respeito ao oponente e senso de justiça.

Na esteira da construção desses valores temos a invenção da Política, como dispositivo de exercício de poder que se contrapõe à guerra. Uma discussão inovadora sobre o poder, esse tema tão caro à filosofia política, é brilhantemente feita por Alexandre Aragão, sendo essa uma marca forte do trabalho: os modos pelos quais o exercício do poder político é apropriado por jovens que em geral, encontram-se à margem da esfera pública.

Privilegiando a voz dos próprios atores, sejam eles gestores, professores e, sobretudo, alunos, ouvidos em situação de observação participante o autor narra o percurso da participação de jovens estudantes no Orçamento Participativo de Fortaleza e seu impacto sobre a construção da cidadania, que se inicia numa sala de aula e se amplia com a experiência da Escola Civitas.

O trabalho de campo da pesquisa salta aos olhos, num enredo que convoca o leitor à reflexão e que instiga a discussão acerca da relação do pesquisador com seu objeto. Longe de defender uma neutralidade asséptica o autor explicita na metodologia adotada e na análise dos dados sua própria posição política, marcada pelos valores nos quais acredita e que defende: a abertura à diferença como condição necessária ao diálogo que produz e sustenta a ação política, a igualdade e a liberdade como pilares da construção da democracia e a comunhão fraterna, ancorada na generosidade de uma doação que não é apenas de bens materiais e simbólicos, mas de si mesmo, como força motriz da construção de uma nova sociedade, que começa, entretanto, por ações miúdas, que ganham visibilidade e força quando compartilhadas.

Por um lado, a narrativa aponta inquietações, contradições, impasses e desafios vividos pelos protagonistas, e por outro, apresenta reflexões sobre as alternativas encontradas, muitas vezes num exercício de teimosia e esperança de adolescentes e jovens que insistiram em desafiar a ordem posta das coisas: o que queremos para o nosso bairro, para a nossa cidade? Como queremos? Do que precisamos, quais as nossas necessidades, nossos desejos? Como fazer os moradores participarem? Como fazer nossa voz ser ouvida em espaços institucionais pouco afeitos à participação popular?

Destaco aqui essa agonística, ressaltando a enorme distância que existe entre a idéia de um projeto e sua realização após ter se institucionalizado e disso não escapam as experiências rotineiras do Orçamento Participativo. Ao produzem fraturas nessa lógica da participação formal ou burocrática, ao cavarem “brechas” para uma participação concreta e democrática, os atores da experiência relatada por Alexandre Aragão denunciam a tendência que as organizações sociais possuem ao fechamento e reprodução de práticas instituídas, mas ao mesmo tempo, anunciam a possibilidade de mudança, que se dá a partir do compromisso político-afetivo das pessoas, enfatizando o caráter coletivo dessas ações. É esse sentido do coletivo – a construção de um “nós” em contraposição a “eu e os outros” - que forja nos jovens uma nova dimensão da política, antes vista tão somente no seu aspecto negativo, como campo de corrupção e desavenças.

“Sejamos realistas, tentemos o impossível”, dizia uma das frases gravadas nos muros de Paris, em maio de 1968. Numa época de perda de ilusões, de descrença em mudanças, de acomodação e indisposição para a luta, de insegurança e medo generalizado que produz isolamento e apatia, os atores da experiência apresentada neste livro mostram que pequenas ações cotidianas de participação política podem resultar na conquista de bens sociais a serem partilhados, em alegria, reconhecimento e esperança. É, pois, com enorme satisfação que prefacio este livro, convidando o leitor a mergulhar nas experiências nele narradas e encontrar a vida que nelas pulsa, através de seus personagens e das ações por eles protagonizadas.


Maria Teresa Nobre
Universidade Federal de Sergipe

domingo, 12 de fevereiro de 2012

UMA MUDANÇA DE BASE


Alexandre Aragão


O ser humano possui uma singularidade dentro do universo cósmico no qual habita e do qual faz parte: possui corporeidade e subjetividade. Consequentemente, no exercício de sua subjetividade, não pode furtar-se a perguntas que lhe surgem ineludivelmente em sua travessia existencial. Quem sou? De onde venho? Qual é o meu lugar dentro desta miríade de seres? O que significa estar jogado neste minúsculo planeta Terra? De onde provém o universo? O que podemos esperar além da vida e da morte? Por que choramos a morte de nossos amigos e parentes e a sentimos como um drama sem retorno?


Possuir a capacidade de levantar semelhantes interrogações é próprio de um ser portador de espírito. Espírito é aquele momento do ser humano corporal-espiritual em que ele escuta estas interrogações e procura dar-lhes respostas. E para tal, utiliza-se de diversos recursos e conhecimentos para formulá-las: por meio de estórias mitológicas, de desenhos em paredes de cavernas ou mediante sofisticadas filosofias, produções teológicas, ritos religiosos e conhecimentos científicos e artísticos..


Como um ser falante, o ser humano é um ser interrogante, um ser espiritual.


Assim, vamos encontrar as mesmas perguntas nos escritos de diversos povos e culturas: nos escritos bíblicos de Israel; nos Vedas e no Avestá; nos escritos de Confúcio e Lao-Tse; nas pregações de Tirtankara e de Buda; nos poemas de Homero, nas tragédias de Eurípides e Sófocles, como nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. São questões que se apresentam como uma fonte comum de uma exigência de sentido que urge no coração humano. E das respostas a tais perguntas depende efetivamente a orientação que se imprime à existência.


Portanto, o ser humano não se contenta apenas com os fatos. Sua dimensão espiritual impõe-lhe desenvolver a capacidade de continuamente criar sentidos e inventar símbolos que lhe permitam discernir valores e significações. As coisas, para os humanos, não são meramente coisas, pois são portadoras de indicações de mensagens a serem decodificadas. É dessa dimensão espiritual humana que nasce a espiritualidade.


O que seria então uma espiritualidade humana?


Pode ser concebida como a atitude de desenvolver o cuidado pelas compreensões, sentidos, símbolos, significações e valores garantidores do bem da existência pessoal e coletiva de todos os humanos, implicando compromissos éticos correspondentes.


A ética nasce justamente das perguntas pelos critérios que tornem possível o enfrentamento da vida com dignidade. O ser humano é o ser que pode levantar a questão da validade sobre a sua práxis, sobre aquilo que deveria ser e não é, e sobre aquilo que não é e deveria ser. A ética emerge nesse contexto como reflexão crítica destinada a tematizar os critérios que permitam superar o mal e conquistar o bem à humanidade. Seu objetivo fundamental é estabelecer o marco no qual seja possível configurar o mundo humano enquanto espaço efetivo de liberdade e justiça para todos.


Pode-se dizer que há um duplo momento no exercício de uma espiritualidade: um primeiro momento de solidão, em que o espírito humano se sente impelido para dentro de si, realizando uma viagem a lugares de sua interioridade nunca antes visitados, buscando responder suas indagações; e um segundo momento de comunicação com os outros humanos, na perspectiva de construir novos relacionamentos interpessoais, graças à nova interpretação de si e da realidade desvelada.


Para o Dalai-Lama, espiritualidade é uma atitude que produz em nós uma mudança.


Há mudanças que não transformam nossa estrutura de base; são superficiais e exteriores ou meramente quantitativas. Mas há mudanças que são interiores, capazes de dar um novo sentido à vida e de abrir novos campos de experiência e de profundidade rumo ao próprio coração e ao mistério das coisas. Não raro, é no âmbito das religiões que ocorrem tais mudanças.


Todavia, a singularidade do tempo contemporâneo suscita novas espiritualidades como componentes profundas da dimensão humana, como o momento necessário para o desabrochar pleno de sua individuação e como espaço de construção de paz em meio aos conflitos e desolações existenciais e sociais.


A espiritualidade permite ao ser humano perceber-se como um projeto ilimitado, que possui uma dimensão de abertura, um desejo de ir além, de transcender, exercendo sua capacidade criativa. Imanência e transcendência não seriam aspectos inteiramente distintos, mas dimensões de uma única realidade humana.


O exercício da dimensão transcendente do ser humano caracteriza-se por possibilitar a ampliação de sua liberdade, fornecendo-lhe mais energia para os enfrentamentos dos desafios existenciais, tornando-o mais generoso, compassivo, solidário e, ao mesmo tempo, promove o autoconhecimento, gerando uma energia integradora que lhe possibilita o encontro com um sentido significativo para sua existência. A partir desse encontro interior, a partir da espiritualidade, a pessoa é capaz de desencadear uma ação transformadora em suas relações interpessoais, comunitárias e no meio da sociedade.


A espiritualidade pode ser comparada ao sal no alimento: não se vê, mas se sente, e quando não está presente, sente-se fortemente a sua falta. Ou por exemplo, o ar que respiramos: não se vê, mas sem ele não é possível existir. Assim, a vivência ou não de uma espiritualidade transparece nas atitudes, nos modos de agir e de reagir diante das pessoas, das coisas e dos fatos. Revela-se numa postura ética e no cuidado com os outros humanos e com a natureza.


Inclusive quando se trata do exercício do poder. Exercer uma espiritualidade nesse campo implica saber como se concebe o poder: como domínio ou como possibilidade representativa, de forma prepotente ou de forma participativa dialogal?


O valor de uma espiritualidade é o de poder propiciar às pessoas atitudes como modos-de-ser humanos, muito mais do que atos isolados, resultado de uma mudança de mentalidade, uma mudança de base em suas vidas, expressando uma verdadeira contestação ao modo de pensar, de querer (sentir) e de agir da sociedade consumista-materialista-individualista contemporânea. É a possibilidade de encontrar-se com novos saberes capazes de dar novos sabores à existência humana.

sábado, 7 de janeiro de 2012

FAZER JUSTIÇA


Alexandre Aragão


Nesses primeiros dias do ano, em meus momentos de distração, assisti a um vídeo de um graduando em Direito cujo tema era fazer justiça. Assim pensei em escrever algumas poucas linhas, para continuar a costura da minha viagem existencial.

Em primeiro lugar, penso que, para fazermos justiça, precisamos ter o olhar do coração - uma vez que o coração é aquele que comanda a inteligência, como tão bem assinala o psicanalista e educador Rubem Alves - voltado para o Mistério que habita cada um de nós, cuja luz há de ser percebida também no rosto de cada ser humano que está ao nosso redor.

Como decorrência desta primeira decisão interior, parece ser preciso desenvolver a capacidade de sentir o outro como um alguém que faz parte de mim, para aprender a partilhar as suas alegrias e os seus sofrimentos, para intuir os seus anseios e buscar remédio às suas necessidades, oferecendo-lhe uma verdadeira e profunda amizade.

Portanto, trata-se de cultivar a capacidade de ver antes o que há de positivo no outro, para acolhê-lo e valorizá-lo.

Por fim, para fazer justiça é necessário saber “criar espaço” para  desenvolver a reciprocidade humana, que nos capacite a carregar “os fardos uns dos outros”, rejeitando as facilidades egoístas que sempre nos insidiam e geram competição destrutiva, arrivismo, suspeitas, ciúmes.

Sem uma educação da nossa sensibilidade em relação ao outro, como uma verdadeira caminhada ética e espiritual que envolva toda a complexidade da vida humana, de pouco servirão os instrumentos exteriores da justiça. Revelar-se-iam mais como “estruturas sem alma”, do que como vias para a sua expressão e crescimento.

Como diz um pensamento antigo, para fazer justiça precisamos, antes, retirar as traves que existem em nosso olhar, para somente depois podermos enxergar bem – com o coração e com a mente – os ciscos que habitam o olhar do outro.