domingo, 25 de dezembro de 2011

DAR E RECEBER PRESENTES



Alexandre Aragão




Quando damos coisas e as retribuímos, também nos damos e nos retribuímos com elas, porque devemos uns aos outros uma parcela daquele bem que conseguimos ser.

De fato, as sociedades só conseguiram progredir na medida em que souberam estabilizar suas relações de reciprocidade. Eis, assim, um ensinamento importante: as pessoas, as famílias, os povos poderão enriquecer, mas não serão felizes se não souberem sentar-se à volta da riqueza comum.

O ato de dar e de receber implica não somente uma troca material, mas uma troca espiritual. Dar implica sempre dar-de-si-mesmo; e ao aceitar o dom, o recebedor aceita algo do doador, aproximando um do outro. Por mais que elas variem, as dádivas sempre reiteram que, para dar adequadamente, é preciso colocar-se um pouco no lugar do outro para entender, em menor ou maior grau, como esse, recebendo o dom, recebe também o doador.

Como lembra Carlos Rodrigues Brandão, toda sociedade se preserva e se transforma na medida em que conserva e inova sistemas de reciprocidade através dos quais fluem e são trocados entre os sujeitos os seus bens, as suas mensagens e as suas pessoas. Foi a reciprocidade que nos fez passar da condição de bando biológico para a de grupo cultural: eis a pedra fundamental do edifício social da cultura.

Entretanto, não podemos esquecer que existe uma diferença significativa entre as formas de doar, no que tange a sua intencionalidade. É importante perceber que circulam certos tipos de dom contaminados pela vontade do poder sobre o outro, que em vez de criarem uma emancipação recíproca, buscam a dominação ou mesmo a opressão de pessoas e povos. É um doar aparente que na verdade aprisiona em vez de libertar.

Por outro lado, existe um dar que se abre ao outro e busca – respeitando sua dignidade, liberdade e subjetividade – construir mundos novos a partir de uma mentalidade de comunhão recíproca e emancipação dos sujeitos. Portanto, não se trata de dar e receber de qualquer forma, mas de criar um relacionamento social capaz de produzir uma cultura nova e emancipadora, entre sujeitos livres e iguais.

Portanto, a construção de realidades novas não é resultado único de um epifenômeno, de uma simples mudança de estruturas de produção. É um processo complexo de relação entre mudança pessoal interna - resultado de vontade e da consciência humana de promover o surgimento de vida nova – com o mundo objetivo ao redor, que se retroalimentam dialogicamente.

Modificar e aprimorar as estruturas e relações de produção parece ser necessário, mas não suficiente, porque a verdadeira transformação deve se dar em nível antropológico mais profundo.

Como lembra o economista Luigino Bruni, a vida feliz é frágil e vulnerável, mas não existe vida feliz sem reciprocidade humana. A exigência de estruturas de comunhão, que tornem a reciprocidade um pouco menos vulnerável e mais estável, está sempre exposta à novidade de nossa liberdade humana.

Feliz Natal!

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O BATISMO DE LIS


No céu, uma lua iluminada parecia uma menina deitada na rede.
E o dia havia sido iluminado pela singela e alegre partilha dos amigos e amigas em torno do batismo de Lis.

É na comunidade que nascemos e crescemos. 
No berço do amor partilhado aprendemos a viver.

Se no primeiro momento nossos pai e mãe nos transmitem a vida, da qual não são criadores, mas portadores, no momento seguinte eles nos abrem as portas para um sentido mais profundo, aquele que nos une a todos, porque dele viemos e para ele retornaremos.

Uma criança, uma pequena comunidade, um dia iluminado, uma lua iluminada.

Continuar abertos à luz parece ser, de fato, fundamental.


domingo, 13 de novembro de 2011

AS PRIMEIRAS PALAVRAS DE UM AVÔ

Alexandre Aragão



No início é o misterioso encontro. 

Duas pessoas, antes desconhecidas uma da outra, contagiam-se reciprocamente pela chama do amor, que as leva a deixar seus lugares individuais de origem e corajosamente constituírem uma experiência amorosa intensa denominada família.

Para dar origem a uma família, homem e mulher passam a ser parte integrante um do outro. Quando um não está bem, o outro também não consegue estar bem. Quando um está feliz é capaz de contaminar o outro com sua felicidade. Fazem de suas vidas individuais uma nova viagem existencial conjugal, partilhando alegrias e dores, visões e sentimentos, vitórias e fracassos, matéria e espírito, pela entrega reciproca de um ao outro.

Assim, a família torna-se o espaço privilegiado para o desenvolvimento do dom que nasce e cresce do amor que alimenta a vida conjugal, estendendo-se para todos os membros.

Portanto, a família pode ser definida como uma comunidade de cuidados, em razão das necessidades que se prolongam por toda a existência humana. O exercício contínuo do cuidado, por sua vez, retroalimenta o amor na família pela doação dos seus membros entre si. Como anota o filósofo Hans Jonas, sem uma experiência séria e verdadeira de doação intersubjetiva e recíproca, as relações humanas correriam o risco de se tornarem patológicas.
  
  A relação intersubjetiva ocorre desde os primeiros momentos da vida. Segundo Tzevetan Todorov, ao final de algumas semanas após o nascimento de um filho ou filha, dá-se um acontecimento especificamente humano: a criança tenta captar o olhar da mãe, não só para que ela venha a alimentá-la ou reconfortá-la, mas porque esse olhar fornece por si só um complemento indispensável ao pequenino ser: ele o confirma em sua existência.
            Também Leahy assinala que é por meio do olhar e do sorriso da mãe que a criança é despertada para a autoconsciência de ser aceita e amada; pelo amor desse “tu” humano, que é a mãe, a criança chega a saber que é amada, digna de amor e capaz de ir além de si mesma no amor. Depois, despertada na consciência também de que não é a criadora desse “outro” que lhe ama, gradativamente vai compreendendo que mãe e pai não são tudo, mas que existe um “Tu” mais amplo para o qual a vida humana está orientada de modo misterioso.
            Portanto, o amor é uma realidade constitutiva de nossa humanidade. O amor, como lembra Bauman, é simultaneamente alegria e sofrimento, dom e recepção.
   Consequentemente, podemos conceber a família como o espaço privilegiado para o desenvolvimento da gratuidade. De fato, numa família, solidariamente formada, que vive numa mesma casa, não se espera que cada um de seus membros seja mais rico ou mais pobre que os outros. O bem de cada um de seus membros está relacionado com o bem dos outros. Se, por exemplo, um deles fica doente ou passa por alguma dificuldade financeira, todos sofrem e vão ao seu auxílio gratuitamente.
     Além disso, a família é o lugar onde se ouvem as primeiras falas, com as quais se constrói a autoimagem e a imagem do mundo exterior. É fundamentalmente relação, lugar de aquisição de linguagem o qual define seu caráter social. Nela, aprende-se a ouvir e a falar e, por meio da linguagem, a ordenar e dar sentido às experiências vividas. A família, seja como for vivida e organizada, é o filtro através do qual se começa a ver e a significar o mundo. Esse processo que se inicia ao nascer estende-se ao longo de toda a vida, a partir dos diferentes lugares que se ocupa na família.

    Para os adultos, continua tendo essa função de dar sentido às relações entre os indivíduos e servir de espaço de elaboração das experiências vividas. Essa concepção permite pensar o processo de “crescimento” na família como uma questão que diz respeito não apenas às crianças, mas a todos os seus membros, ao longo de suas vidas, na medida em que as experiências podem ser permanentemente reelaboradas. “Crescer”, assim, desvincula-se do mero processo biológico para constituir-se em um processo simbólico. As condições favoráveis para que uma criança “cresça” ou um jovem se desenvolva na família se ampliam quando seu pai, sua mãe ou quem deles cuide possam se pensar, eles mesmos, como alguém em permanente crescimento, em cada novo lugar que ocupe na família.

      E o mistério continua acompanhando a família em todo o seu trajeto. Não se sabe o que vai se encontrar pelo caminho. A bússola que lhe orienta nessa viagem é o amor entre seus membros.
      Há momentos de luzes, mas há também os momentos em que chega a noite. Na escuridão da noite, é preciso andar mais cautelosos e sensíveis, mais pacientes e generosos, para descobrir e entender os passos que precisam ser dados, prontos a perder seguranças e garantias conquistadas no passado para abrir-se aos novos dias que surgirão no horizonte, pela travessia da madrugada.
   Entre os momentos de luzes, sem dúvida, é constatar o amadurecimento dos filhos e filhas. E poder com eles participar de suas corajosas aventuras de constituição de suas famílias. É uma maravilha, porque não se trata apenas de rever um filme, mas de assumir novos papéis no roteiro da vida familiar: o papel de sogros e de avós.
      Colocar uma neta nos braços é uma alegria indescritível. Uma neta é como um novo pão que vem alimentar o mistério da vida, mostrando que o fio condutor, antepassado e presente, vai muito mais além do que “possa imaginar nossa vã filosofia”.






quinta-feira, 25 de agosto de 2011

EM BUSCA DE UM CAMINHO




Alexandre Aragão

Pensei de colaborar, mesmo se de uma forma muito modesta, com o texto de Eric Hobsbawm, postado em nosso grupo digital, como forma de retribuir à generosa iniciativa do companheiro Luiz Alberto em compartilhar conosco da visão daquele autor sobre a problemática que nos envolve no tempo presente.

O artigo de Hobsbawm é provocador na medida em que ele mesmo denuncia o desconhecimento, por parte da humanidade, da gravidade e da duração da atual crise sistêmica, ao mesmo tempo em que não se sabe como superá-la nem como fazer: “todos estão como um cego que tenta sair do labirinto tateando as paredes com todo tipo de bastões, na esperança de encontrar o caminho da saída”.

Esta imagem me reporta a duas outras imagens não menos significativas.

A primeira, trata da passagem do livro de José Saramago, ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, quando a única pessoa – uma mulher, que continuou vidente naquela multidão de cegos, vai em busca de alimentos para o seu grupo de amigos e, ao entrar no breu do porão de um armazém, acende um minúsculo fósforo e, com aquela maravilhosa e pequenina luz, pode enxergar os mantimentos e reparti-los com seus companheiros e companheiras. Não era uma preocupação apenas consigo que a movia, mas o sentido do outro, dos outros. E bastou apenas a luz de um frágil fósforo para iluminar o caminho.

A segunda imagem me transporta para a belíssima composição de Caetano Veloso, UM ÍNDIO, que em uma de suas estrofes exclama: “E aquilo que se revelará aos povos/ Surpreenderá a todos não por ser exótico/ Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto/ Quando terá sido o óbvio//”. Olhar para o índio: quem dera o Angelus Novus, de Benjamin, o pudesse fazer...

A busca de um sentido foi também o tema com que o pontífice Bento XVI desenvolveu seu discurso de acolhida à juventude para a Jornada Mundial, em Barajas, na Espanha: “Venho me encontrar com milhares de jovens, de todo o mundo, à procura da verdade que dê sentido genuíno à sua existência (...). Eles sabem que, sem Deus, seria difícil afrontar estes desafios e ser verdadeiramente felizes (...). Com Ele ao seu lado, terão luz para caminhar, razões para esperar e hão de motivar os seus generosos compromissos para a construção de uma sociedade onde se respeite a dignidade humana e uma efetiva fraternidade”.

O fósforo, a luz...

Ser humano é tomar a consciência de que possuímos o mesmo gérmen que nos faz húmus e nos denomina de germanus, ou seja, hermanos.  Quiçá, com a chama deste pequenino e óbvio fósforo, possamos encontrar um novo caminho para a vida em nossa sociedade local-global, que respeite, garanta e promova este princípio básico da democracia.

Hobsbawm lembra que um problema que pode unir a humanidade é a luta contra a crise do meio ambiente. Afinal, sem as fontes da vida natural, a humanidade não pode existir. Entretanto, é bom lembrar que o inverso também é verdadeiro: sem a vida humana, a natureza perde o seu sentido de ser, na medida em que a humanidade é a expressão consciente do ecossistema Vida.
Assim, é preciso cuidar do Húmus como um todo: de sua matéria e de seu espírito.

A crítica que o autor deflagra contra o socialismo já fora produzida por diversos pensadores. E a história nos ajuda na revisão da importância da produção desses pensamentos, principalmente daqueles que ocorreram, não após o falimento das experiências socialistas ditas reais, mas no momento em que elas se iniciavam, como é o caso de Theilard de Chardin.

Entre outras coisas, ele afirmava que na medida em que “os primeiros ensaios socialistas pareceram inclinar-se perigosamente para um regime ou um estado infra-humano de formigueiro ou cupinzeiro, não é o princípio mesmo de totalização que se equivoca, mas a maneira inadequada e incompleta com que é aplicado”.

Para ele, os humanos precisavam despertar para o sentido da solidariedade universal, fundada na sua comunidade profunda de natureza e de destino evolutivo. Não era a dureza ou o ódio apregoado pelo leninismo, mas uma nova forma de amor, ainda não experimentada pelo Homo, que faz prognosticar e que leva nas suas dobras a onda que cresce em torno de nós, daquilo que Chardin chamava de planetarização. Como já disse Noam Chomsky, sem laços de solidariedade, de simpatia e de preocupação com os outros, uma sociedade que se pretenda socialista é impensável.

Por outro lado, a crítica ao capitalismo se torna cada vez mais atual, na medida em que esse sistema econômico não consegue produzir o bem para a humanidade; pelo contrário, gera um apartheid social incapaz de garantir uma distribuição justa dos bens produzidos socialmente.

O brasileiro Milton Santos, por exemplo, assinalou que a globalização hegemônica atual é o ápice do processo de produção capitalista, caracterizado pela expansão-superação das fronteiras dos Estados nacionais, tornando-as porosas, envolvendo todas as dimensões da realidade humana: econômica, política e simbólica. A globalização não é apenas a existência desse novo sistema de técnicas. Ela é também a emergência de um mercado dito global, responsável pelo essencial dos processos políticos atualmente eficazes. Os fatores que contribuem para explicar a arquitetura da globalização atual são: a unicidade da técnica, a convergência dos momentos, a cognoscibilidade do planeta e a existência de “um motor único na história”, representado pela mais-valia globalizada. Um mercado global utilizando esse sistema de técnicas avançadas resulta nessa globalização perversa. Isso poderia ser diferente se o seu uso político fosse outro. Esse, para o autor, parece ser o debate central.

Voltando a Hobsbawm, nota-se que o seu olhar parte da experiência britânica, da debandada do partido trabalhista, personificado em Tony Blair, para o lado neoliberal, adotando todos os procedimentos doutrinários dessa cartilha teológica, como ele denominou.

Seu correspondente no Brasil estava representado numa caricatura de social-democracia, cujo líder máximo, Fernando Henrique Cardoso, seguiu determinadamente o que aquele receituário apregoava, colocando, ao final do seu governo, o Brasil numa situação altamente vulnerável. Em dezembro de 2002, o quadro econômico brasileiro deixado por FHC era o seguinte: o dólar custava R$ 3,63 (três reais e sessenta e três centavos), registrando uma maxidesvalorização cambial desde a implantação do real da ordem de 327%; as reservas internacionais desabaram para o valor irrisório de US$ 27 bilhões, após uma onda de privatizações generalizadas, sendo necessário nessa época fazer um empréstimo emergencial ao FMI de US$ 30 bilhões; o salário mínimo alcançou nessa época o valor real de US$ 56, uma perda em torno de 37% desde a implantação do real como moeda nacional; o chamado Risco Brasil atingiu o índice de 2.436 pontos, a taxa de desemprego alcançava índices recordes (BANCO CENTRAL, 2009).

Imaginemos o que teria sido para o Brasil, e para o seu povo, enfrentar uma crise sistêmica do capitalismo global se não tivesse ocorrido mudanças dos rumos do governo, com a reorganização estratégica do Estado, mediante a posse de Lula em 2002?

Lembrando que, em 2003, coube ao Brasil, na pessoa do presidente Lula, ocupar presidência da Comissão Americana que estava para decidir a entrada do Brasil na ALCA. Fernando Henrique estava trabalhando diuturnamente para isso ocorrer; quem barrou a entrada do Brasil na ALCA foi justamente o novo governo que tomou posse.

Assim, qual era a tarefa histórica urgente que o novo governo precisaria assumir?

Implantar transformações capazes de reverter o quadro de instabilidade, alterando-o para um ambiente produtivo. Era preciso reduzir substancialmente a vulnerabilidade brasileira a choques advindos de fluxos de capitais estrangeiros e variação de preços; consolidar a estabilização da moeda que se encontrava sob ameaça real; acumular reservas internacionais e poupança interna, recuperar a credibilidade do país externamente, para somente assim pensar em crescimento, orientado por uma estratégia de longo prazo, com premissas tais como inclusão social e desconcentração de renda, com crescimento econômico e ambientalmente sustentável, buscando reduzir disparidades regionais, dinamizado pelo mercado de consumo de massas e fortalecimento da cidadania e da democracia. E isto não era uma tarefa do Mercado, mas do Estado democrático.

Foi necessário adotar ações que promovessem a inclusão social e a cidadania por meio de acesso à propriedade, a bens e serviços e à universalização de direitos, bem como a superação da marginalização, o combate às desigualdades, buscando uma resposta eficaz ao problema da construção de uma estratégia socialmente inclusiva e transformadora de desenvolvimento, promotora da redução das desigualdades sociais e regionais de forma sustentável.

Que resultados podem-se aferir com essa mudança de rumo?

Em 31/12/2008, o salário mínimo atingia a marca recorde histórica de US$270. A cotação do dólar nessa mesma época despencou para US$ 1,71 (menos da metade que em 2002). As reservas internacionais nesse período já atingiam o valor recorde histórico de US$ 206,8 bilhões. E o chamado Risco Brasil desabou para 224 pontos, caindo a 10% do valor de 2002 (BANCO CENTRAL, 2009).

Portanto, talvez fosse interessante para o Hobsbawn criticar não apenas a politica britânica, mas também conhecer o que outros países estão fazendo, como é o caso do Brasil, na tentativa de encontrar novos caminhos para a construção da sociedade.

Para concluir, gostaria de registrar as palavras do meu grande amigo Luigino Bruni, para quem não se pode fazer nenhuma experiência autenticamente intelectual se a teoria e os pensamentos que se compreendem e se escrevem não se transformam na vida de quem os elabora e os escreve. Se se quer contribuir para uma nova teoria da solidariedade humana, a coisa verdadeiramente importante, e também a mais decisiva, que se deve fazer é tornar-se dia após dia uma pessoa solidária em todos os contextos da vida. Não é possível escrever e falar de dom, de comunhão, de gratuidade, de solidariedade sem ser dom, comunhão, gratuidade e solidariedade. A vida é maior e precede todo conceito. E só a vida salva, verdadeiramente, a nós e os outros.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

CARPE DIEM

Alexandre Aragão

No dia 29 de junho passado, realizou-se em Brasília, integrando o Ciclo de Debates promovido pelo IPEA, um seminário intitulado QUE TRABALHO DOMÉSTICO QUEREMOS PARA O BRASIL DO SÉCULO XXI?

Até a década de 1970, as trabalhadoras domésticas eram desconsideradas como um grupo produtor de trabalho, ou seja, não faziam formalmente parte do Mercado, consequentemente não eram objeto de direitos trabalhistas e sociais. As leis “colonialistas” vigentes na ditadura militar até então as tornavam invisíveis.

Com o retorno do Brasil à democracia, a luta democrática retorna à cena política, e a Constituição de 1988 garantiu-lhes os seus primeiros direitos: salário mínimo, o 13º. salário, a licença maternidade. Mesmo assim, manteve-se o tratamento desigual às trabalhadoras domésticas, deixando de estender a elas o mesmo rol de direitos assegurados aos demais trabalhadores brasileiros. O artigo 7º. da Carta Magna, produzido pelos constituintes eleitos no contexto político de 1986, por meio da inclusão de um parágrafo único, restringe direitos à categoria das trabalhadoras domésticas.

Vê-se assim brevemente, nessa seta de tempo, um desenrolar de correlação de forças que fazem desenvolver um processo de mudança de concepções, de comportamentos e, consequentemente, de cenários, a partir da redemocratização do país. As trabalhadoras domésticas estão na luta, como agentes sociais (na visão seniana) para tornarem-se visíveis e garantirem seu espaço-cidadão na Sociedade [e no Mercado]. O princípio da igualdade requerido por uma sociedade democrática implica a liberdade de luta pela conquista da cidadania, com a ampliação de direitos e a formalização de novas normatizações. Isto, na ditadura de 1970, para as trabalhadoras domésticas, talvez fosse muito difícil de imaginar; mas agora já é uma realidade possível.

Com esse fato pretendo continuar a pensar um pouco sobre a existência humana. Ela comporta pelo menos três tipos de modalidade: a realidade, a necessidade e a possibilidade. Segundo alguns autores contemporâneos, realidade e necessidade foram modalidades com as quais a filosofia e a ciência se preocuparam demasiadamente, negligenciando a dimensão da possibilidade.

Mas o que seria, então, o possível?

No momento em que negamos uma determinada realidade, indica que estamos querendo afirmar algo diferente, mesmo quando não sabemos exatamente o que é esse querer.

Como lembra Manfredo de Oliveira, o ser humano é aquele que pode levantar a questão da validade sobre a sua práxis, sobre aquilo que deveria ser e não é, e sobre aquilo que não é e deveria ser. A ética emerge nesse contexto, como reflexão crítica destinada a tematizar os critérios que permitam superar o mal para conquistar o bem à humanidade. Seu objetivo fundamental é estabelecer o marco no qual seja possível configurar o mundo humano enquanto espaço efetivo de liberdade e justiça para todos (OLIVEIRA, 2008).

Por um lado, ser livre é ser capaz de dizer não. É libertar-se da dependência interna - por exemplo, do instinto; e externa - por exemplo, de uma coação. Um ente é positivamente livre na medida em que possui a si mesmo e tem nessa relação consigo mesmo o fundamento do seu ser e do seu agir. No ser humano livre emerge a capacidade de controlar os impulsos em função de um fim mais alto, degrau entre a vontade natural e a vontade verdadeiramente livre.

Mas a liberdade não pode esgotar-se na esfera da arbitrariedade da vontade, do ponto de vista do indivíduo isolado em si mesmo, de uma subjetividade atomizada, onde o particular enquanto particular é o essencial, o absoluto. O ser humano é igualmente um ser em relação, um ser de um mundo já feito e ao mesmo tempo sempre por fazer. Assim, não há liberdade sem processo de libertação (BOFF, 1986). A liberdade humana só é liberdade efetiva enquanto liberdade no mundo da natureza e da sociabilidade, ou seja, quando ela se faz fundamento que alicerça a relação com a natureza e a vida comum dos sujeitos
entre si.

Se a liberdade num primeiro momento é transcendência, autonomia do eu sobre toda a fatalidade, e se num segundo momento é decisão, tomada de posição diante de uma multiplicidade de possibilidades, ela só se PLENIFICA na medida em que se exterioriza, se faz mundo, se autoconfigura como ser efetivo na natureza e na sociedade. A liberdade efetiva é liberdade enquanto construção intersubjetiva de relações, a construção do ser pessoal como um-ser-com-a-alteridade, decisão a respeito da configuração específica desse ser-com. Assim, o que está em jogo no processo de libertação e o que torna possível a constituição de sujeitos enquanto sujeitos é esse processo de construção de COMUNHÕES como espaço de efetivação da liberdade na contingência dos eventos.

Nem interioridade pura, nem exterioridade pura podem construir a liberdade. Ser humano significa conquistar-se como ser livre e o caminho para chegar lá é cada individualidade compreender-se não como realidade isolada, mas construir um mundo que seja efetivador da liberdade onde cada um existe para si enquanto existe com o outro, pelo outro e para o outro (OLIVEIRA, 2008).

É na vida em comum que se pode exercer a possibilidade de outras configurações de mundo, a partir do diálogo e do respeito ao outro. A garantia do respeito ao outro deve ocupar lugar central em uma sociedade democrática e republicana, a qualquer outro, com sua inclusão integral na vida da sociedade. E isso é atribuição não somente do Estado, mas da Sociedade como um todo, incluindo-se logicamente o Mercado, numa dinâmica trialógica entre essas três esferas.

Como lembra Tocqueville (2005), não há grandes povos sem a ideia dos direitos humanos; não há grandes homens sem respeito aos direitos humanos: pode-se dizer que não há sociedade, pois o que é uma reunião de seres racionais e inteligentes cujos únicos vínculos são o egoísmo e a competição?

Então, somente quando palavra e ação não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades, tem-se uma verdadeira realização política, na liberdade.

Segundo Hannah Arendt (1993), o milagre da liberdade está inserido nesse poder de iniciar. O termo grego archein significa iniciar e comandar, isto é, ser livre; o termo latino agere significa por em movimento, isto é, desencadear um processo. Se o sentido da política é a liberdade, então isso significa que nós, nesse espaço, e em nenhum outro, temos de fato o direito de ter expectativa de “milagres”. Não porque se acredite (religiosamente) em milagres, mas porque os humanos, enquanto puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível, e realizam-no continuamente, quer saibam disso, quer não.

Somente dessa forma, conforme a autora, a política pode dar sentido à existência coletiva na terra. Na convivência ética entre seres livres e iguais, as dimensões deontológica e teleológica da ação política precisam desenvolver um diálogo dinâmico e sintonizado entre si na busca da construção do bem humano coletivo. É um percurso extenuante. Ou como diria Celso Furtado, “um longo amanhecer”.

Para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, a possibilidade é o movimento do mundo. Ele divide em três momentos o caminhar da possibilidade: 1) o momento da carência (onde emergem as manifestações de algo que falta); 2) o momento da tendência (onde começam a clarificar processos e sentidos); 3) o momento da latência (onde se apontam para os caminhos a serem trilhados no processo).

A carência é o domínio do Não. A tendência é a compreensão do Ainda-Não, ou seja, a compreensão no presente de uma possibilidade incerta, mas nunca neutra. E a latência é o domínio do Nada ou do Tudo, uma vez que essa possibilidade tanto pode redundar em frustração como em esperança. Por isso Boaventura aponta para a necessidade de conhecer bem as condições de possibilidade da esperança, buscando-se definir bem os princípios de ação que promovam a realização dessas condições.

Um elemento importante destacado pelo autor trata da qualidade da dimensão subjetiva, que leve adiante essa possibilidade, alicerçada numa consciência cosmopolita, que não desperdice as experiências que indivíduos e grupos realizam pelos quatro cantos da Terra, em busca de encontrarem respostas às suas insatisfações. É um movimento que vai ao encontro do conhecimento das experiências sociais quanto das expectativas sociais. Muitos dos movimentos emancipatórios das últimas décadas começaram por experiências sociais locais
travadas contra a exclusão social.

Neste sentido, Bovantura propõe uma ecologia dos reconhecimentos, que vá numa direção contrária às lógicas atuais de desqualificação de práticas experienciais de emancipação social que resultam imediatamente na desqualificação dos agentes. Para ele é preciso alargar o círculo das reciprocidades, criando novas exigências de inteligibilidade recíproca, uma vez que ocorrem uma multiplicidade de formas de resistência e de luta que mobilizam diferentes atores coletivos, vocabulários, práticas e recursos nem sempre inteligíveis entre si, o que pode colocar sérias dificuldades para o diálogo político.

Em cada momento, há sempre um horizonte limitado de possibilidades e por isso, diz Boaventura, é importante não desperdiçar a oportunidade única de uma transformação específica que o presente oferece. Carpe Diem.

terça-feira, 28 de junho de 2011

CAMINHOS PARA O DESENVOLVIMENTO HUMANO

Alexandre Aragão



Retomando nosso diálogo, primeiramente eu gostaria de retornar àquele pequeno exemplo concreto, que no meu modesto entender não parece ser tão pequeno assim como você enfatizou anteriormente ao dizer “põe pequeno nisso”.

Se pensarmos que uma microempresa cearense (portanto, não estamos falando de multinacional) conseguiu, em apenas dois anos, sem recursos advindos de fontes de financiamento externo, aumentar a venda de produtos populares por ela comercializados em 200% - de 1.000 unidades para 3.000 - não me parece que seja algo que deva ser desprezado. Sobretudo porque estamos falando de consumo de massa e de geração de renda, e não de consumo de bens de luxo, como ocorria nos modelos de desenvolvimento pensados em épocas anteriores no Brasil.

Penso que, para um pesquisador sensível, esse dado não pode ser visto, aprioristicamente, como um fato isolado: nessa “fumaça” pode, quem sabe, haver “outros fogos” e “outras razões” desconhecidas que levaram a produzir essa centelha de crescimento.

Quais seriam essas razões? O que significaria, por exemplo, para a indústria ter de aumentar, numa mesma proporção de 200%, a produção de seus itens? Quantas vagas de empregos diretos teriam que ser preenchidas para que essa alavancagem ocorresse? São perguntas que podem surgir, na medida em que se vá estabelecendo uma relação entre os dados microeconômicos encontrados com os dados macroeconômicos. E, se não estou enganado, parece que o problema atual da inflação tem haver com algo semelhante, com a velocidade do crescimento econômico no Brasil nos últimos anos.

Gostaria de relembrar alguns aspectos do pensamento de Amartya Sen, de quem não sou especialista como você o é, mas para aprofundarmos o debate, arrisco-me a percorrer brevemente alguns pontos do seu pensamento onde vamos encontrar uma forte reflexão sobre a importância da democracia nas sociedades contemporâneas, que é o ponto central de minha reflexão.

Quando perguntaram a Sen qual tinha sido o acontecimento mais importante do século XX, ele respondeu sem hesitação: a emergência da democracia . Para ele, qualquer país se prepara para a democracia através do exercício democrático, o principal caminho pelo qual as sociedades podem alcançar um progresso econômico e social. Portanto, trata-se de um percurso a ser percorrido. Nada de situações idealizadas como pensavam alguns intelectuais clássicos dos séculos passados.

O primeiro dos papéis da democracia, segundo o autor, é sua importância intrínseca:a garantia de manifestação dos sujeitos como a capacidade básica do ser humano em participar social e politicamente da vida em comum.

Em segundo lugar, ele destaca o valor instrumental da democracia: na medida em que são ouvidas, as pessoas buscam a satisfação de suas necessidades. Desse modo, a democracia é vista como um catalisador do desenvolvimento, favorecendo o atendimento das demandas sociais.

Por último, Sen sinaliza para o papel construtivo da democracia na definição dos problemas das sociedades, uma vez que as necessidades de uma dada sociedade não são um dado absoluto, mas uma construção baseada na noção do que pode ser melhorado. Quando um problema parece insolúvel, o livre fluxo de informações propiciado por uma democracia autêntica garante a construção de melhores conceitos, consequentemente uma visão mais ampla da sociedade, de seus problemas e da busca de suas soluções.

Assim, a ação livre das pessoas é essencial para a superação dos problemas, sendo a superação dos problemas entendida como o exercício central do desenvolvimento. Portanto, nessa visão, o desenvolvimento consiste em percorrer um caminho que remova os vários tipos de restrições que deixam às pessoas pouca escolha e pouca oportunidade para exercerem sua ação racional.


Logo, o ponto de partida da abordagem seniana reside na identificação da liberdade como o principal objeto do desenvolvimento: liberdade econômica, liberdade política, liberdades sociais e culturais.


Então aqui entra a figura do Mercado, como uma das dimensões civilizadoras da humanidade. Não a única, logicamente. A liberdade de trocas e de transações é em si mesma parte das liberdades básicas a que as pessoas atribuem valor.


Podemos, nesse caso, voltar a Marx, que em sua critica da economia politica ressaltava duas condições básicas para a realização das trocas no mercado: a igualdade e a liberdade dos agentes. Segundo este autor, o grande acontecimento da história contemporânea de sua época havia sido a Guerra Civil estadunidense, na qual os homens lutavam para ter a liberdade de espaço no mercado de trabalho contra o sistema econômico da escravatura vigente em algumas colônias.


Então, mediante o acima exposto, surge a pergunta: estaria ou não o Programa Bolsa Família contribuindo para a ampliação do exercício da liberdade das pessoas? De que forma? Em que níveis e diversificações?


Importante lembrar que o PBF não é o único programa social e econômico desenvolvido pelo Estado brasileiro nos últimos 9 anos. Existe um conjunto de programas que resultam da visão estratégica do Governo federal, no sentido de atingir um desenvolvimento na perspectiva que aqui foi apresentada.

Afinal, como encontramos em Sen, as liberdades instrumentais – liberdades políticas, disponibilidades econômicas, oportunidades sociais, proteção da segurança e garantias de transparência - ligam-se umas as outras com a finalidade de atingir a totalidade da liberdade humana.


Assim, acho que esse aquecimento da atividade econômica das pessoas não esteja acontecendo apenas naquela lojinha. É preciso ler outros indicadores e fazer uma leitura mais articulada dos dados, buscando compreender uma verdade sempre mais profunda.


E aqui gostaria de abrir um espaço para uma reflexão em torno do outro – pessoa e grupos – e de sua importância para a construção do caminho democrático apresentado por Amartya Sen.


O outro – não apenas o outro igual, mas o outro diferente – é imprescindível para a realização da democracia. A democracia é essencialmente um sistema político que necessita de um amplo relacionamento dialógico entre pessoas e entre instituições. O ser humano está integralmente e continuamente olhando para si e olhando para o outro. Ele não pode prescindir do outro para poder transformar-se a si mesmo e transformar o espaço social ao seu redor.


Essa universalidade da relação eu-e-o-outro não exclui nenhuma categoria de pessoas, afinal todos possuem o mesmo gérmen humano.


A sociedade complexa da alta modernidade, como definem alguns autores, apresenta uma situação social que não é nova, mas que de um certo modo está carregada de nova complexidade, devido à presença de estruturas e instituições que estão presentes como mediadoras da relação entre as pessoas.


Como então, compreender a importância das instituições na vida relacional?

A instituição – política, econômica, social e cultural – é o terceiro elemento que se insere na relação face-a-face, criando um novo tipo de relacionamento humano, agora não mais direto, onde do outro não conhecemos nem a face nem o nome. Entretanto, o fato desse anonimato não significa que o outro perca sua dignidade enquanto pessoa. Cada um, portanto, que é atingido pela ação institucional, continua sendo uma pessoa distinta que somente posso alcançá-la mediante os canais institucionais.


As instituições, assim entendidas, podem ser instrumentos que ajudam a alargar, ampliar e estender a rede de relações humanas. Naturalmente isso não se dá de forma automática e estável, mas envolve sempre a vontade, inteligência, conhecimento e escolhas dos agentes com nelas engajados e das pessoas em geral. As instituições não se renovam por si mesmas; dependem da renovação das pessoas e de seu compromisso em incidir sobre as instituições, continuamente, para modificá-las, aprimorá-las.


Portanto, concebo que a crítica às instituições e às políticas que vêm sendo adotadas no Brasil precisa fazer uma leitura ampla e objetiva, buscando compreender as motivações, estratégias, realizações e contradições. Seguindo o pensamento de Boff, deve ser uma crítica substantiva e não adjetiva, tendo presente que o outro é sempre um-outro-de- mim, sem o qual não posso construir o espaço social. Penso que, dessa forma, poderá contribuir bastante para o desenvolvimento de nossa liberdade e o aprimoramento de nossa democracia.


É uma caminhada de aprendizagem continua. Não apenas de crítica, mas conjuntamente de autocrítica.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A LUTA PELA CIDADANIA

Alexandre Aragão



A luta pela cidadania se dá no dia a dia, no assumir a própria história e com essa consciência ir-se em busca da efetivação de liberdades e direitos de igualdade. A cidadania e as liberdades substantivas não caem do céu.

Antes nós fomos a nação dos Navios Negreiros, que tão bem canta Castro Alves, daquele olhar preconceituoso, por parte dos brancos europeus que aqui chegaram, sobre a não existência da alma espiritual nos humanos negros e indígenas que fundaram nossa nação.
Hoje somos uma nação em processo de elaboração de sua democracia, que desenvolveu o Programa Bolsa Família como um resultado da leitura de nossa história, pela constatação da necessidade absoluta de uma política redistributiva de renda, que começou a ser implantada pela chegada ao poder de um grupamento vindo das bases sindicais de nosso país. Isso foi resultado da luta política possível e contínua.

Logicamente há várias formas de percebermos um copo com água até a metade. Alguns o olharão como quase vazio; outros, ao contrário, o olharão como quase cheio. Para que a definição do olhar se aproxime o mais possível da verdade sobre o copo, é preciso, por exemplo, saber se o movimento foi de esvaziamento ou de enchimento. Com essa informação, poder-se-á compreender melhor o movimento histórico que incidiu sobre aquele copo com água até a metade.

O recente comunicado do IPEA, de número 92, em 19 de maio, debruça-se sobre a temática da equidade fiscal no Brasil, com seus impactos distributivos da tributação e do gasto social.

Como se sabe, existem pelo menos duas modalidades de impostos pagos pelos cidadãos brasileiros: impostos diretos, que recaem sobre a renda, e impostos indiretos, que recaem sobre o consumo.

Segundo o estudo, o sistema tributário brasileiro exerce um peso excessivo sobre as camadas mais pobres e intermediárias de renda, que se deve especialmente dos impostos indiretos sobre o consumo (ICMS, por exemplo), pois tanto o rico como o pobre pagam as mesmas alíquotas de impostos, caracterizando a regressividade tributária, contrariamente o que ocorre com o imposto sobre a renda que é progressivo: quem tem mais paga mais.

Afirma o estudo que nos 10% mais pobres, a regressividade da carga tributária atinge cerca de 30% de sua renda total, enquanto nos 10% mais ricos atinge somente 12% de sua renda total.
A partir de 2003, começa a ocorrer um fenômeno novo na política distributiva do País.

O Gasto Social Progressivo procurou corrigir esse desequilíbrio regressivo, não mediante uma reforma tributária (que politicamente é muito difícil de acontecer no momento, dada a correlação de forças políticas), mas a partir da implantação de políticas públicas de transferência de renda, como também com o direcionamento dos gastos com saúde e educação para as camadas mais populares, por exemplo.

Os programas de transferências de renda apresentam-se como necessários também por outra razão. Pelo fato de os auxílios e seguros-desemprego serem benefícios que se efetivam em razão da inserção formal no mercado de trabalho. Como as pessoas mais pobres de nossa população convivem com precárias relações trabalhistas, seja pela informalidade, pela exploração patronal ou pelo desemprego (que na época FHC, anterior a 2003, atingiu taxas históricas), acarretava para elas uma ausência de proteção social.
O Programa Bolsa Família atinge atualmente cerca de 13 milhões de famílias. Segundo o estudo do IPEA, 80% dos recursos transferidos por esse programa são apropriados pelos 40% mais pobres da população do nosso país, cuja renda monetária familiar mensal per capita é de R$ 152,08, em valores de janeiro de 2009 (época em que se concluiu a pesquisa). Com relação aos 10% mais pobres, o PBF atinge cerca de 20% de suas rendas monetárias.

Portanto, é através do perfil redistributivo do gasto social brasileiro, a partir de 2003, que se está podendo contrabalancear a regressividade da tributação indireta nas camadas mais pobres e intermediárias de renda, mediante a destinação de recursos maiores das políticas sociais para estas populações.

Em 2009, conforme o estudo, observou-se que a transferência média de recursos públicos às famílias foi mais que proporcional à incidência tributária média, demonstrando a pró-atividade das políticas sociais, que não apenas buscam compensar a injustiça dos impostos no Brasil, mas que transformaram o gasto social em importante equalizador da distribuição dos recursos.

Essa perspectiva introduz novos olhares sobre como a reorganização possível do Estado (e não do Mercado) em operar políticas públicas é capaz de enfrentar obstáculos, antes dados como absolutos, no rumo à consolidação dos direitos sociais e constitucionais.

Logicamente esse debate nós não vamos encontrar na mídia dominante, que procura tratar tudo com a máxima superficialidade e parcialidade. Mas cabe a nós, que nos pretendemos olhar além da superfície, irmos em busca dessas leituras.


domingo, 1 de maio de 2011

O TRABALHO HUMANO: FONTE DE SOLIDARIEDADE

ALEXANDRE ARAGÃO


Sob a ótica de alguns estudos sociológicos, a divisão social do trabalho passou a ser concebida como uma fonte de “solidariedade orgânica”, por produzir uma vasta diversificação do tecido social, através das especializações humanas, possibilitando uma comunicação de diferentes realidades que enriquecem e fortalecem os vínculos da vida social. Este tipo de solidariedade só se torna possível se cada trabalhador tiver uma esfera própria livre de ação em sua atividade de trabalho para o pleno desenvolvimento de sua personalidade.
Assim, uma das questões centrais dos estudos contemporâneos sobre economia e o trabalho humano paira em torno das condições concretas de trabalho nas quais cada trabalhador pode desenvolver-se plenamente. É importante lembrar que a noção de “concreto” é definida como sendo a unidade do diverso, síntese de múltiplas determinações. Portanto, o trabalho e os trabalhadores concretos não podem existir isoladamente, mas somente em sociedade, numa ampla teia de relações.
Para que possam desenvolver suas personalidades, os trabalhadores precisam ser reconhecidos como sujeitos livres e criadores de suas histórias. A liberdade exige que o sujeito autoconsciente nem deixe subsistir a sua liberdade e, ao mesmo tempo, reconheça liberdade do outro. Somente pela ação política a liberdade pode ser reconhecida e garantida aos sujeitos; somente no estado de direito efetivo a liberdade pode ser efetiva, uma vez que a sociedade é a única condição na qual o direito tem sua realidade concreta.
Criar condições para o desenvolvimento da personalidade implica reconhecer que cada trabalhador é um ser dotado de subjetividade e dignidade, capaz de agir de maneira refletida, planejada e racional e de decidir por si mesmo no exercício de sua realização pessoal. Portanto, o trabalhador não é um instrumento, não é uma máquina, e é como pessoa que ele trabalha. Ele é o sujeito do trabalho: o valor ético do trabalho resulta justamente deste sentido subjetivo.
Além do argumento subjetivo, o trabalho humano tem um fim: a realização do ser humano enquanto ser social. O trabalho comporta em si uma marca particular, a marca de uma pessoa que opera numa comunidade de pessoas, e tal marca determina a qualificação interior do próprio trabalho.
Com o trabalho, a consciência humana deixa de ser uma mera adaptação ao meio ambiente e configura-se como uma atividade autogovernada. É um processo de uma contínua cadeia temporal que busca sempre novas alternativas. Pelo trabalho, o ser humano produz-se a si mesmo como gênero; pelo processo de autoatividade e autocontrole, salta da sua origem natural, baseada nos instintos, para uma produção e reprodução de si como gênero humano, dotado de autocontrole consciente, caminho imprescindível para a realização da liberdade.
            A humanização se dá coletivamente, no processo de produção social. O trabalho é uma matriz de humanização, onde a cultura se forma: formamo-nos como humanos na maneira como produzimos nossa existência. Portanto, as condições de trabalho devem ser estruturadas para que cada trabalhador atinja plena e dinamicamente sua humanização, consciente de que cada uma de suas ações é ação sobre o outro e sobre a comunidade a qual pertence.
            A primeira comunidade é a família. E o trabalho constitui o fundamento sobre o qual se edifica a vida familiar, é a condição que torna possível a fundação de uma família, uma vez que a família exige os meios de subsistência que a pessoa obtém mediante seu trabalho.
A família é ao mesmo tempo uma comunidade tornada possível pelo trabalho e a primeira escola de trabalho para todos e cada um dos seres humanos. A experiência cotidiana de união no interior da família enriquece o ser humano e o libera para além dele próprio: é na família que a pessoa tem ocasião de vivenciar as diversas dimensões que a constitui.
 A família é a comunidade de cuidados, em razão das necessidades que se prolongam por toda a vida. O amor nasce e cresce com esse cuidado, em uma realidade partilhada e séria. Sem tal realidade de intersubjetividade verdadeira as relações humanas correm o risco de tornarem-se patológicas.
            Esta parece ser uma das questões centrais do século XXI: que mudanças se fazem necessárias para promover novas concepções e organizações de empresas, da economia e do mundo do trabalho que sejam capazes de promover o crescimento da personalidade humana, gerando novas estruturas da sociedade que desenvolvam e fortaleçam os vínculos de convivência social solidária, tornando possível à humanidade ser mais humana?
Afinal, a vida em sociedade não se reduz apenas à dimensão econômica. A vida comum não é apenas uma mercadoria, no sentido restrito que o capitalismo lhe atribui. A vida em sociedade é um bem, principalmente no sentido relacional, isto é, ético, um bem positivo, capaz de se contrapor ao mal e às situações de injustiça.
Como lembra o economista italiano, Luigino Bruni, um dos temas mais caros para as ciências sociais na atualidade trata-se da inclusão relacional de todas as pessoas e povos nas sociedades local e global, que se constrói a partir da solidariedade humana, tendo como base os valores fundamentais da liberdade, da igualdade, da justiça e da paz. O ser humano realiza-se não na solidão, mas nas relações interpessoais. E a solidariedade não é algo que se pode adquirir por decreto normativo; ao contrário, requer uma decisão gratuita de pessoas, grupos e instituições em sentirem-se responsáveis pelos outros.






segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

VIGILÂNCIA DEMOCRÁTICA

Alexandre Aragão



Na última sexta-feira encerrou-se o I Seminário de Partidos Políticos: repensando os tradicionais partidos políticos de esquerda por eles mesmos, promovido pelo Grupo de Pesquisa do CNPQ - DEMOCRACIA E GLOBALIZAÇÃO -, entre os dias 11 e 14 de janeiro corrente, com o apoio do Departamento de Ciência Política da UECE, com o objetivo de provocar a reflexão em torno dos espaços e da dinâmica a serem estabelecidos pelos respectivos partidos a partir da conjuntura histórica na qual uma parcela significativa da esquerda há oito anos está no poder formal da política nacional ao assumir a condução do Governo Federal.

Os argumentos apresentados nas palestras foram ricos em perspectivas, assinalando uma ampla diversidade de visões em torno do papel político a ser adotado por esses partidos. Há aqueles que continuam pensando, por exemplo, na construção da revolução popular para a implantação do socialismo e, ao mesmo tempo, existem outros que se definem pela construção e consolidação gradual e contínua da democracia através da luta política e social. Nesse sentido então não se pode falar de esquerda, no singular, mas da existência de esquerdas, no plural.

Uma das contribuições significativas ao Seminário emanou das palestras proferidas pelos representantes políticos – deputados e senadores – ao apresentarem detalhes do dia a dia da prática legislativa institucional, da sua relação com os movimentos sociais, da sua relação com o poder executivo, ao denunciar a cooptação praticada, por aqueles que se acham donos do poder, aos parlamentares com o objetivo de garantir a efetivação de interesses particulares ou corporativos. Estas revelações colocaram em luz a fragilidade de um dos fundamentos sobre os quais se alicerça a nossa democracia brasileira: a representação política.

O modelo de representação política institucional foi herdado do pensamento europeu liberal dos séculos passados, receosos do domínio da minoria pela maioria popular, concebendo a democracia apenas como um procedimentalismo autorizativo através de eleições periódicas, construindo assim uma forma de elitismo político com o qual a elite econômica pudesse gerenciar seus interesses sem maiores problemas.

No Brasil, esse elitismo político encontrou um cenário ainda mais preocupante na medida em que os condicionamentos culturais sobre os quais fomos formados forjaram uma sociedade colonial, fechada, escravocrata, reflexa, sem povo, antidemocrática; nossa formação histórica não criou condições para que o nosso povo pudesse construir-se pelas próprias mãos.

Como lembra Paulo Freire, o que caracterizava a sociedade brasileira era sua condição pré-política; entre nós, o que predominou foi o mutismo do homem, foi a sua não-participação na solução dos problemas comuns, da não participação popular na coisa pública. Esse mutismo conduziu, desde o início, a um poder exacerbado, provocando a tendência para a submissão acrítica, ao ajustamento e à acomodação. Nossas disposições mentais, historicamente herdadas, são rigidamente autoritárias e sempre legitimaram tanto o afastamento do povo da experiência de autogoverno como a negação efetiva dos direitos elementares.

Na Assembleia Legislativa do Ceará, por exemplo, existem apenas 46 deputados com o poder de realizar a representação política de cerca de oito milhões de cearenses. O voto de um parlamentar representa a voz e o interesse de 194.000 cidadãos.

Segundo um dos deputados palestrantes no Seminário, com a ampla maioria parlamentar conseguida na recente eleição, o executivo estadual tem total condição de encaminhar qualquer proposta para a Assembleia que certamente a aprovará. O deputado chamou atenção para o fato de na recente convocação extraordinária do parlamento, entre as mensagens encaminhas pelo executivo estadual, constar a polêmica dispensa de licenciamento ambiental para as obras a serem construídas de interesse do governo (no momento em que no Brasil sofre-se com a maior tragédia provocada pelas chuvas na região sudeste, com a morte de centenas de brasileiros e brasileiras), além de quatro emendas à Constituição estadual, tudo isso para ser debatido e votado no máximo em 15 dias. São temas muito graves, segundo o deputado, que não podem ser votados num tempo tão exíguo, sem o devido debate popular.

E num contexto como este, indagou o palestrante, o que significa ser de esquerda? Significa ceder às pressões do poder econômico ou político, pelo fato de pertencer a uma mesma agremiação, e votar com o governo? Ou há que ser fiel ao programa partidário e aos discursos proferidos em praça pública na busca da autorização dos cidadãos? A quem se deve ser fiel? Com quem se deve manter-se coerente? E de que forma os cidadãos podem, em casos como este, exercer sua soberania e o controle sobre seus representantes?

Esta questão coloca em relevo um aspecto de maior relevância para o exercício da representação política democrática, o do relacionamento dinâmico e efetivo entre o representante com os cidadãos soberanos que o autorizaram tal encargo político, como também dos partidos políticos com a sociedade civil.

Sabe-se que a representação é necessária porque, como lembra Young, a rede da vida social moderna frequentemente vincula a ação de pessoas e instituições em um determinado local a processos que se dão em muitos outros locais e instituições diferentes. Nenhuma pessoa ou grupo pode estar presente em todos os organismos deliberativos cujas decisões afetam sua vida, uma vez que eles são numerosos e estão dispersos.

Assim a representação política tem a ver com três dimensões fundamentais para o seu funcionamento efetivo: a identificação, a autorização e a prestação de contas.

Se pela autorização os cidadãos soberanos, devidamente esclarecidos, identificam e elegem os representantes para falarem em seu nome, é pela prestação de contas que os representantes e partidos políticos se obrigam a apresentar o resultado de suas ações públicas aos cidadãos soberanos.

Consequentemente, a prestação de contas por parte dos políticos não deve reduzir-se apenas ao momento de uma nova eleição, coincidindo com uma nova autorização, mas deve ser um processo instituído e desenvolvido ao longo dos mandatos, em períodos frequentes nos quais representantes e representados possam sentar-se num mesmo espaço e dialogarem em condições de igualdade sobre as questões que lhes atingem, caso contrário aqueles que alegam estar representando, na ausência desses encontros periódicos para prestação de contas de suas ações, estarão representando a si mesmos ou a suas corporações.

Portanto, é preciso que exista uma conexão real, dinâmica e efetiva, entre representantes e representados, capaz de produzir um acompanhamento vivo da vida política em um determinado território.

Ainda mais, se pensarmos numa democracia de alta intensidade, noção desenvolvida pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, na qual a soberania popular não apenas autoriza o exercício do poder político através do voto, mas também participa da gestão de governos e de políticas públicas, exercendo um acompanhamento e controle efetivo dos seus representantes, faz-se mister a existência de espaços públicos de participação dos cidadãos, em condições de igualdade com a de seus representantes, sem nenhum status especial atribuído a qualquer organização ou indivíduo, viabilizando o debate amplo em torno das questões que envolvem suas vidas.

A existência desses espaços públicos contribui sensivelmente para a formação de uma vigilância política, necessária para o pleno exercício da democracia. Como lembra Wampler, a participação política é considerada como um instrumento de transformação social que faz parte de uma trajetória histórica de mudança política mais ampla, com potencial para educar, transferir poder e socializar os atores participantes. Pode ser conceituada como uma escola onde os cidadãos e cidadãs adquirem uma compreensão sobre o que os políticos e os governos fazem, sobre o que os políticos e os governos não podem fazer e sobre como eles, os cidadãos e cidadãs, podem exercer o controle do Estado, além de apresentar seus interesses e demandas para os representantes públicos na elaboração das políticas públicas.

Como afirma o compositor baiano Tom Zé, “a democracia atua quando ousamos, amua quando repousamos”. No repouso, ficamos desligados do que está ocorrendo ao nosso redor. E na democracia vigiar é preciso. A vigilância democrática é uma das atribuições mais importantes dos cidadãos e cidadãs soberanos que o I Seminário sobre Partidos Políticos vem trazer a público como contribuição à práxis democrática de todos nós.