quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Trecho do Prefácio de Bruni no Livro

FRATERNIDADE E COMUNHÃO: MOTORES DA CONSTRUÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA HUMANO
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Os principais frutos que a relacionalidade dos mercados produz são simbolizados por dois valores da modernidade: igualdade e liberdade, principalmente a liberdade do indivíduo. Existe porém um terceiro princípio da modernidade demasiadamente esquecido: a fraternidade, um princípio “transcendente”, que não se põe ao lado dos outros dois, mas é uma dimensão da liberdade e da igualdade que se faltar não permite a estas duas realidades humanas desabrocharem com toda plenitude. A liberdade e a igualdade prometidas pelo mercado pediram na modernidade o sacrifício da fraternidade, porque as suas afirmações aconteceram através da expulsão da relação de fraternidade da esfera pública. Liberdade e igualdade podem permanecer – e historicamente permaneceram como experiências “imunizadas”.
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Com a fraternidade isso não aconteceu. Eis porque a fraternidade é sempre uma experiência de alegria e de dor, de vida e de morte. Mas sem a fraternidade a vida não desabrocha, não existe felicidade nem humanidade plenas. É óbvio, a vida nem é feliz nem plenamente humana quando estão ausentes a liberdade e a igualdade. Mas a grande ilusão do humanismo do mercado foi pensar que poderia promover algo de autenticamente humano removendo a relação de fraternidade, com toda sua carga de trágico, de dor e de sofrimento. O grande desafio da posmodernidade será o de realizar conjuntamente estes tres princípios, imaginar e construir um humanismo tridimensional. O paradoxo da “infelicidade opulenta”, e os outros paradoxos da felicidade, revelam-nos substancialmente o altíssimo custo que a humanidade está pagando por haver sacrificado a fraternidade, o princípio esquecido pela modernidade (BAGGIO, 2007).
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A esse respeito, o mito bíblico do combate de “Jacó com o anjo”, do livro do Gênesis (cap.32), comunica muitas coisas a respeito da fraternidade. O episódio se insere na volta de Jacó à terra dos pais, depois do exílio junto ao tio Labão para fugir do irmão enganado, Esau. Para se compreender plenamente o sentido da bênção que o anjo – o ser misterioso – dá a Jacó, é necessário partir da experiência de “fraternidade ferida” que envolve o próprio Jacó e o irmão gêmeo Esau. O Génesis nos narra (cap.27) a respeito da bênção que Jacó arrancou do pai Isaac, tirando-a ilegitimamente de Esau: “Prepara um prato do meu gosto e traga-me para comer, para que eu te bendiga antes de morrer”(Gn 27,5). É interessante notar uma mensagem escondida na língua hebraica como qual essa narrativa foi escrita. A raiz semítica da palavra bênção “beraka (brk)” de fato, faz referência a coxa do homem, a mesma coxa de Jacó ferida depois do combate. A ferida que Jacó recebeu do Anjo deve ser lida, portanto, em relação a uma ferida mais radical, justamente aquela da fraternidade.
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Uma tradição rabínica diz que Jacó jamais se curou daquela ferida no nervo ciático e que mancou toda a vida, porque o mancar, a fragilidade é a condição do humano: a fraternidade é paradigma do civil e do político, somente se antes nos reconhecemos todos vulneráveis e frágeis, e portanto, necessitados ontologicamente do outro. Também a sociedade de mercado contemporânea sacrificou a fraternidade e também aqui com um grande engano ao prometer uma boa convivência sem sofrimento e gratuidade. O resultado não foi a eliminação, na vida em comum, do sofrimento e da dor, muito pelo contrário, foi a sua multiplicação. A sociedade de mercado de fato deu vida a estruturas criadoras de feridas e a mecanismos que excluem do mercado e da política - e das mediações – meninos e meninas, mulheres e homens de muitos países (e aqui não posso não pensar hoje na África, nas favelas brasileiras e em certas regiões do mundo, onde as feridas da “communitas” se juntaram as feridas mortais dos poderosos da política e do mercado, muitas vezes mais desumanas do que as estruturas tradicionais dessas culturas).
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Esse grande engano deve ser expiado e a ferida profunda da fraternidade universal deve ser curada, se queremos nos reapropriar da dimensão humana e pensar um futuro sustentável. Somente um “corpo a corpo” com o outro em carne e osso e a aceitação da ferida que esse combate pode provocar, podem restabelecer um novo vínculo social, uma nova fraternidade, uma economia de comunhão, que ainda não sabemos descortinar.
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Em cada pessoa ou povo enganado pela “grande ilusão da modernidade”, se esconde um um novo Esau que nos solicita a sua bênção roubada. O comunitarismo, isto é, construir “comunidades fechadas” protegidas da ferida do outro, daquele que está fora dos nossos muros, mas que tem a ver conosco e interpela a nossa fraternidade, um comunitarismo que hoje se reapresenta no horizonte da sociedade posmoderna como uma grande tentação, não pode ser um ponto de apoio nem solução, porque somente uma fraternidade universal aberta, não fechada e nem seletiva, pode satisfazer a exigência de communitas do homem posmoderno.
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Se tudo isso é verdade, ou ao menos plausível, então se compreende o alcance de inovação cultural do livro de Alexandre Aragão que na substância é, ao meu ver, uma reflexão na tentativa de fazer retornar a fraternidade na esfera pública e na esfera do mercado. Economia e civilização, mercado e fraternidade. Porém sem retornar com isso a comunidade sagrada e hierárquica do passado, e salvando a herança civil de uma certa economia de mercado, que porém deve ser redirigida ao bem comum, incluindo principalmente os empobrecidos.
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Pode-se ajudar os pobres com filantropia (USA) ou com o welfare-state (Europa), permanecendo “imunes” em relação a eles, mas se pode curar a pobreza tornando-se “irmãos e irmãs” dos empobrecidos, condividindo com eles a própria vida. Eis porque a solidariedade é diversa (mesmo se não oposta) da fraternidade que é sempre experiência de proximidade, de “contaminação” com o outro: um acontecimento exemplar da história da fraternidade é o beijo de Francisco no leproso de Assis, que inaugura a fraternidade franciscana.
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Por essas razões (aqui somente ligeiramente acenadas) a obra de Alexandre de Aragão é também e principalmente um livro de esperança, porque nos oferece boas razões para acreditar ainda no humano. Convida-nos a apostar na fraternidade também na vida civil da posmodernidade. Sem nostalgias, a fraternidade não está atrás de nós, em saudosas comunidades do passado. Mas a fraternidade está diante de nós, e é projeto civil e político, um novo pacto, uma nova aliança entre política, sociedade civil e mercado.
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Alexandre para mim representa historicamente um encontro que me revelou dimensões novas da fraternidade, da comunhão, da pobreza, da anima e do animus brasileiro e nordestino, um encontro importante como ser humano e como estudioso. Esse meu prefácio é somente um modo de dizer-lhe obrigado, de devolver um dom recebido, é reciprocidade.
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Luigino Bruni

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