segunda-feira, 11 de julho de 2011

CARPE DIEM

Alexandre Aragão

No dia 29 de junho passado, realizou-se em Brasília, integrando o Ciclo de Debates promovido pelo IPEA, um seminário intitulado QUE TRABALHO DOMÉSTICO QUEREMOS PARA O BRASIL DO SÉCULO XXI?

Até a década de 1970, as trabalhadoras domésticas eram desconsideradas como um grupo produtor de trabalho, ou seja, não faziam formalmente parte do Mercado, consequentemente não eram objeto de direitos trabalhistas e sociais. As leis “colonialistas” vigentes na ditadura militar até então as tornavam invisíveis.

Com o retorno do Brasil à democracia, a luta democrática retorna à cena política, e a Constituição de 1988 garantiu-lhes os seus primeiros direitos: salário mínimo, o 13º. salário, a licença maternidade. Mesmo assim, manteve-se o tratamento desigual às trabalhadoras domésticas, deixando de estender a elas o mesmo rol de direitos assegurados aos demais trabalhadores brasileiros. O artigo 7º. da Carta Magna, produzido pelos constituintes eleitos no contexto político de 1986, por meio da inclusão de um parágrafo único, restringe direitos à categoria das trabalhadoras domésticas.

Vê-se assim brevemente, nessa seta de tempo, um desenrolar de correlação de forças que fazem desenvolver um processo de mudança de concepções, de comportamentos e, consequentemente, de cenários, a partir da redemocratização do país. As trabalhadoras domésticas estão na luta, como agentes sociais (na visão seniana) para tornarem-se visíveis e garantirem seu espaço-cidadão na Sociedade [e no Mercado]. O princípio da igualdade requerido por uma sociedade democrática implica a liberdade de luta pela conquista da cidadania, com a ampliação de direitos e a formalização de novas normatizações. Isto, na ditadura de 1970, para as trabalhadoras domésticas, talvez fosse muito difícil de imaginar; mas agora já é uma realidade possível.

Com esse fato pretendo continuar a pensar um pouco sobre a existência humana. Ela comporta pelo menos três tipos de modalidade: a realidade, a necessidade e a possibilidade. Segundo alguns autores contemporâneos, realidade e necessidade foram modalidades com as quais a filosofia e a ciência se preocuparam demasiadamente, negligenciando a dimensão da possibilidade.

Mas o que seria, então, o possível?

No momento em que negamos uma determinada realidade, indica que estamos querendo afirmar algo diferente, mesmo quando não sabemos exatamente o que é esse querer.

Como lembra Manfredo de Oliveira, o ser humano é aquele que pode levantar a questão da validade sobre a sua práxis, sobre aquilo que deveria ser e não é, e sobre aquilo que não é e deveria ser. A ética emerge nesse contexto, como reflexão crítica destinada a tematizar os critérios que permitam superar o mal para conquistar o bem à humanidade. Seu objetivo fundamental é estabelecer o marco no qual seja possível configurar o mundo humano enquanto espaço efetivo de liberdade e justiça para todos (OLIVEIRA, 2008).

Por um lado, ser livre é ser capaz de dizer não. É libertar-se da dependência interna - por exemplo, do instinto; e externa - por exemplo, de uma coação. Um ente é positivamente livre na medida em que possui a si mesmo e tem nessa relação consigo mesmo o fundamento do seu ser e do seu agir. No ser humano livre emerge a capacidade de controlar os impulsos em função de um fim mais alto, degrau entre a vontade natural e a vontade verdadeiramente livre.

Mas a liberdade não pode esgotar-se na esfera da arbitrariedade da vontade, do ponto de vista do indivíduo isolado em si mesmo, de uma subjetividade atomizada, onde o particular enquanto particular é o essencial, o absoluto. O ser humano é igualmente um ser em relação, um ser de um mundo já feito e ao mesmo tempo sempre por fazer. Assim, não há liberdade sem processo de libertação (BOFF, 1986). A liberdade humana só é liberdade efetiva enquanto liberdade no mundo da natureza e da sociabilidade, ou seja, quando ela se faz fundamento que alicerça a relação com a natureza e a vida comum dos sujeitos
entre si.

Se a liberdade num primeiro momento é transcendência, autonomia do eu sobre toda a fatalidade, e se num segundo momento é decisão, tomada de posição diante de uma multiplicidade de possibilidades, ela só se PLENIFICA na medida em que se exterioriza, se faz mundo, se autoconfigura como ser efetivo na natureza e na sociedade. A liberdade efetiva é liberdade enquanto construção intersubjetiva de relações, a construção do ser pessoal como um-ser-com-a-alteridade, decisão a respeito da configuração específica desse ser-com. Assim, o que está em jogo no processo de libertação e o que torna possível a constituição de sujeitos enquanto sujeitos é esse processo de construção de COMUNHÕES como espaço de efetivação da liberdade na contingência dos eventos.

Nem interioridade pura, nem exterioridade pura podem construir a liberdade. Ser humano significa conquistar-se como ser livre e o caminho para chegar lá é cada individualidade compreender-se não como realidade isolada, mas construir um mundo que seja efetivador da liberdade onde cada um existe para si enquanto existe com o outro, pelo outro e para o outro (OLIVEIRA, 2008).

É na vida em comum que se pode exercer a possibilidade de outras configurações de mundo, a partir do diálogo e do respeito ao outro. A garantia do respeito ao outro deve ocupar lugar central em uma sociedade democrática e republicana, a qualquer outro, com sua inclusão integral na vida da sociedade. E isso é atribuição não somente do Estado, mas da Sociedade como um todo, incluindo-se logicamente o Mercado, numa dinâmica trialógica entre essas três esferas.

Como lembra Tocqueville (2005), não há grandes povos sem a ideia dos direitos humanos; não há grandes homens sem respeito aos direitos humanos: pode-se dizer que não há sociedade, pois o que é uma reunião de seres racionais e inteligentes cujos únicos vínculos são o egoísmo e a competição?

Então, somente quando palavra e ação não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades, tem-se uma verdadeira realização política, na liberdade.

Segundo Hannah Arendt (1993), o milagre da liberdade está inserido nesse poder de iniciar. O termo grego archein significa iniciar e comandar, isto é, ser livre; o termo latino agere significa por em movimento, isto é, desencadear um processo. Se o sentido da política é a liberdade, então isso significa que nós, nesse espaço, e em nenhum outro, temos de fato o direito de ter expectativa de “milagres”. Não porque se acredite (religiosamente) em milagres, mas porque os humanos, enquanto puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível, e realizam-no continuamente, quer saibam disso, quer não.

Somente dessa forma, conforme a autora, a política pode dar sentido à existência coletiva na terra. Na convivência ética entre seres livres e iguais, as dimensões deontológica e teleológica da ação política precisam desenvolver um diálogo dinâmico e sintonizado entre si na busca da construção do bem humano coletivo. É um percurso extenuante. Ou como diria Celso Furtado, “um longo amanhecer”.

Para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, a possibilidade é o movimento do mundo. Ele divide em três momentos o caminhar da possibilidade: 1) o momento da carência (onde emergem as manifestações de algo que falta); 2) o momento da tendência (onde começam a clarificar processos e sentidos); 3) o momento da latência (onde se apontam para os caminhos a serem trilhados no processo).

A carência é o domínio do Não. A tendência é a compreensão do Ainda-Não, ou seja, a compreensão no presente de uma possibilidade incerta, mas nunca neutra. E a latência é o domínio do Nada ou do Tudo, uma vez que essa possibilidade tanto pode redundar em frustração como em esperança. Por isso Boaventura aponta para a necessidade de conhecer bem as condições de possibilidade da esperança, buscando-se definir bem os princípios de ação que promovam a realização dessas condições.

Um elemento importante destacado pelo autor trata da qualidade da dimensão subjetiva, que leve adiante essa possibilidade, alicerçada numa consciência cosmopolita, que não desperdice as experiências que indivíduos e grupos realizam pelos quatro cantos da Terra, em busca de encontrarem respostas às suas insatisfações. É um movimento que vai ao encontro do conhecimento das experiências sociais quanto das expectativas sociais. Muitos dos movimentos emancipatórios das últimas décadas começaram por experiências sociais locais
travadas contra a exclusão social.

Neste sentido, Bovantura propõe uma ecologia dos reconhecimentos, que vá numa direção contrária às lógicas atuais de desqualificação de práticas experienciais de emancipação social que resultam imediatamente na desqualificação dos agentes. Para ele é preciso alargar o círculo das reciprocidades, criando novas exigências de inteligibilidade recíproca, uma vez que ocorrem uma multiplicidade de formas de resistência e de luta que mobilizam diferentes atores coletivos, vocabulários, práticas e recursos nem sempre inteligíveis entre si, o que pode colocar sérias dificuldades para o diálogo político.

Em cada momento, há sempre um horizonte limitado de possibilidades e por isso, diz Boaventura, é importante não desperdiçar a oportunidade única de uma transformação específica que o presente oferece. Carpe Diem.

2 comentários:

  1. TERESA NOBRE - UFS - ARACAJU22 de julho de 2011 às 09:53

    Caro Alexandre
    Gostei muito do seu texto.
    Agradeço-te pelas reflexões.
    Por que não transform num artigo publicavel?
    Grande abraço
    Teresa Nobbre - UFS - Aracaju

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  2. Valdicélia Cavalcanti - UECE - Fortaleza22 de julho de 2011 às 09:55

    Caríssimo Alexandre, paz e bem!

    Li o esse seu artigo sobre o trabalho doméstico e fiquei encantada com a maneira que você escreve.

    Fundamentação teorica com a sensibilidade na leitura de realidade e muita coerência. Parabéns pelo discernimento e construção científica.

    Sou muito grata a você tambem porque depois do incentivo, naquele encontro casual na sala de espera do cardiologista, para fazer o mestrado em Planejamento e Politicas Publicas, fui selecionada no profissional e iniciei este ano na turma de abril/2011.

    Meu objeto de estudo é Tranbalho do catador na Rede de Catadores do Ceará com recorte em gênero, refletindo o papel da mulher catadora nesse processo de organização.

    Fraterno abraço e lembranças a Olivia.
    Valdicelia

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