quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

ONDE ESTAMOS?

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por Alexandre Aragão

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Conta-nos a narrativa do livro do Gênesis que à hora da brisa da tarde Deus estava a passear pelo jardim do paraíso. Subitamente não encontrou o homem em seu lugar e imediatamente chamou por ele: “Onde estás?”. Esta é a primeira pergunta dirigida por Deus ao homem. Procurou encontrá-lo em seu lugar, mas ali não estava. Homem e mulher estavam envergonhados por haverem cometido um ato ilícito às escondidas.

O lugar de homem e mulher na criação é o paraíso, o jardim, do qual lhes cabem cuidar. Criados à imagem e semelhança do Criador, compete ao homem e mulher continuarem a obra-prima paradisíaca.

Cuidar significa meditar com ponderação, prestar atenção em, responsabilizar-se, ter muita atenção para consigo mesmo – interiormente e exteriormente – e para com o outro, buscando obter conhecimento dos limites a que se está submetido para que sejam superados sempre de forma consciente, social e ecologicamente responsável. Não é fazer o que se quer, nem tampouco transformar o jardim numa porcada ou num inferno.

A pergunta originária de Deus ao homem persegue-o em toda a sua existência. Ela aponta para a necessidade ética que o ser humano tem de saber onde está em cada momento de sua existência. É um imperativo categórico, pois a responsabilidade sobre a vida do jardim e de seus habitantes recai sobre si. Ninguém pode eximir-se dessa responsabilidade, é um componente ontológico. De nada adianta fugir, isolar-se, esconder-se ou virar a face, afinal o jardim está aí para ser cuidado e produzir, a partir da ação humana, felicidade para os seres humanos de todos tempos-espaços presentes e futuros.

A vergonha e o medo que homem e mulher originais sentem por haverem cometido um ilícito às escondidas recordam continuamente a necessidade que temos de construir nossas relações humanas – interpessoais e institucionais – baseadas na transparência de nossas ações. Somente assim a vida do jardim poderá ter uma garantia de longevidade feliz.

Em 2010 podemos começar mesmo, de verdade, um momento novo em nossas vidas, reeducando-nos para a construção de um bem maior, a partir da conversão dos nossos pequenos-grandes atos do dia a dia, procurando saber sempre onde estamos e se nossas atitudes estão adubando nosso jardim existencial pessoal e social, local e global.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Livres, Iguais e Fraternos

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por Alexandre Aragão
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Eis que nos chega mais um Natal, o ciclo parece se repetir: um novo fim, um novo começo. Ruas lotadas de consumidores frenéticos em busca de mercadorias, de fetiches que lhes preencham o desejo, que lhes forneçam algum encantamento. Mas seria essa a finalidade do Natal: reduzir a vida a um consumo desenfreado? Ou o Natal implica perguntar-nos pelos sentidos da existência, possibilitando-nos revê-los e atualizá-los?

Poder-se-ia dizer que o sentido da vida funda-se no fato de o ser humano ser capaz de questionar-se sobre suas representações e desejos, se eles são válidos e moralmente corretos. Da liberdade de poder questionar-se sobre sua existência, o ser humano descobre a idéia do Bem e do Verdadeiro. Assim, de posse dessas noções, ele sempre pode perguntar-se sobre as razões – teóricas e práticas – de suas suposições e com isso libertar-se de causas cegas que o impulsionam a determinadas atitudes. O humano é o ser que está sempre além de qualquer realidade, pode perguntar-se pelo sentido de tudo, consequentemente, é capaz de criar mundos espirituais, ou seja, capaz de transcender à realidade dada para dar-lhe um novo sentido e uma nova possibilidade.

Logo, não há liberdade humana sem processo de libertação. Liberdade em sentido pleno é o processo no qual o ser humano determina a si mesmo em vez de ser determinado por outros poderes como a Mídia, a Propaganda ou o Mercado. A liberdade sempre implica motivação, ou seja, uma deliberação racional a respeito dos motivos a favor ou contra a escolha de um determinado valor. Para Tomás de Aquino, o fim, determinado pela vontade que o gerou, especifica enquanto bem ambicionado a forma e o caráter ético da ação humana. O fim é a primeira causa que movimenta a vontade para uma ação. Assim, o ser humano é tanto mais livre em relação ao finito quanto mais se radica no infinito. A presença do infinito nele é condição de possibilidade de sua liberdade. O Absoluto é a raiz da sua liberdade.

Mas a liberdade humana só é liberdade efetiva enquanto liberdade no mundo da natureza e da sociabilidade, ou seja, quando ela se faz fundamento que alicerça a relação com a vida comum dos sujeitos entre si no ambiente cósmico concreto. Se a liberdade num primeiro momento é transcendência, autonomia do eu sobre toda a fatalidade, e se num segundo momento é tomada de posição diante de uma multiplicidade de possibilidades, ela só se plenifica na medida em que se exterioriza, se faz mundo, se autoconfigura efetivamene na natureza e na sociedade. A liberdade efetiva é liberdade enquanto construção inter-subjetiva de relações. Assim, o que está em jogo no processo de libertação e o que torna possível a constituição de sujeitos enquanto sujeitos é o processo de construção de COMUNHÕES como espaço de efetivação da liberdade na contingência dos eventos. Nem interioridade pura, nem exterioridade pura podem construir a liberdade. Ser humano significa conquistar-se como ser livre e o caminho para chegar lá é cada individualidade negar-se como realidade-isolada e construir um mundo que seja efetivador da liberdade onde cada um existe para si enquanto existe com outro, pelo outro e para o outro.

A ética nasce justamente das perguntas pelos critérios que tornem possível o enfrentamento da vida com dignidade. O ser humano é o ser que pode levantar a questão da validade sobre a sua práxis, sobre aquilo que deveria ser e não é, e sobre aquilo que é e não deveria ser. A ética emerge nesse contexto como reflexão crítica destinada a tematizar os critérios que permitam superar o mal e conquistar o bem à humanidade. Seu objetivo fundamental é estabelecer o marco no qual seja possível configurar o mundo humano enquanto espaço efetivo de liberdade, igualdade e justiça para todos.

O Natal diz respeito ao nascimento de Jesus. A experiência original cristã é fruto não tanto de um conhecimento filosófico sistematizado, mas principalmente da vivência de suas primeiras comunidades relativas ao fenômeno revelador de Deus como amor encarnado na mensagem e na vida de Jesus de Nazaré. De fato, a filosofia grega não se atreveu a conferir ao Logos o atributo do amor, porque segundo aquela filosofia, o amor tem sua origem última numa carência e, portanto, não poderia existir nenhum impulso emotivo num Deus que é o movente imóvel de todas as coisas móveis. A experiência cristã transpõe esse umbral ao conceber Deus como amor (1 Jo, 4, 8) porque, para o pensamento cristão, o amor não correspondia a um sinal de falta, presente no pensamento grego, mas a uma plenitude que se comunica continuamente.

A partir de sua inteligência, homem e mulher cristãos compreendem e encontram resposta à sua pergunta basilar: de onde viemos? Percebem que não surgiram do nada. Se o universo teve um começo, houve um Ser que lhe deu origem, pois, segundo o pensamento cristão, todo princípio tem uma origem. Esse Ser, para os cristãos, em sua essência é amor, caritas. Esse amor é colocado na criatura humana e no Cosmo como um dinamismo vital. A matéria não é inerte, há nela uma energia amorosa capaz de desenvolver processos sempre inacabados (Mc 4, 28). Como conseqüência fundamental da antropologia cristã, na revelação de Deus amor como princípio de todos os homens e mulheres de todos os tempos e espaços, reside uma filiação humano-divina que faz com que todos se sintam irmãos - fundamentando o princípio cristão da fraternidade universal - e partícipes igualmente da divindade - fundamentando o princípio cristão da igualdade entre os seres humanos. Como filhos, e não mais como escravos, os seres humanos são chamados a construir a vida na Terra.

Daí que para o pensamento cristão a liberdade do ser humano não é pensada a partir de uma ordem cósmica, como no pensamento grego, mas como relação a uma liberdade originária, numa vontade incondicionada que se encontra no próprio Deus. Uma metafísica da liberdade, já que a liberdade incondicionada e absoluta de Deus é a referência a partir da qual a totalidade é interpretada, implica um novo horizonte para pensar a liberdade humana, pois a fundamentação da ordem do mundo na vontade de Deus é algo profundamente diferente da fundamentação do mundo num movimento cíclico como pensavam os gregos.

Outra contribuição do cristianismo foi favorecer a percepção de que o ser humano é o ponto de convergência no qual o universo chega à consciência de si mesmo, e através da concepção cristã de Jesus de Nazaré como o filho de Deus, manifesta-se o caráter da unidade entre a divindade e a humanidade, conferindo a cada pessoa humana singular uma dignidade única. Cada pessoa é absolutamente insubstituível.

Livres, iguais e fraternos parece ser a mensagem central que o natal de Jesus de Nazaré vem apresentar ao mundo. Três dimensões que estão imbricadas entre si, como numa mesa de três pernas: se uma delas faltar, a mesa perde o equilíbrio e não se sustenta.

A partir da estrebaria de Belém, a mensagem cristã ganhou o mundo e atravessou os séculos. Hoje, de cada cidade espalhada pelo globo terrestre contemporâneo, poderão surgir novas práticas humanas alicerçadas nestas três dimensões, capazes de gerar um novo paradigma humano e um novo tempo para a humanidade.

Feliz Natal!

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Trecho do Prefácio de Bruni no Livro

FRATERNIDADE E COMUNHÃO: MOTORES DA CONSTRUÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA HUMANO
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Os principais frutos que a relacionalidade dos mercados produz são simbolizados por dois valores da modernidade: igualdade e liberdade, principalmente a liberdade do indivíduo. Existe porém um terceiro princípio da modernidade demasiadamente esquecido: a fraternidade, um princípio “transcendente”, que não se põe ao lado dos outros dois, mas é uma dimensão da liberdade e da igualdade que se faltar não permite a estas duas realidades humanas desabrocharem com toda plenitude. A liberdade e a igualdade prometidas pelo mercado pediram na modernidade o sacrifício da fraternidade, porque as suas afirmações aconteceram através da expulsão da relação de fraternidade da esfera pública. Liberdade e igualdade podem permanecer – e historicamente permaneceram como experiências “imunizadas”.
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Com a fraternidade isso não aconteceu. Eis porque a fraternidade é sempre uma experiência de alegria e de dor, de vida e de morte. Mas sem a fraternidade a vida não desabrocha, não existe felicidade nem humanidade plenas. É óbvio, a vida nem é feliz nem plenamente humana quando estão ausentes a liberdade e a igualdade. Mas a grande ilusão do humanismo do mercado foi pensar que poderia promover algo de autenticamente humano removendo a relação de fraternidade, com toda sua carga de trágico, de dor e de sofrimento. O grande desafio da posmodernidade será o de realizar conjuntamente estes tres princípios, imaginar e construir um humanismo tridimensional. O paradoxo da “infelicidade opulenta”, e os outros paradoxos da felicidade, revelam-nos substancialmente o altíssimo custo que a humanidade está pagando por haver sacrificado a fraternidade, o princípio esquecido pela modernidade (BAGGIO, 2007).
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A esse respeito, o mito bíblico do combate de “Jacó com o anjo”, do livro do Gênesis (cap.32), comunica muitas coisas a respeito da fraternidade. O episódio se insere na volta de Jacó à terra dos pais, depois do exílio junto ao tio Labão para fugir do irmão enganado, Esau. Para se compreender plenamente o sentido da bênção que o anjo – o ser misterioso – dá a Jacó, é necessário partir da experiência de “fraternidade ferida” que envolve o próprio Jacó e o irmão gêmeo Esau. O Génesis nos narra (cap.27) a respeito da bênção que Jacó arrancou do pai Isaac, tirando-a ilegitimamente de Esau: “Prepara um prato do meu gosto e traga-me para comer, para que eu te bendiga antes de morrer”(Gn 27,5). É interessante notar uma mensagem escondida na língua hebraica como qual essa narrativa foi escrita. A raiz semítica da palavra bênção “beraka (brk)” de fato, faz referência a coxa do homem, a mesma coxa de Jacó ferida depois do combate. A ferida que Jacó recebeu do Anjo deve ser lida, portanto, em relação a uma ferida mais radical, justamente aquela da fraternidade.
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Uma tradição rabínica diz que Jacó jamais se curou daquela ferida no nervo ciático e que mancou toda a vida, porque o mancar, a fragilidade é a condição do humano: a fraternidade é paradigma do civil e do político, somente se antes nos reconhecemos todos vulneráveis e frágeis, e portanto, necessitados ontologicamente do outro. Também a sociedade de mercado contemporânea sacrificou a fraternidade e também aqui com um grande engano ao prometer uma boa convivência sem sofrimento e gratuidade. O resultado não foi a eliminação, na vida em comum, do sofrimento e da dor, muito pelo contrário, foi a sua multiplicação. A sociedade de mercado de fato deu vida a estruturas criadoras de feridas e a mecanismos que excluem do mercado e da política - e das mediações – meninos e meninas, mulheres e homens de muitos países (e aqui não posso não pensar hoje na África, nas favelas brasileiras e em certas regiões do mundo, onde as feridas da “communitas” se juntaram as feridas mortais dos poderosos da política e do mercado, muitas vezes mais desumanas do que as estruturas tradicionais dessas culturas).
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Esse grande engano deve ser expiado e a ferida profunda da fraternidade universal deve ser curada, se queremos nos reapropriar da dimensão humana e pensar um futuro sustentável. Somente um “corpo a corpo” com o outro em carne e osso e a aceitação da ferida que esse combate pode provocar, podem restabelecer um novo vínculo social, uma nova fraternidade, uma economia de comunhão, que ainda não sabemos descortinar.
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Em cada pessoa ou povo enganado pela “grande ilusão da modernidade”, se esconde um um novo Esau que nos solicita a sua bênção roubada. O comunitarismo, isto é, construir “comunidades fechadas” protegidas da ferida do outro, daquele que está fora dos nossos muros, mas que tem a ver conosco e interpela a nossa fraternidade, um comunitarismo que hoje se reapresenta no horizonte da sociedade posmoderna como uma grande tentação, não pode ser um ponto de apoio nem solução, porque somente uma fraternidade universal aberta, não fechada e nem seletiva, pode satisfazer a exigência de communitas do homem posmoderno.
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Se tudo isso é verdade, ou ao menos plausível, então se compreende o alcance de inovação cultural do livro de Alexandre Aragão que na substância é, ao meu ver, uma reflexão na tentativa de fazer retornar a fraternidade na esfera pública e na esfera do mercado. Economia e civilização, mercado e fraternidade. Porém sem retornar com isso a comunidade sagrada e hierárquica do passado, e salvando a herança civil de uma certa economia de mercado, que porém deve ser redirigida ao bem comum, incluindo principalmente os empobrecidos.
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Pode-se ajudar os pobres com filantropia (USA) ou com o welfare-state (Europa), permanecendo “imunes” em relação a eles, mas se pode curar a pobreza tornando-se “irmãos e irmãs” dos empobrecidos, condividindo com eles a própria vida. Eis porque a solidariedade é diversa (mesmo se não oposta) da fraternidade que é sempre experiência de proximidade, de “contaminação” com o outro: um acontecimento exemplar da história da fraternidade é o beijo de Francisco no leproso de Assis, que inaugura a fraternidade franciscana.
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Por essas razões (aqui somente ligeiramente acenadas) a obra de Alexandre de Aragão é também e principalmente um livro de esperança, porque nos oferece boas razões para acreditar ainda no humano. Convida-nos a apostar na fraternidade também na vida civil da posmodernidade. Sem nostalgias, a fraternidade não está atrás de nós, em saudosas comunidades do passado. Mas a fraternidade está diante de nós, e é projeto civil e político, um novo pacto, uma nova aliança entre política, sociedade civil e mercado.
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Alexandre para mim representa historicamente um encontro que me revelou dimensões novas da fraternidade, da comunhão, da pobreza, da anima e do animus brasileiro e nordestino, um encontro importante como ser humano e como estudioso. Esse meu prefácio é somente um modo de dizer-lhe obrigado, de devolver um dom recebido, é reciprocidade.
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Luigino Bruni

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Trecho do Prefácio de Brandão no livro Fraternidade e Comunhão: motores da contrução de um novo paradigma humano, de Alexandre Aragão

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Alguns acreditam que entre a barbárie sempre à espreita de poder retornar, e a injustiça, a desigualdade, a exclusão, que na vida de bilhões de seres humanos são vividas como a fome e a miséria, a dor e o sofrimento, o mundo “é assim e não pode mudar”. Que tal como ele é e evolui, nosso mundo “assim” é o único possível.
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Outros denunciam de diferentes maneiras tudo o que o “sistema mundo” em sua forma atual, monetarizada e globalizada gerou: não o “melhor dos mundos”, mas talvez justamente o seu oposto. Entre os que pensam assim, existem afortunadamente por todo o Planeta muitas mulheres e homens que acreditam que somos todas e todos nós os responsáveis por nossas vidas e a de nossos próximos; por nossos destinos e pelo mundo em que vivemos. E sabem que não bastam boas teorias e nem apenas ótimos propósitos.

Necessitamos urgentemente de uma reconversão de visões de mundo e de sentidos de vida. De um outro olhar sobre o outro, como um nosso irmão, quem quer que seja. Um outro olhar sobre a vida, nossa grande aventura aqui. E um outro olhar sobre as relações que compartimos entre nós, e entre nós e a vida e a Terra.

Necessitamos reaprender o amor. Entre tantos aprendizados que a cada dia mais nos aparecem com sendo os mais importantes: aqueles que nos tornam indivíduos competentes e competitivos para um mundo que reduz a sociedade ao mercado e as pessoas à mercadoria, precisamos reaprender a gratuidade, a generosidade, a solidariedade, a partilha da vida. De uma vida regida pelo encontro entre pessoas através do amor.

Este não é o caminho utópico da fantasia. Ele é o mais urgente e o mais realista de todos os caminhos que podemos escolher. Além dele, qual outro caminho poderia nos conduzir tanto à nossa própria sobrevivência quanto à realização, passo a passo, de uma humanidade fraterna fecunda e feliz?

Fraternidade e comunhão – motores da construção de um novo paradigma humano, de Alexandre Aragão, foi escrito para somar-se a outros livros e escritos que nos sinalizam este caminho de esperança. Ele nos lembra que a “construção de um novo paradigma humano” - e não apenas intelectual ou científico – não está tanto na descoberta de novos segredos da natureza e da sociedade. Não está apenas na interconexão entre diferentes campos do saber e na criação de novos “pensamentos complexos”. Não está somente em uma nova interação “transdisciplinar” entre as ciências, mas está em algo ainda mais humanamente interior. Algo que existe em nós, dentro de nós. E, em nós, está primeiro no coração para, depois, estar também em nossa mente.

Entre tantos descaminhos da “modernidade líquida”, convivemos hoje em dia com uma série de experiências espirituais, vivenciais, interativas e práticas que apontam para um outro horizonte. A Economia do Dom, a “Socioeconomia solidária”, a Economia de Comunhão, a troca do Produto Interno Bruto pela Felicidade Interna Bruta, e outras experiências que brotam e frutificam entre os mais diferentes recantos do mundo.

A experiência amorosa de encontro com o outro e de serviço ao outro trazida neste livro por Alexandre Aragão, talvez seja pouco conhecida entre nós. Em sua simplicidade cristã, ela nunca aparece como algo que mereca (e nem precisa) sequer alguns minutos de nossa mídia. E, no entanto, aqui está, no Movimento dos Focolares, um dos sinais de amor e esperança mais generosos e consistentes entre nós.

O livro de Alexandre Aragão não deve ser lido como a memória de “mais uma experiência”. Ele é o exato oposto disto. Ao nos apresentar não a história, mas a atualidade viva do que algumas pessoas podem fazer quando se reúnem para tornar a comunhão e a fraternidade algo vivido no dia a dia, Alexandre Aragão – “remando contra a corrente” - nos oferece um livro para ser pensado e também um manual de amor a ser vivido e praticado. Que ele seja lido e relido com este duplo espírito.
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Rosa dos Ventos, primavera de 2009
Carlos Rodrigues Brandão

domingo, 11 de outubro de 2009

MOTOR DE PROCESSOS HUMANOS

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por Alexandre Aragão

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Mas o que seria então a interdependência humana?

Alguns autores a definem como uma interrelação entre elementos que se condicionam reciprocamente. Ou seja, é um caminho de duas vias que vai de um ao outro, supondo pelo menos duas presenças que se complementam. É uma estrada pela qual se constroem relacionamentos humanos entre sujeitos livres. Esta relação de humanização só pode caracterizar-se enquanto tal se for fundada no respeito recíproco, pela compreensão recíproca, por saber deixar espaços para acolher as dificuldades e limites inerentes da caminhada, reconhecendo-as, respeitando-as, dialogando sobre elas, para encontrar soluções que sejam fruto da compreensão e da partilha mútuas.

A interdependência é antes de tudo um novo olhar sobre si e sobre os outros, buscando compreender profundamente a riqueza e o mistério da origem humana comum a todos. É essa origem comum que nos denomina de "germanus", aqueles que possuem o mesmo gérmen humano, isto é, irmãos. Portanto, é um olhar inclusivo que abre espaço ao outro.

Lao-Tsé, em uma passagem magistral, ajuda-nos a entender um pouco melhor o que significa esvaziar-se e abrir espaço em nosso dia a dia ao outro: “Vaza-se a argila e se faz o vaso, mas é o vazio que perfaz a vasilha. Uma casa é perfurada por portas e janelas, mas é ainda o vazio que nos possibilita a habitação. Apalavram-se falas e se falam palavras, mas é o silêncio que comunica a linguagem. O ser dá as possibilidades, mas é o não-ser que dá o sentido”.

Assim, a dimensão fraterna comum a toda humanidade implica que as identidades não podem afirmar-se por imposição ou defesa, mas pela relação comum, pela comunhão: de vida, de culturas, de riquezas, de virtudes cívicas, de experiências políticas e religiosas. A fraternidade implica a escolha do pluralismo e não da hegemonia, da partilha e não da concentração dos recursos econômicos e científicos em determinadas áreas do planeta ou em grupos sociais. Implica uma busca constante daquilo que nos liga e religa, a partir da superação das situações de conflito nas quais estamos imersos nos tempos-espaços concretos e presentes.

Edgar Morin observa que a tendência a entropia, isto é, o crescimento da desorganização sobre a organização no seio de um sistema cresce de maneira inversa à informação. Quanto maior for a partilha de informação num sistema, mais ele desenvolverá a neguentropia, ou seja, sua reorganização complexa. Complexo é aquilo que tecemos juntos.

Buscar aquilo que nos une [que nos torna mais humanamente organizados] é assumir uma atitude de amor pela humanidade e pelos seus valores. A regra de ouro, presente em praticamente todas as religiões humanas, afirma algo que precisamos rememorar: “todo aquele bem que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles”. É o princípio da iniciativa no amor, em fazer o bem ao outro. É mergulhar fortemente na história concreta da humanidade presente, em suas dores e conflitos, para fazer emergir dela o caminho rumo a um novo paradigma cultural. É fazer da fraternidade, do olhar inclusivo do outro, um motor de novos processos de vínculos solidários.
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Assim, é preciso reaprender a dialogar, a escutar, a acolher o outro dentro de nós. Chiara Lubich, em um de seus textos memoráveis, afirma: “Para acolhermos em nós o Tudo, temos de ser o nada. É preciso nos colocarmos diante de todos numa posição de aprender, porque temos de aprender realmente. E só o nada reúne o tudo em si e liga a si cada coisa em unidade. É preciso ser nada diante de cada irmão para unir a si o Ser presente nele”.

Como nos lembra Marcos Arruda, não se criam novas estruturas, novas instituições e novas relações sociais com velhos seres humanos. Velhos somos todas e todos que carregamos conosco a marca profunda, e diariamente renovada, da cultura do egoísmo, da competição predatória contra o outro, do consumismo desenfreado, do mimetismo, do culto fetichista às máquinas e à técnica, do materialismo vulgar que só reconhece como realidade o visível e o imediato.

A cultura a ser reinventada é a da valorização da diversidade como base para a elaboração de projetos em comum e da colaboração para torná-los realidade. Esta é também a cultura do respeito ao outro, do acolhimento, da busca de complementaridades que enriqueçam o que sou e o que tenho, a fim de que, juntos e conscientemente solidários, sejamos mais e melhores do que temos e somos individualmente. A cultura da interdependência é a cultura do amor recíproco.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

PENSAMENTO E EXPERIÊNCIA COLETIVA: individualismo ou interdependência?


por Alexandre Aragão de Albuquerque

O concreto é concreto porque é resultado de múltiplas determinações. Consequentemente, o concreto é complexo; não é resultado apenas de uma única dimensão da vida humana seja ela econômica, política, subjetiva ou cultural. O complexo é um conjunto onde o simbolismo, o mito, o imaginário, o racional e a experiência se encontram em seus respectivos lugares para juntos costurarem o tecido daquilo a que chamamos real, como nos lembra Edgar Morin.

Nestes dias vivi uma experiência muito particular, quando na disciplina de Sociologia da Educação propus aos estudantes fazerem uma pesquisa no território onde habitam, procurando identificar alguns sofrimentos humanos concretos presentes em seus bairros e pessoalmente escolherem um para fazer uma pesquisa mais aprofundada na tentativa de conhecê-lo melhor e identificar algumas possíveis causas que o determinam.

A motivação de fundo para essa iniciativa decorreu de uma ampla reflexão que fizemos em sala sobre uma pergunta lançada por Theodor Adorno, num trecho em que reflete sobre a educação: “Com quem devemos ser solidários?”.

Para Adorno, é com o sofrimento dos homens e mulheres que se deve ser solidário. Por isso é fundamental vivenciar a experiência concreta com o outro, porque a perda da capacidade de experienciar é a insensibilidade perante o próprio sofrimento e perante o outro. A experiência é sempre um agir e um sofrer com o outro de forma real.

Foram muitos os sofrimentos colhidos pelos estudantes nessa ação. Uma verdadeira descoberta, a possibilidade de olharem de forma diferente, conforme registraram em seus relatórios, a partir do momento em que se aproximaram mais de perto do sofrimento do outro, tão próximo a si.

Relato aqui brevemente a pesquisa de uma aluna realizada com três jovens adolescentes que praticam tráfico de drogas em seu bairro. Entre os seus entrevistados estava uma criança de apenas 12 anos de idade. O garoto entre outras coisas afirmou que tem dificuldade de freqüentar a escola na qual está matriculado, porque todas as vezes que chega em sala de aula a professora o expõe diante dos colegas chamando-o de “fedorento”, mandando-o retornar para casa e só voltar quando estivesse cheirando bem. Assim, ele prefere estar na rua como “avião” porque ganha R$15,00 por dia e com esse dinheiro dá para ele sustentar a sua mãe e seu irmão mais novo.

Quando a estudante apresentou em sala esse relato, começamos então a conversar e nos perguntar: por que será que uma professora, que passou por uma universidade, recebeu uma formação superior, estudando uma série de teorias sobre o processo educativo, expõe uma criança de 12 anos a tal constrangimento? Seria um problema apenas daquela professora, ou seria um problema da forma como estamos produzindo e transmitindo o conhecimento em nossas universidades? É o sofrimento humano um tema central em nossos estudos universitários? Qual a ética que dá sustentação à produção do nosso conhecimento dito científico?

Como nos lembra Heidegger, a experiência do pensamento só tem sentido quando se baseia na experiência humana. Só ela permite ter a certeza de que se está baseado na rocha da realidade. Só ela legitima a visão criadora sem a qual nenhuma sociedade pode perdurar. Para isso, é preciso olhar a vida concreta que passa ao nosso redor. E olhar não se trata apenas de ver, pelas lunetas de teorias descoladas da realidade. Olhar significa cuidar, zelar, tomar conta de, quando por exemplo dizemos “olhe as crianças enquanto vou fazer o almoço”.

O individualismo moderno recusa-se a enxergar os sofrimentos humanos concretos que batem diariamente em sua fortaleza. Constrói carros blindados à prova das balas da realidade. O individualismo moderno continua alheando-se da dor que habita o planeta. O individualismo moderno quer apenas a maximização da felicidade pessoal, independente das conseqüências que possa causar a outrem. É em cima dessa antropologia individualista que construímos o conhecimento no mundo moderno.

A experiência de milhões de crianças “fedorentas” de 12 anos pelo mundo afora vem nos mostrar que algo se perdeu, algo continua se perdendo, e que a legião de consumidores e de traficantes de droga não é obra do acaso. A chave do individualismo parece não ser mais capaz de fazer a leitura real da realidade. Precisamos descobrir outra chave que possa abrir a porta do vínculo solidário de nossa interdependência humana, derrubando os muros da indiferença e do apartheid social a que nos submetemos pela mão invisível do individualismo.

sábado, 11 de julho de 2009

A CIDADANIA EM DEBATE

Alexandre Aragão


Nosso saudoso e querido sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, dizia; “a criança é um princípio sem fim, o fim da criança é o fim de todos nós”.

No dia 13 de julho comemoramos dezenove anos de existência do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei federal no. 8.069, fruto de uma grande mobilização social pela perspectiva de um instrumento jurídico que pudesse provocar uma mudança substancial na forma de tratamento por parte do Estado, da Sociedade Civil e das famílias em relação a esses seres humanos, sujeitos de direitos que necessitam de atenção e proteção integral, devido à sua condição peculiar.

Todo ser humano é sujeito, independente de sua idade ou condição social. Como nos lembra Charlot (2000), sujeito é um ser humano aberto a um mundo que possui uma historicidade. É portador de necessidades e desejos, além de estar em relação com outros sujeitos humanos. O sujeito é ao mesmo tempo um ser social, com uma determinada origem familiar, que ocupa um determinado lugar social e se encontra inserido em relações sociais. É também um ser singular, que tem uma história, que interpreta o mundo e dá-lhe sentido, assim como dá sentido à posição que nele ocupa. Ser sujeito é ser ativo, agir no mundo e sobre o mundo, e nessa ação o sujeito se produz e, ao mesmo tempo, é produzido no conjunto das relações sociais no que se insere. O ser humano se constitui na relação com o outro.

Mas existem várias maneiras de se construir como sujeito, e uma delas se refere aos contextos de desumanização nos quais o ser humano é proibido de ser, privado de desenvolver suas potencialidades, de viver plenamente a sua condição humana, como acontece com uma grande parte das e dos jovens brasileiros pobres, filhos dos trabalhadores rurais e urbanos, discriminados por alguns setores da sociedade brasileira, pela sua condição social e de cor, como apontam diversos estudiosos.

Sposito lembra (2006) que a questão social no Brasil durante a maior parte do século XX foi tradicionalmente tratada como questão de polícia. De modo muito gradativo a assistência social trouxe-a para a esfera dos direitos. Até 1990, no lugar do ECA, existia o Código de Menores, com sua doutrina da situação irregular, “uma espécie de código penal disfarçado para punir as crianças e adolescentes, dependendo de sua condição social”, nas palavras do procurador Odilon Aguiar. Naquela época, crianças e adolescentes eram tratados como “menores”, “trombadinhas”, “pivetes”, “pixotes”, não tinham chance de defesa, não havia processo legal quando recolhidos pelos comissários de menores para os orfanatos, nos quais permaneciam indefinidamente, por ato unitário e personalíssimo da autoridade judicial.

Com o advento do ECA, a realidade juvenil passa a ser vista a partir do prisma político. Crianças e adolescentes são reconhecidos como sujeitos de direitos, entre estes, o direito à sobrevivência, à integridade, ao desenvolvimento humano alicerçado na equidade entre os sujeitos e sustentabilidade. A Política, diferentemente da polícia, é produtora da possibilidade de construção de novos significados e, consequentemente, de trazer à luz aqueles sujeitos que permanecem colocados na sombra, não atingidos pelos pressupostos republicanos e democráticos da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Somente quando alcança o estatuto de um problema político [e não policial] a realidade da criança e adolescência começa a ocupar a agenda pública que demanda políticas específicas e efetivas.

Para Rua (1998), “política pública é um conjunto de decisões e ações destinadas à resolução de problemas políticos”. Requer a presença do aparelho público-estatal na sua definição, implementação, acompanhamento e avaliação, assegurando seu caráter público, mesmo que em sua realização ocorram algumas parcerias. Ou seja, políticas públicas são um conjunto de ações permanentes que asseguram e ampliam direitos civis, políticos, econômicos, sociais e coletivos de todos, que devem ser amparados por lei, de responsabilidade do Estado o seu financiamento e a sua gestão, e com a participação e controle da sociedade civil.

Passados 19 anos do ECA, quase duas décadas, impõem-se novas reflexões em torno das conquistas obtidas, mas principalmente em relação aos novos desafios que se nos colocam no sentido de garantir que os dispositivos legais previstos na Lei sejam de fato concretizados pelo Estado brasileiro, garantindo às nossas crianças e adolescentes cidadania plena. Entendemos que as mobilizações sociais não devem restringir-se a eventos pontuais, mas devem assumir-se como processos permanentes que buscam vincular as questões conjunturais com as estruturais. No capitalismo global a exclusão social apresenta-se como um fato estrutural, um desafio posto para a sociedade civil mundial contemporânea. Além de continuarmos alimentando a democracia como um valor, urge afirmar a construção de espaços permanentes de participação popular nas decisões que dizem respeito à existência de todas as pessoas em todos os campos da vida econômica, política, social e cultural, colocando nossa cidadania em movimento permanente para garantir espaços e instrumentos eficazes e democráticos de acompanhamento e gestão das políticas e recursos.

É um novo tempo de engajamento em busca de realizar a humanização da humanidade.




quarta-feira, 8 de julho de 2009

O SENTIDO DA VIDA

Alexandre Aragão

Hoje pela manhã, após o café, percebi que a pia da cozinha estava repleta de louças por lavar. Assim, concluída a refeição matinal, decidi-me pela limpeza dos pratos, panelas e talheres. Minha esposa, antes de sair para o seu trabalho, deu-me um beijo e disse-me que “eu ficava muito bonito lavando os pratos”. Sorriu e partiu.

Depois de sua saída, percebi que aquele tinha sido um belo elogio para o início de mais uma manhã que teria entre outras coisas novas leituras na construção do meu referencial teórico para a elaboração de minha dissertação. Mas parei para curtir um pouco sobre o que ela me falou.

Perguntei-me: que motivação profunda me fez tomar aquela iniciativa?

Rapidamente viajei no tempo, chegaram-me várias imagens. Primeiramente a imagem de meu pai. Lembro-me quando as enchentes históricas do rio Capibaribe assolavam Recife na década de 1960, ele após deixar-nos em lugar seguro, geralmente na casa de minha bisavó Lila [pois a nossa casa ficava inundada pelas águas do rio consagrado por João Cabral de Melo Neto], saía de barco, com alguns amigos, para socorrer pessoas em dificuldade tomadas de surpresa pelas enchentes.

Outro episódio marcante para mim, numa noite, quando um mendigo fora brutal e covardemente agredido por um de nossos vizinhos, imediatamente colocou-o num táxi e levou-o para o hospital. E ainda, quase que diariamente, após chegar do trabalho, colocava uma bermuda e camiseta branca, pulava o muro e ia prosear com o seu tio, portador de deficiência motora e visual. Este cuidado e atenção de meu pai pelo outro, seja ele quem fosse, foi um ensinamento que carrego comigo desde minha tenra idade. Esses atos de gratuidade e solidariedade ficaram registrados desde sempre em mim.

Outra lembrança foi a de minha avó Conceição. Em sua modesta casa, até o final de sua vida, sempre fora aberta a todos, principalmente aos empobrecidos. Porém, o que mais eu gostava nela era quando, no final dos anos 60, chamava-me para contar histórias da vida dos santos. Eu, aos meus sete anos de idade, me maravilhava naqueles relatos sobre aquelas pessoas capazes de feitos grandes e imprevistos por amor ao outro.

Lembrei-me também do que diz o filósofo Manfredo de Oliveira: o ser humano constrói a vida a partir dos sentidos e das categorias a que recorre para descrever o mundo. Eles nos condicionam e condicionam o mundo que nos rodeia. Isso torna possível diferentes interpretações da mesma experiência. Assim criam-se mundos espirituais – individuais e sociais. Na realidade todos os conceitos são idealizações da realidade empírica e, por essa razão, emerge a possibilidade de perguntar-nos se as representações são verdadeiras e se os desejos são moralmente corretos. O ser humano pode dizer sim e não (internamente e externamente). E aqui está uma grande descoberta humana: a idéia do que é Verdadeiro e do que é Bom. É uma descoberta ineliminável, pois mesmo aquele que julga toda verdade uma ilusão tem de considerar verdadeira a sua convicção. O Verdadeiro e o Bom abrem para o ser humano um espaço de liberdade. Ele sempre pode se perguntar sobre as razões teóricas e práticas de suas suposições e com isso libertar-se de causas cegas que o impulsionam. Assim o ser humano está sempre além de qualquer realidade dada. Ele pode perguntar-se pelo sentido de tudo. O ser humano é o ser que pode levantar questão sobre a validade de sua prática: o que é e não deveria ser, e o que não é e deveria ser.

Não há liberdade, sem processo de libertação. Liberdade, em sentido pleno, é auto-determinação. Ação livre é aquela que o ser humano determina a si mesmo ao invés de ser determinado por outros poderes, ação em que o ser humano não é simplesmente de causas fora dele mesmo, mas determinado pelo que é racional. Para Tomás de Aquino, o fim, determinado pela vontade que o gerou, especifica, enquanto bem ambicionado, forma caráter ético da ação humana. O fim é a primeira causa que movimenta a vontade para uma ação. A liberdade sempre implica motivação, ou seja, uma deliberação racional a respeito dos motivos a favor ou contra a escolha de um determinado valor. O ser humano é tanto mais livre em relação ao finito quanto mais se radica no infinito. A presença do infinito nele é condição de possibilidade de sua liberdade. O Absoluto é a raiz da liberdade.

Se a liberdade num primeiro momento é transcendência, autonomia do eu sobre toda a fatalidade, e se num segundo momento é decisão tomada de posição diante de uma multiplicidade de possibilidades, ela só se plenifica na medida em que se exterioriza, se faz mundo, se autoconfigura como ser efetivo na natureza e na sociedade. A liberdade efetiva é liberdade enquanto construção intersubjetiva de relações, a construção do ser pessoal como ser-com-a-alteridade, decisão a respeito da configuração específica desse ser-com. O que torna possível a constituição de sujeitos enquanto sujeitos é esse processo de construção de comunhões como espaço de efetivação da liberdade na contingência dos eventos.

Construir espaços de comunhão, a partir da gratuidade do agir pessoal como um dom para o outro. Penso que este tenha sido o sentido profundo que me levou a lavar os pratos hoje pela manhã. Um simples gesto concreto como este chamou atenção sensível de minha esposa, arrancou-lhe um sorriso, um elogio e um beijo. Maravilha!

sexta-feira, 22 de maio de 2009

A NOVA RIQUEZA DAS NAÇÕES

Alexandre Aragão
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Comunhão.
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Esta é uma palavra que, num primeiro instante, ao ser pronunciada, escutada, escrita ou lida pode reportar-nos a uma compreensão de que se trata de algo tendo a ver com a dimensão religiosa da vida humana. De fato o é, na medida em que pensamos a religião como o processo de re-ligação dos seres humanos entre si e com a Natureza e com Deus. Mas ao pensarmos somente na natureza religiosa que a palavra comunhão comporta, corremos o risco, devido a um condicionamento existencial, de incorrer num reducionismo e enquadrá-la apenas nas representações e ritos sagrados, isolando-a de todas as outras dimensões da vida humana: política, econômica, social, cultural.
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No léxico encontramos que comunhão significa ato ou efeito de comungar; ação de fazer alguma coisa em comum ou efeito dessa ação; sintonia de pensar, sentir ou agir; comunicar, colocar em comum. Deriva do latim “communio”, comunidade.
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Conforme nos indica o sociólogo polonês Bauman (2006)[1], uma comunidade nasce quando um certo número de pessoas aceitam consciente e deliberadamente que são responsáveis uns pelos outros. Portanto comungar trata-se não apenas de viver-com-os-outros, mas de viver-uns-pelos outros.
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Outro aspecto da comunhão, como no-la apresenta o teólogo Leonardo Boff (1986)[2], é que ela implica um caminho de duas vias que vai de um ao outro. Não há comunhão só de um lado. A comunhão, em seu próprio conceito, supõe pelo menos duas presenças que se relacionam. Há, pois, uma reciprocidade entre as duas presenças.
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O economista Marcos Arruda (2006)[3] nos adverte que uma cultura de comunhão é a da valorização da diversidade como base para a elaboração de projetos em comum e da colaboração para torná-los realidade. Esta é também a cultura do respeito ao outro, do acolhimento, da busca de complementaridades que enriqueçam o que sou e o que tenho, a fim de que, juntos e conscientemente solidários, sejamos mais e melhores do que temos e somos individualmente. Uma cultura de comunhão é uma cultura do amor.
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O economista italiano Luigino Bruni (2005)[4], por sua vez, acentua que a comunhão é a experiência social mais intensa e envolvente que se possa imaginar e, ao mesmo tempo, é a realidade mais necessitada das escolhas livres de cada pessoa individualmente e por isso é sempre frágil e precisa ser sempre reconstruída. A comunhão não é, pois, uma realidade holística de um grupo que cancela as diferenças pessoais, ela nasce muito mais das escolhas, dos valores interiorizados e da responsabilidade de cada um diante do outro. E entendemos por responsabilidade como sendo o cuidado reconhecido como obrigação em relação a um outro ser, que se torna preocupação quando há uma ameaça à sua vulnerabilidade.
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Ocorre-nos, então, uma pergunta: diante dos diversos sinais de crise econômica e ecológica que estamos presenciando, e vemos aprofundar-se no dia a dia, seria a comunhão uma força capaz de mover corações e mentes humanos no sentido de buscar construir um novo modelo de convivência social que consiga superar as velhas formas modernas econômicas de organização da sociedade centradas nos interesses egoístas unilaterais capitalistas e consiga colocar a humanidade num novo padrão de civilização humanamente justo, solidário e mais responsável pela vida que habita o planeta?
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No dia 28 de abril de 2009, o professor doutor Luigino Bruni, coordenador internacional da Economia de Comunhão na Liberdade (EdC)[5], esteve em Recife, Pernambuco, para realizar duas palestras nas Universidade Federal de Pernambuco e na Universidade Católica, sobre os 18 anos de vida desse projeto. A Economia de Comunhão nasceu no Brasil, em 1991. Sua inspiração original centrou-se na compreensão de que a economia humana é um bem social, portanto encerra em si valores sociais. Como tal não deve ser promotor de males e de desequilíbrios no relacionamento dos seres humanos entre si e destes com a Natureza. Requer uma base epistemológica, concepções e práticas empresariais que apontem para a construção de um horizonte de religação das relações humanas através de vínculos eticamente sólidos baseados na partilha dos bens materiais e imateriais produzidos coletivamente pela humanidade.
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Para Bruni, “é preciso ampliar o olhar sobre as necessidades – verdadeiras indigências - que afetam o homem contemporâneo causadas pela ausência de relacionamentos de comunhão nos diversos tempos e espaços da existência humana”. E a economia não pode ficar indiferente a isso, colocando-se acima destas questões. A economia deve estruturar-se de forma que permita ao homem atingir sempre mais plenamente a sua humanização, uma vez que formamo-nos como humanos na maneira como produzimos nossa existência. A Economia de Comunhão vem apresentar justamente um novo olhar para se perceber as relações entre os diversos atores econômicos, propondo não a busca do interesse egoísta como valor absoluto, mas a comunhão como referencial motor de uma nova economia que entende a produção da riqueza como fruto de uma ação realizada por homens e mulheres. Consequentemente, o lucro não pode ser percebido apenas como um bem que pertence ao capitalista, mas como um bem social que deve ter um destino social, que deve ser destinado não somente àqueles atores que fazem parte mais diretamente do processo de produção – empresários e trabalhadores -, mas uma parte dele deve ter também uma destinação, em forma de bem simbólico-cultural, voltada para a comunidade na qual a unidade produtiva está inserida.
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Na experiência concreta da EdC o lucro empresarial é partilhado em três níveis: uma parte é destinada para sujeitos empobrecidos em situação de miséria, com o objetivo de promover-lhes o desenvolvimento humano que os capacite a sair do estado de indigência material; outra parte é destinada para fomentar instituições que produzam conhecimento para a formação de homens e mulheres em vista a uma cultura de comunhão; a parte restante para reinvestimentos nas empresas de comunhão a fim de elas poderem desenvolver-se eficientemente na sua missão empresarial.
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A superação de estruturas promotoras de injustiça e desequilíbrios humano e ecológico requer ações criativas e corajosas capazes de arriscar na busca de um novo sentido do viver coletivo. A experiência da Economia de Comunhão é um exemplo de que a riqueza das nações pode se transformar na riqueza dos povos e da humanidade como um todo na medida em que mude o paradigma do interesse egoísta de produzir a vida e se perceba com mais profundidade as relações de interdependência que compõem a teia da vida que requer de todos nós procedimentos de partilha e de responsabilidade pela vida presente e futura do Planeta, concebendo a comunhão como fonte de uma nova riqueza da Humanidade.
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[1] BAUMAN, Zygmunt. Entrevista a Roberto Nicolas no Congresso “As pedras descartáveis”, Verona – Itália, 07/10/2006.

[2] BOFF, Leonardo. A trindade, a sociedade e a libertação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.

[3] ARRUDA, Marcos. Tornar real o possível: a formação do ser humano integral: economia solidária, desenvolvimento e o futuro do trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

[4] BRUNI, Luigino. Comunhão e novas palavras em economia. Vargem Grande Paulista, SP: Editora Cidade Nova. 2005.

[5] Para maiores informações sobre o Projeto Economia de Comunhão, acessar o site: http://www.edc-online.org/

quinta-feira, 21 de maio de 2009

MENSAGEM PARA OS AMIGOS E AMIGAS DO MESTRADO

Alexandre Aragão
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Caros amigos e amigas de Mestrado,


Escrevo-lhes estas breves linhas para agradecer-lhes pela participação em nossa apresentação ontem sobre o pensamento conservador de Edmund Burke, na aula de Teoria Política, do professor Josênio Parente. Pessoalmente fiquei muito recompensado pelo tempo dedicado por nossa equipe na pesquisa daquele conteúdo, renovando em mim o empenho por um desenvolvimento intelectual sempre mais competente e responsável visando a colaborar com a busca humana pela construção de uma sociedade mais solidária e fraterna.
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Como sabemos, estudar é um trabalho difícil. Exige de quem a ele se propõe uma posição crítica, sistemática, investigativa, criativa e sensível diante das verdades contidas nos sujeitos e realidades pesquisadas pelos cientistas. Exige uma disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a. E sem dúvida quando essa prática é realizada coletivamente, através da partilha dos saberes de cada um de nós, o conhecimento é ampliado, as visões são mais contextualizadas e podemos atingir uma verdade mais plenamente humana capaz de produzir sínteses que contemplem necessidades mais universais e justas. Como afirmava Cícero, sem o exercício efetivo da justiça nenhum pacto político ou social se sustenta.
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Neste sentido, entendemos que um método básico para a pesquisa é o diálogo. Como afirmei no artigo “Diálogo como Método”, dialogar é mais do que conversar. É o esforço humano, através [dia] da comunicação, de penetrar na verdade [logos] do outro para estabelecer um relacionamento que acrescente mais compreensão mútua entre os interlocutores. E ontem, aprendi muito, não só ao pesquisar o pensamento de Burke, procurando colocá-lo em diálogo com outros autores, como Nisbet, Norbert Elias, Tocqueville, Hans Jonas, Marx, como também no debate que foi deflagrado em seguida.
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Uma das perguntas, entre tantas importantes que nos foram apresentadas ontem, que paira no ar, foi elaborada por Edna: afinal somos liberais ou conservadores, quando não somos conservadores somos necessariamente liberais?
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É uma pergunta inquietante, instigante, por que aponta para uma reflexão mais rigorosa, axiológica, filosófica, antropológica, acerca de valores, de nossa compreensão de mundo, nossa compreensão da vida, em seu sentido mais profundo e sobre que direções queremos tomar. Afinal, o fato de sermos cientistas sociais não nos isenta de nossa humanidade. Não somos nem anjos nem demônios. Também, acho que não podemos nos colocar num patamar de sacerdotes da religião científica, pairando acima dos homens comuns. Cientistas são homens e mulheres que detêm um tipo de saber que deve ser partilhado em comum dialogicamente com os outros saberes donde deve nascer respostas para o bem da humanidade.
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Basta pensarmos na vida do planeta. Ela deve ser conservada ou não? Por que? Como?
Esta reflexão nos obriga a perguntar-nos: e a vida humana deve ser preservada ou não?
Por que? Como?
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Foi diante destas duas questões que em meu artigo sobre Burke eu discorri sobre aquilo que denominei o Paradoxo da Geladeira: um invento moderno mas que tem como objetivo preservar os bens naturais e os bens da civilização.
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Portanto, não basta ser moderno. Acho que o novo em si não quer dizer muita coisa. Aliás, Chico Buarque de Holanda já dissera que ser novo é também, e sobretudo, ver coisas velhas por ângulos novos. Assim, é preciso que a construção da novidade seja portadora de elementos que produzam e conservem a vida, mais vida a ser vivida por todos e não apenas por alguns privilegiados. Precisamos, como diz Capra, de um novo paradigma, uma nova visão da realidade, das pessoas, uma mudança fundamental em nossos pensamentos, percepções e valores que sejam centralizados na vida, um bem que está além de todos os outros bens, pois sem vida os outros bens não existirão.
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Para mim, um dos pontos importantes na minha caminhada existencial, é o esforço de (re) descoberta da fraternidade como um princípio que nos (re) liga, numa perspectiva laica, secular, buscando sua origem [uma vez que todo princípio precisa de uma origem] na compreensão da própria palavra. Germanus em latim significa aqueles que possuem a mesma origem. Ou seja, nós possuímos a mesma origem humana, somos todos húmus – terra fértil – e essa origem comum nos une uns aos outros como irmãos [germanus]. Ser humano é justamente o esforço de fertilidade diante da vida: o esforço de produzirmos o bem do qual nos sentimos capazes, mas que muitas vezes os bloqueios pessoais [subjetivos e inconscientes] ou sociais [da relacionalidade humana] tendem a nos impedir. E diante desses obstáculos parece ser importante adotar atitudes reflexivas amplas que nos permitam encontrar a verdade mais profunda para com ela atingirmos um grau a mais de liberdade subjetiva e relacional com a qual nos capacitaremos para superar obstáculos na construção dinâmica de um ambiente feliz para todos e todas.
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Neste sentido, o nosso seminário de ontem sobre o pensamento de Burke e de seus seguidores sugere-nos, no meu entender, uma postura aberta e não preconceituosa diante dos temas relativos à construção da emancipação humana que seja capaz de fazer relações entre as diversas tradições teóricas, procurando colher suas contribuições específicas e a partir delas trabalhar no esforço teórico de elaboração de novas sínteses que visem a contribuir para a humanização da vida social na busca de novos vínculos de convivência solidária, com responsabilidade.
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Segundo Hans Jonas, a responsabilidade é o cuidado reconhecido como obrigação em relação a um outro ser, que se torna preocupação quando há uma ameaça à sua vulnerabilidade e implica a pergunta: o que pode acontecer a ele se eu não assumir a responsabilidade por ele?
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Caríssimos amigos e amigas, agradeço uma vez mais pelo momento de ontem e desejo a cada um de nós uma maravilhosa estrada neste Mestrado.
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Grande abraço,
Alexandre
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sábado, 16 de maio de 2009

DIÁLOGO COMO MÉTODO

Alexandre Aragão

Dialogar é mais do que conversar. É o esforço humano, através [dia] da comunicação, de penetrar na verdade [logos] do outro para estabelecer um relacionamento que acrescente mais compreensão mútua entre os interlocutores.

Como sabemos, a vida não é feita só de sombras, nem só de dores. Na vida toda de todos os dias, encontramos luzes-e-sombras, amores-e-dores, alegrias-e-tristezas, encontros-e-desencontros, certezas-e-incertezas. Ninguém é totalmente mau, nem totalmente bom. Ser humano [húmus significa “terra fértil”] é justamente o esforço de fertilidade diante da vida: o esforço de produzirmos o bem do qual nos sentimos capazes, mas que muitas vezes os bloqueios pessoais [subjetivos e inconscientes] ou sociais [da relacionalidade humana] tendem a nos impedir. E diante desses obstáculos parece ser importante adotar atitudes reflexivas amplas que nos permitam encontrar a verdade mais profunda para com ela atingirmos um grau a mais de liberdade subjetiva ou relacional com a qual nos capacitaremos para superar os referidos obstáculos.

A verdade nos liberta.

Algumas vezes pode acontecer de entrarmos num quarto escuro, achar que não existe mais luz e querermos definir a realidade como uma totalidade a partir do local onde estamos. A parcialidade do nosso olhar, condicionado pela situação de escuridão do quarto, impede-nos de ver [e rever] ângulos ou faces da vida devido à ausência de outras luzes que as iluminem e nos permitam perceber essas visões. O risco que corremos é de fecharmo-nos nessa câmara escura e concebermos a realidade somente a partir desta.

Um dos quartos escuros presentes na vida de todos nós é a nossa sensibilidade. Diante dela precisamos ter uma postura crítica, caso contrário em vez de ajudar-nos em nosso caminho de fertilidade humana, ela poderá aprisionar-nos em nós mesmos, obrigando-nos [devido aos processos inconscientes] a perceber a realidade apenas a partir do seu ângulo sensível condicionado, pretendendo que esta visão seja a verdade. A sensibilidade aprisionada nos leva sutilmente a ter uma visão reducionista das situações concretas, quase sempre de forma taxativa, concebendo a realidade apenas por um único ângulo.

É tarefa da dinâmica humana esforçar-se de forma sapiente para uma libertação contínua da prisão emocional da qual cada pessoa humana, sem exceção, pode ser portadora. Antes de olharmos o cisco nos olhos dos outros, precisamos, em primeiro lugar, ter uma visão crítica e reflexiva da trave que paira no nosso olhar influenciado pela nossa sensibilidade, pelo recorte de nossas emoções. E devemos questionar-nos, primeiramente, a nós mesmos, questionar nossas emoções, questionar as conclusões que elas querem nos condicionar a partir do quarto escuro onde elas se encontram.

Um dos instrumentos de superação desse condicionamento é justamente o diálogo com o outro, principalmente com aquele com quem estamos enfrentando uma dificuldade. Ao colocarmos em comum limpidamente nossas verdades, teremos as condições de contemplar a verdade um do outro e percebê-la a partir de um ângulo diferente do nosso. A atitude de diálogo requer um despojamento, uma abertura para com o outro. Essa abertura em si já é um instrumento que nos possibilita uma libertação de nós mesmos.

Outro instrumento de superação desse condicionamento é uma atitude amorosa diante da vida. O amor-dom nos leva ao não fechamento em nós mesmos [ego-ismo], em nossas sensibilidades. Ao contrário, ele é motor de abertura para a vida. Ao abrirmo-nos para o outro em atitude de doação, automaticamente estamos permitindo à nossa sensibilidade sair do centro de nossas atenções para compartilhar com os outros as alegrias e dores, os encontros e desencontros, as certezas e dúvidas, os acertos e desacertos, e juntos buscarmos amorosamente soluções aos desafios.

Por último, é fundamental uma atitude de humildade que nos permita recomeçar sempre que nos encontramos diante de nossos limites e limites do outro, diante de nossos fracassos e fracassos do outro. Recomeçar significa dizer que a vida é a última palavra, que a possibilidade de um novo momento é a última palavra, que depois da sombra vem a luz. E para recomeçar é necessária a misericórdia, o perdão. Quem sabe perdoar a si mesmo e ao outro é uma pessoa livre.

O exemplo de Jesus de Nazaré é paradigmático. Ele demonstrou uma atitude de total liberdade diante da vida, porque mesmo em seu último momento de imensa dor, foi capaz de perdoar: “Pai, perdoai-os porque não sabem o que fazem”.

Coloquemo-nos à disposição dos outros para construir novos diálogos mais simples, mais vivos, mais sinceros e mais fraternos, para que possamos conhecer um pouco mais as dores e as alegrias recíprocas, construindo um mundo novo e melhor ao nosso redor.

domingo, 3 de maio de 2009

O JOGADOR DE BASQUETE

Alexandre Aragão



Finalmente havia chegado o grande dia.

O jogador de basquete estava ansioso para disputar a final do campeonato estudantl estadual, a primeira de sua vida, bem como a primeira final da categoria minibasquete, em 1973. Um futuro que se lhe apontava promissor, já que há apenas um ano havia iniciado a atividade desportiva.

Recolhera-se às 19h00 para dormir. Sabia que uma boa noite de sono era pré-requisito para uma boa perfomance no dia seguinte. Mesmo se a fantasia lhe dificultava abandonar o estado de vigília, o repouso físico lhe relaxaria os músculos.
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Pensou na Menina: será que ela iria assistir ao jogo? A primeira final, o primeiro beijo... bem que podia aparecer para vê-lo jogar. Mas ele sabia que não seria possível isso acontecer, porque os pais da Menina não aprovavam o encantamento dos dois. Tinham outros planos para ela.
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Pensou no seu pai: como sentiria orgulho dele com apenas 12 anos disputando uma final. Lá do céu ele acompanharia tudo. E o jogador de basquete adormeceu embalado pela paixão e pela saudade.
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Na manhã seguinte, acordou bem cedinho, fez sua oração e partiu para o ginásio, acompanhado pela mãe e pelo irmão. Quando lá chegou, assustou-se com a quantidade de pessoas presentes na quadra desportiva. Todos os lugares haviam sido ocupados, fazendo daquela final um acontecimento na cidade.
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Seria uma disputa difícil, as duas equipes haviam se classificado invictas.
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No vestiário recebeu, com sua equipe, um uniforme novo nas cores azul, branco e preto, confeccionado especialmente para aquela ocasião. A surpresa provocou-lhe uma entusiasmada alegria em viver aquele sonho. Ficou imaginando quem teria confeccionado com tanto carinho aquela vestimenta sem a qual ele com seus companheiros de equipe não teriam condições de jogar.
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Na prelação preparatória, o treinador disse-lhes que havia chegado o momento de eles confirmarem o esforço de um ano de trabalho e dedicação. Deveriam, portanto, colocar em prática aquilo que aprenderam, com tranqüilidade e determinação, num profundo respeito pelos jogadores adversários. Além da aplicação técnica, já que seria um jogo difícil pelo excelente nível das duas equipes, eles deveriam jogar com amor, porque só o amor é capaz de fazer a diferença nas situações limites.
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Durante o aquecimento em quadra, o jogador de basquete não acreditava no que estava vivendo. Como haviam conseguido mover tantas pessoas para aquele momento? Qual seria o significado daquela disputa para elas? Qual a expectativa que pulsava nos corações de pais, parentes, amigos, amantes do desporto, jornalistas, autoridades?
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Procurou, numa última esperança, com o olhar, localizar a Menina. Ela não estava ali.
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A partida transcorreu disputada ponto a ponto. Mais do que nunca era preciso integrar todos os conhecimentos e características dos jogadores, através de um diálogo atento que lhes possibilitasse construir e aproveitar as melhores oportunidades de pontuação. Tratava-se de um trabalho em equipe.
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Num momento em que o treinador solicitara um tempo técnico, ele bebeu um pouco d’água para repor as energias, e pensou: se não fosse aquela água, naquele momento, ele não teria condições de continuar na partida.
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O treinador alertou para o novo posicionamento que o time adversário havia tomado implicando uma necessária nova disposição do seu time em quadra. Nesse momento, o jogador de basquete percebeu o quanto é importante o diálogo entre os vários olhares diante da realidade, pois os jogadores não tinham conseguido enxergar pelo ângulo de alguém que estava de fora o novo desenho tático em quadra. A mudança foi fatal, porque ele soube explorar, como organizador das jogadas, algumas deficiências da equipe adversária conectando com os potenciais de sua equipe.
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No final, sua equipe sagrou-se campeã estadual. Mas duas surpresas estavam ainda para acontecer. Na cerimônia de premiação, o jogador de basquete foi eleito o melhor atleta da competição estadual. Em sua simplicidade, jamais imaginou que algo semelhante lhe pudesse acontecer. O prêmio lhe foi entregue por uma atleta integrante da seleção nacional. Além disso, ele havia sido o atleta cestinha do campeonato.
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Em meio a tanta alegria, lembrou-se do seu pai e, em sua saudade, agradeceu-lhe pelo dom da vida, pela dedicação e pela disponibilidade em acompanhá-lo em sua estrada. Lembrou-se também da Menina, do quanto aquele primeiro beijo havia significado para ele, abrindo-lhe o coração para a beleza do sentimento puro e verdadeiro.
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À noite, com um sonho realizado, ele voltou a dormir embalado pela saudade e pela paixão.
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quarta-feira, 8 de abril de 2009

FONTE DE SOLIDARIEDADE

Alexandre Aragão

Em seu clássico estudo sobre a divisão social do trabalho, no qual reflete sobre as solidariedades presentes nos grupamentos humanos, Emile Durkheim[1] faz uma crítica à economia política pelo fato de esta transformar o trabalho humano de fonte de riqueza a um simples meio de fazer aumentar os ganhos do capital.
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Para ele, a divisão social do trabalho é uma fonte de “solidariedade orgânica” por produzir uma vasta diversificação do tecido social através das especializações humanas, possibilitando uma comunicação de diferentes realidades que enriquecem e fortalecem os vínculos da vida social. Este tipo de solidariedade só é possível se cada indivíduo tiver uma esfera própria de ação e, conseqüentemente, uma personalidade.
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Entretanto a história demonstrou que a forma como as sociedades capitalistas dos séculos XIX e XX organizaram o trabalho provocou não o desenvolvimento das personalidades dos sujeitos a partir das atividades exercidas em seus ambientes de trabalho; pelo contrário, com a ideologia fordista e taylorista de organização empresarial e de controle do sistema produtivo, o homem foi reduzido a um mero repetidor de operações mecânicas, sendo diminuído a um papel de máquina. Diariamente, ele repetia [e ainda repete] os mesmos movimentos com uma regularidade monótona, sendo-lhe negada uma compreensão do todo do qual é produtor nem uma participação efetiva na riqueza social final por ele produzida. O trabalhador não passou [e ainda não passa] de uma peça na engrenagem que uma força externa põe em funcionamento e que se move sempre no mesmo sentido e do mesmo modo.
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E o autor levanta uma questão: “se a moral tem como objetivo o aperfeiçoamento individual, não pode permitir que se arruine a tal ponto o indivíduo, e se ela tem por fim a sociedade, não pode deixar que se esgote a própria fonte da vida social, porque o mal não ameaça apenas as funções econômicas, mas todas as funções sociais, por mais elevadas que sejam”.
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Portanto, a questão ética apresentada por Durkheim nos remonta a refletir sobre em que condições reais o trabalhador pode desenvolver sua personalidade humana em seu trabalho diário ao ponto de esta ser fonte de solidariedade social.
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Primeiramente, parece importante anotar que dizer personalidade significa afirmar que o homem é uma pessoa, ou seja, um ser dotado de subjetividade e dignidade, capaz de agir de maneira refletida, planejada e racional e de decidir por si mesmo no exercício de sua realização pessoal. Portanto, o trabalhador não é um instrumento, não é uma máquina, e é como pessoa que ele trabalha. Ele é o sujeito do trabalho: o valor ético do trabalho resulta justamente deste sentido subjetivo. E isto precisa acarretar conseqüências concretas na ordem política, econômica e jurídica capazes de garantir uma nova ética no mundo empresarial que contemple verdadeiramente essa realidade.
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Mas além do argumento subjetivo, o trabalho humano tem um fim: a realização do homem enquanto ser social. O trabalho comporta em si uma marca particular, a marca de uma pessoa que opera numa comunidade de pessoas, e tal marca determina a qualificação interior do próprio trabalho[2]. É resultado de um por teleológico, proto-forma do ser social, que possibilita o salto ontológico das formas pré-humanas para o ser humano social. É um fenômeno originário que previamente o ser social tem ideado em sua consciência. Com o trabalho, a consciência humana deixa de ser uma mera adaptação ao meio ambiente e configura-se como uma atividade autogovernada. É um processo, de uma contínua cadeia temporal que busca sempre novas alternativas. Pelo trabalho, o ser social produz-se a si mesmo como gênero humano; pelo processo de auto-atividade e autocontrole salta da sua origem natural baseada nos instintos, para uma produção e reprodução de si como gênero humano, dotado de autocontrole consciente, caminho imprescindível para a realização da liberdade[3].
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Como nos lembra Paulo Freire[4], a humanização se dá coletivamente, no processo de produção social. O trabalho é uma matriz de humanização, onde a cultura se forma: formamo-nos como humanos na maneira como produzimos nossa existência. Portanto, o trabalho deve estruturar-se socialmente de forma humanizada e humanizante para que o ser humano atinja plena e dinamicamente sua humanização. O homem moral é consciente de que cada uma de suas ações é ação sobre o outro e sobre a comunidade a qual pertence[5].
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A primeira comunidade, como sabemos, é a família. E o trabalho constitui o fundamento sobre o qual se edifica a vida familiar, é a condição que torna possível a fundação de uma família, uma vez que a família exige os meios de subsistência que o homem obtém mediante seu trabalho. A família é ao mesmo tempo uma comunidade tornada possível pelo trabalho e a primeira escola de trabalho para todos e cada um dos seres humanos[6]. A experiência cotidiana de união no interior da família enriquece o ser humano e o libera para além dele próprio: é na família que o homem tem ocasião de vivenciar as diversas dimensões que o constitui[7]. A família é a comunidade de cuidados, em razão das necessidades que se prolongam por toda a vida. O amor nasce e cresce com esse cuidado, em uma realidade partilhada e séria. Sem tal realidade de inter-subjetividade verdadeira as relações humanas correm o risco de tornarem-se patológicas[8].
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Portanto, esta parece ser uma das questões centrais para nós do século XXI: que mudanças se fazem necessárias para promover novas concepções e organizações de empresas, da economia e do mundo do trabalho como um todo, que sejam capazes de promover o crescimento da personalidade humana, gerando novas estruturas da sociedade que desenvolvam e fortaleçam os vínculos de convivência social solidária?
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Para Durkheim, faz-se necessária uma unidade viva do todo orgânico social, onde todos possam, a partir de suas especificidades, sentirem-se colaboradores de uma mesma obra humana. Não uma unidade abstrata, mas uma unidade viva.
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Sem dúvida, uma unidade dinâmica dos atores da comunidade humana acolhendo as diferenças e colocando-as num diálogo contínuo, e que seja fruto da coragem de superar as injustiças sociais através da construção de novas formas concretas de convivência fraterna capaz de permitir a todos os homens e mulheres viverem com dignidade e com liberdade das riquezas produzidas pelo seu trabalho.


Notas
[1] Durkheim, Emile. Sociologia. São Paulo: Ática, 1978.
[2] João Paulo II. O trabalho humano. São Paulo: Paulinas, 1982.
[3] Antunes, Ricardo. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 8ª. ed., 2006.
[4] Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987
[5] Weil, Éric. Philosophie Politique. In: OLIVEIRA, Manfredo et. al. Filosofia política contemporânea. Petrópolis - RJ: Vozes, 2003
[6] João Paulo II. Ibid.
[7] Arruda, Marcos. Tornar real o possível. Rio de Janeiro: Vozes, 2006.
[8] Jonas, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto : Ed. PUC-Rio, 2006.
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sábado, 4 de abril de 2009

Questão de fé: reaprender a confiar no outro

Alexandre Aragão


Pensar a crise de civilização que estamos vivendo implica refletir sobre que significado tem a vida humana e a vida da Natureza no tempo contemporâneo.
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De fato, o encantamento diante da vida ao senti-la em toda a sua diversidade biológica, saber-se capaz de sentir sentindo, consciente de sua existência e da existência do outro, capaz de agir, livremente, foi o começo de tudo, da vida humana. A vida humana, portanto, em sua gênese, fundamentou-se no relacionamento dinâmico do homem com a Natureza e dos homens entre si.
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Esta existência relacional é produtora de cultura, na qual o homem, nela integrado, sobre ela influi e dela depende. Simultaneamente é filho e pai da cultura na qual está inserido. Portanto, em cada manifestação de sua vida, o homem traz consigo uma constante abertura ao mistério da vida e o seu desejo inexaurível de conhecimento. Em conseqüência, cada cultura traz gravada em si mesma e deixa transparecer a tensão para uma plenitude. Quando as culturas estão profundamente radicadas na natureza humana contêm em si mesmas a capacidade da abertura, própria do ser humano, ao universal e à transcendência. As culturas alimentam-se da comunicação de valores e a sua vitalidade depende da sua capacidade de permanecerem abertas para acolher a novidade (João Paulo II, 1998)[1].
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Ao mesmo tempo, como nos lembra o professor Carlos Rodrigues Brandão (2007)[2], a cultura pode ser um instrumento de dominação e de poder ou de libertação e comunhão. O destino universal da cultura deve encarnar-se em condições históricas concretas que permitam a comunicação real dos seres humanos pelos quais e para os quais ela é produzida: somente desta forma a cultura é autêntica. A experiência humana da cultura é e está contida nos atos e fatos, nos gestos e nos feitos, dotados de simbologia e de significados, com que nos criamos e criamos o mundo. Gestos realizados em situações interativas de troca e reciprocidade, gerados e geradores das diferentes dimensões da vida social. Gestos interativos através dos quais continuamente transformamos coletividades orgânicas em comunidades sociais.
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Entretanto, a pessoa que nasceu integrada em sua cultura, em suas tradições, com o crescimento e amadurecimento pessoal, poderá vir a questionar verdades aprendidas por meio de um rigoroso exercício crítico próprio do seu pensamento, mesmo se ao questionar as verdades de seu grupo possa vir a reintegrá-las em sua vida. Todavia, apesar desse exercício de especulação racional, constata-se que são muito mais numerosas na vida de uma pessoa a verdades acreditadas do que aquelas adquiridas por verificação pessoal.
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Cada um, quando crê, confia nos conhecimentos adquiridos por outras pessoas - pai, mãe, mestres, amigos, amigas –, e o ato de confiar no outro lhe dá segurança. Ao acreditar, você confia na verdade que o outro expressa. A capacidade e a decisão de confiar o próprio ser e a existência a outra pessoa constituem um dos atos antropologicamente mais significativos e expressivos. Dito de outra forma, a impossibilidade de confiar em alguém gera no ser humano uma insegurança existencial ontológica, desumanizando-o, coisificando-o. Todo e qualquer sistema político-econômico que não alimente e impossibilite a realização da confiança mútua, nos diversos níveis da vida humana, é um sistema desumanizador.
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Exemplos de confiança seriam muitos os que poderíamos relatar, basta pensar na vida matrimonial onde homem e mulher deixam seus núcleos familiares de origem para entregarem-se um ao outro, na aventura da construção recíproca. Mas um dos relatos históricos clássicos são os exemplos dos mártires, que superaram o medo da morte entregando o bem mais precioso que possuíam – a própria vida - por confiarem plenamente na verdade da qual um outro lhes comunicou. Eles tiveram certamente uma confirmação pessoal interior, vivenciada e refletida no seu dia a dia, que nada nem ninguém lhes podia arrancar. Supõe-se, claramente, sempre uma elaboração e uma síntese que passa pela própria pessoa em suas opções existenciais. Donde podemos concluir que a pessoa que busca a verdade, busca ao mesmo tempo uma pessoa em que possa confiar.
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Se pensarmos o contexto cultural onde vivemos e perguntarmo-nos se este nos impulsiona a desenvolver a busca da verdade e a busca de relacionamentos estáveis de confiança mútua, verificaremos que a matriz antropológica da Modernidade está fundamentada no egoísmo individualista, de base material. Para essa escola de pensamento, o homem é essencialmente um ser egoísta que procura maximizar os seus ganhos pessoais nos relacionamentos que estabelece com outros homens e com a Natureza. Assim, o outro deixa de ser um alguém com que posso me relacionar, para ser um meio para se obter uma vantagem. O outro deixa de ser sujeito e é transformado em objeto.
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Essa visão instrumental expressa-se numa razão utilitária voltada para o prazer e poder individual nos diversos campos da vida humana: econômico, político, social, religioso, familiar. Como afirmou Amartya Sen (2000)[3], o cálculo utilitarista não leva em consideração desigualdades na distribuição da felicidade (importa apenas a soma total, independentemente do quanto sua distribuição seja desigual), apresentando forte descaso com direitos, liberdades e outras considerações desvinculadas da utilidade.
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Atualmente, a combinação de novos arranjos técnicos, implicando uma brusca mudança nos processos de produção econômica, com uma nova forma de pensar e perceber politicamente o tempo e o espaço mundial pelo pensamento dominante, gerou um novo momento na história da humanidade: a globalização hegemônica. Ela não é apenas a existência desse novo sistema de técnicas, é também a emergência de um mercado dito global, responsável pelo essencial dos processos políticos atualmente eficazes, com a existência de um motor único na história, representado pela mais-valia globalizada, resultando numa globalização perversa. Isso poderia ser diferente se o seu uso político-cultural fosse outro. E esse parece ser o debate central.
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Será possível voltarmos a confiar no outro tendo como base filosófica e material um tipo de produção social na qual o egoísmo está presente como elemento estrutural de sistema?
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Será possível pensar uma nova forma de organização sócio-econômica global que tenha em sua estrutura dinâmica a solidariedade e a reciprocidade humanas?
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A que tipos e formas de conhecimento precisaríamos recorrer, que não apenas o cientificismo moderno, para reaprender a confiar uns nos outros?
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Essas perguntas e a urgente reflexão sobre elas parecem estar na ordem do dia da humanidade, na medida em que a crise econômica e ecológica globais aumentam a cada momento. Quem sabe consigamos, ao revisitar outras formas de conhecimento, tais como o aprendizado com experiência do dia a dia e o conhecimento religioso mais amadurecido ao longo da história, construir um novo caminho de volta para a Casa Materna.


[1] JOÃO PAULO II. Fides et Ratio: sobre as relações entre fé e razão. São Paulo: Paulinas, 1998
[2] BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O vôo da arara azul. Campinas – SP: Editora Autores Associados, 2007.
[3] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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quarta-feira, 18 de março de 2009

Anarquia dos mercados: crise de uma civilização

Alexandre Aragão


No dia de 16 de março, em Nova Iorque – EUA, o Presidente da República do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, proferiu o discurso de abertura do Seminário “Brasil: Parceiro Global em uma Nova Economia – Estratégias Sólidas para Momentos Desafiadores”.

Avançando com sua política externa, Lula está procurando ocupar o espaço vazio de liderança política que a crise mundial ora provoca, aproveitando o momento de mudança no cenário político dos Estados Unidos com a posse de Barak Obama. De fato, no dia 14, os dois presidentes – o afro-descendente estadunidense e o trabalhador brasileiro - deram início ao diálogo pessoal nessa nova conjuntura mundial.

Num discurso de 14 páginas, Lula inicialmente demarcou a questão: a crise nasceu e explodiu no coração do mundo desenvolvido, por falta, em grande medida, de controle do sistema financeiro. Afirmou textualmente que “os bancos, em vez de cumprirem seu papel de financiador do setor produtivo, descolaram-se da realidade e dedicaram-se à especulação transformando-se num grande cassino”. A ganância de alguns deu lugar ao pânico de muitos. Neste sentido afirmou que o Brasil levará propostas concretas para o encontro de Cúpula em Londres – G20 -, muitas delas relativas à democratização do FMI, evidenciando inclusive a importância de o Fundo exercer sobre as economias desenvolvidas a mesma vigilância que exerceu sobre os países pobres e em desenvolvimento, “podendo dispensar a arrogância que muitas vezes demonstrou no passado”.

Lastreou o seu discurso sobre bases bem definidas. Primeiramente afirmou que o Brasil não vive este tipo de crise porque um sólido sistema de bancos públicos brasileiros é responsável por mais de 40% do crédito; o mercado interno de bens de consumo, nos últimos seis anos, ampliou-se consideravelmente, devido à expansão da renda dos trabalhadores e pelo resultado das políticas públicas de transferência de renda, em especial o Bolsa Família (vide nosso artigo “Livres da fome”) e pelo fortalecimento da agricultura familiar, com 20 milhões de pessoas passando da linha de pobreza ingressando na classe média; “contrariando os preconceitos e prognósticos”, o seu governo mostrou que é possível expandir o mercado interno e ao mesmo tempo aumentar as exportações – que cresceram quase quatro vezes nos últimos seis anos – resultando num acúmulo de US$ 200 em reservas, num forte ajuste fiscal da dívida pública interna, que decresceu de 56% para 35% do PIB, pondo fim a trinta anos de estancamento de crescimento econômico.

Mas alerta que, com base na própria história brasileira, numa alusão, mesmo se não explícita, ao pensamento do nosso grande economista Celso Furtado, o crescimento por si só não resolve o problema da miséria. A distribuição de renda é fator decisivo de um novo tipo de desenvolvimento mais inclusivo, mais humano, mais sustentado e duradouro: “o Brasil é mais forte e tem mais futuro quando trabalha para incluir todos os brasileiros”. Para isso foi necessário superar a concepção mesquinha e egoísta de pensar os empobrecidos do País como um estorvo e vê-los como um imenso patrimônio ativo de valor incomensurável.
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Em suas considerações finais, alertou para a necessidade de o mundo repensar a sua matriz energética, afirmando que “o biocombustível é uma oportunidade não apenas de limpar a matriz energética, mas é uma oportunidade extraordinária de nós darmos resposta ao desenvolvimento dos países mais pobres, sobretudo ao continente africano, algo que possa gerar emprego e desenvolvimento. Para produzir um litro de biodiesel, a gente pode cavar alguns buracos, plantar muda de cana e, daqui a algum tempo, nós estaremos produzindo combustível limpo, que gera empregos e que contribui para o desaquecimento global”. Para Lula, só há uma forma de pensar o desenvolvimento: um trabalho conjunto das nações para que os pobres do mundo sejam menos pobres e que os ricos fiquem um pouco menos ricos, para que a distribuição da riqueza seja mais justa e garanta a paz mundial.

E conclui afirmando que a crise não é só econômica e financeira. Ela é uma crise de civilização que denuncia modelos absurdos de produção e consumo, os quais destroem a natureza, comprometendo o futuro e o presente da humanidade, pondo em evidência a irracionalidade de concepções econômicas que se pretendiam definitivas e que favoreceram aventuras especulativas. Portanto a crise tem uma dimensão ética e moral. Não é apenas a economia que está ameaçada em muitos países. A ameaça maior é a da degradação social e do caos político que daí possam vir. Quando a irracionalidade econômica prevalece, o Estado Democrático de Direito deve assumir, com mais força, aquela função que nunca deveria ter perdido: a função de indutor e regulador da atividade econômica, de promotor da igualdade social, de garantia de liberdade e de agente da solidariedade.

A saída da crise, no seu entender, exige a construção de novos paradigmas para a organização da produção e do trabalho; para a preservação do ambiente; para o estabelecimento de uma cultura de paz que inspire uma nova e democrática governança mundial; para o restabelecimento da política como atividade superior, pela qual homens e mulheres constroem e redefinem livremente novos contratos sociais. É chegada a hora da política, e “somente com essa unidade é que nós estaremos capazes de construir a paz”.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Algumas reflexões sobre a república

Alexandre Aragão


No seu discurso do dia 03 de março de 2009, de quase três horas de duração devido aos diversos apartes recebidos, o senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE) apontou para a necessidade de uma ampla e profunda reforma política que contemple, entre outras coisas, uma intervenção enérgica pelo fim da impunidade juntamente com uma ampla ação educativa pela afirmação dos valores republicanos e democráticos na vida política do nosso país, lembrando haver incorporado, às suas propostas apresentadas, parte do “Programa de Governo 2002 Lula Presidente” que consta do documento "Combate à Corrupção - Compromisso com a Ética", por considerar que traz abordagens atuais, corretas mas que no seu entender nunca foram postas em prática pelo atual governo.
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Para o senador, em sua entrevista à Revista Veja, “a classe política hoje é totalmente medíocre. E não é só em Brasília. Prefeitos, vereadores, deputados estaduais também fazem o mais fácil, apelam para o clientelismo. Na política brasileira de hoje, em vez de se construir uma estrada, apela-se para o atalho. É mais fácil. A corrupção é um câncer que se impregnou no corpo da política e precisa ser extirpado. Não é só mudar nomes, é mudar práticas. Não dá para extirpar tudo de uma vez, mas é preciso começar a encarar o problema”.
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E quais valores republicanos é preciso afirmar na vida política do Brasil?
Seria essa crise da ausência dos valores republicanos um fato a existir somente entre nós ou seria uma crise que afeta também a política de outras nações?
Que ferramentas o republicanismo oferece para a expansão da ética nas sociedades democráticas no contexto atual?
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Vamos tentar fazer algumas reflexões.
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Primeiramente, o republicanismo entende que a vida política comum é decisiva para o futuro das democracias nas sociedades contemporâneas, compreendendo a partilha dos interesses, a ação pública dos cidadãos, a definição dos modos de agregação e uso do bem público, da solidariedade política e das virtudes civis: estas, para serem atingidas, requerem o cultivo de determinadas convicções e hábitos políticos sadios e transparentes entre todos os cidadãos e instituições.
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Como sabemos, república, como a define Cícero, é a coisa do povo. E por povo é preciso entender não um agregado de homens e mulheres desunidos e desorganizados, mas um grupamento numeroso de pessoas associadas umas às outras pela participação em uma mesma comunidade que aderem a uma mesma lei de vida comunitária. Assim, o republicanismo recusa a idéia de que o indivíduo isolado é o fundamento da vida política e institucional, como apregoa o neo-liberalismo global. Ao contrário, o cidadão deve definir a condição política do homem, uma vez que, a comunidade política é uma referência fundamental do republicanismo.
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Outro tema caro ao republicanismo é a idéia de bem comum que, entre tantas definições, pode ser concebido como o conjunto de elementos que conferem unidade a uma determinada comunidade política, aquilo que juntos decidem para o bem de todos. Portanto é resultado da ação (práxis) direta dos homens e mulheres e não um produto da operação de outros mecanismos invisíveis, como por exemplo, o mercado.
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Como conseqüência, para o republicanismo, a participação política dos cidadãos na construção de uma sociedade livre é um princípio de vital importância. Uma reforma política que se preze impõe-se perguntar-se sobre as condições que devem ser estimuladas para que os indivíduos brasileiros se transformem em cidadãos e tenham um papel ativo na sociedade. O republicanismo defende o caráter ativo da liberdade como um direito de todos os cidadãos de participar dos processos políticos de escolha e de decisão sobre assuntos que interessam a todos.
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O pesquisador Peter Evans, em seus estudos sobre o desenvolvimento institucional, atribui ao Estado um papel fundamental de potencial indutor da participação, ao estabelecer uma ligação entre os movimentos sociais e instituições de governo em busca da eficiência das políticas públicas, através de ações mais propositivas e menos regulatórias. Na visão deste autor, é possível haver uma sinergia positiva entre o poder instituído e a sociedade civil, a partir de uma ação de governo que vise à implementação de um conjunto de ações que resultem em mais capital social para a sociedade, criando um círculo virtuoso de mudança institucional.
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Para o cientista político John Rawls, autor da Teoria da Justiça, sem uma larga participação dos cidadãos na vida política democrática até mesmo as mais bem projetadas instituições políticas cairão nas mãos daqueles que buscam dominar e impor sua vontade através do aparelho de Estado, seja por sede de poder, seja por razões de interesse econômico. A garantia da liberdade e da justiça social exige a participação ativa dos cidadãos e cidadãs que, através do diálogo político, possuem as virtudes necessárias para manter um regime democrático.
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Também a filósofa brasileira Marilena Chauí chama a atenção para a prática da participação, ora entendida como intervenção direta nas ações políticas, ora como interlocução social que determina, orienta e controla a ação dos representantes.
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Por último, para o republicanismo, é preciso subordinar a vida política e da administração da coisa pública à Constituição, aqui compreendida como cimento da comunidade política, através da qual estão garantidas as formulações dos critérios de justiça social que se articulam e se combinam com a função agregadora da pauta de direitos da pessoa humana. Portanto, a Constituição deve ser cumprida, ela não pode pairar no ar como um mero detalhe, uma mera figura decorativa.
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Uma reforma política séria precisa ser aberta, dialogada com os cidadãos e cidadãs organizados, contemplando estas questões acima, porque não se trata de uma ação técnica (em grego téchne refere-se à ação sobre as coisas, a fabricação), mas política (em grego práxis é ação sobre os homens), portanto de natureza ética. E o comportamento ético, como sabemos, tem na liberdade humana o seu fundamento. Mesmo se partidos ou uma Casa Política não assumirem padrões éticos de procedimento, a pessoa humana, no uso de sua liberdade, tem a força necessária para iniciar um novo movimento capaz de mudar a história. Na política, não bastam a intenção ou o belo discurso. Por ser do campo da ética, requer uma ação conseqüente. Portanto, é importante sair da retórica e partir para a ação.
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