segunda-feira, 17 de novembro de 2014

AS LIÇÕES DE AMÁLIA


 
Alexandre Aragão de Albuquerque

 
Nessa eleição, algumas lembranças do passado retornaram a minha mente. Num primeiro momento elas pareciam não possuir muita conexão com o processo político eleitoral, mas à medida que a disputa se acirrava, principalmente com a emergência raivosa do pensamento conservador contra as conquistas democráticas da última década, comecei a perceber algumas relações entre lembranças passadas e fatos do presente.

No final do ano de 2002, estive na casa de Aristófanes para um almoço de final de ano. Doutor Olavo, pai do meu amigo, ficava muito feliz em poder propiciar aquele encontro de confraternização anual em sua mansão. Amália era uma trabalhadora doméstica de muitos anos naquela família, sentia-se muito bem tratada e reconhecida em seu trabalho (mesmo se naquela época ainda não tinha a carteira profissional de trabalho assinada) pela remuneração que recebia do seu patrão: R$400,00 mensais. De fato, esse valor representava dois salários mínimos da época, o que equivalia US$109,60. (Um dólar no final de 2002 valia R$3,65 e um salário mínimo representava US$54,79).

Passaram-se os anos e em dezembro de 2013, quando almoçava distraidamente em meu intervalo de trabalho, eis que vejo alguém a acenar para mim. Era Amália. Veio em minha direção para dar-me uma saudação. Perguntei-lhe como ia o Aristófanes, o doutor Olavo, e ela me disse que havia saído de lá. Surpreso, não resisti e indaguei a razão da saída, uma vez que por anos ela fora copeira daquela família. Ela respondeu-me que o seu Olavo recusou-se a continuar lhe pagando os dois salários mínimos, queria diminuir sua remuneração. Além disso, quando ela foi dialogar com ele sobre o registro da carteira profissional de trabalho, foi demitida. “Agora eu sou autônoma e trabalho como diarista”, disse ela. Em seguida, feliz, despediu-sede mimdeixando-me a refletir.

De fato, dois salários mínimos no final de 2013 valiam R$1.356,00, o equivalente a US$616,36 uma vez que um dólar valia naquele período R$2,20. Ou seja, a realidade de vida para Amália havia mudado muito, o seu referencial de remuneração sofrera uma valorização real de seu poder de compra da ordem de 5,62 vezes a mais do que em 2002.

Até o final da década de 1970, as trabalhadoras domésticas eram desconsideradas como um grupo produtor de trabalho, ou seja, não faziam formalmente parte do Mercado, consequentemente não eram objeto de direitos trabalhistas e sociais. Com o retorno do Brasil à democracia, a luta democrática retornou à cena política, e a Constituição de 1988 garantiu-lhes os seus primeiros direitos: salário mínimo, o 13º. salário, a licença maternidade. Mesmo assim, manteve-se o tratamento desigual às trabalhadoras domésticas, deixando de estender a elas o mesmo rol de direitos assegurados aos demais trabalhadores brasileiros. Portanto, a partir da redemocratização do país, as trabalhadoras domésticas foram à luta como agentes sociaipara tornarem-se socialmente visíveis e garantirem seu espaço-cidadão na Sociedade [e no Mercado].

O princípio da igualdade requerido por uma sociedade democrática implica a liberdade de luta pela conquista da cidadania, com a ampliação de direitos e a formalização de novas normatizações. Isto, na ditadura de 1970, para as trabalhadoras domésticas, era muito difícil de imaginar; mas agora já é uma realidade possível. Talvez seja por isso que pessoas como o doutor Olavo estejam tão enraivecidas com o resultado das eleições por não concordarem com as conquistas sociais dos últimos 12 anos: eles queriam continuar a ter sob seus pés a gratidão servil de tantas Amálias, sem perspectivas de libertação. Entretanto, hoje, elas conseguem dizer não à exploração a que eram submetidas devido à introdução de fundamentos redistributivos e inclusivos em nossa economia política nacional. Essa é uma das lições que aprendi com Amália: a liberdade só é possível entre iguais, mesmo se diferentes uns dos outros.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

UM CRISTIANISMO NEUTRO, INSOSSO, PRA QUE SERVE?

Alexandre Aragão de Albuquerque


Acabei de receber a edição de novembro de 2014 de uma revista mensal, com matriz de pensamento cristão, do qual sou assinante há alguns anos. Minha expectativa com a sua chegada centrava-se principalmente pela grande vontade em querer conhecer a perspectiva da abordagem de seus editores e articulistas em relação à nossa realidade político-eleitoral atual com o forte debate com que está envolvida boa parte da sociedade brasileira.

Entretanto, para surpresa minha, na página 5, o editorial intitulado “Tempo de sinais”, reza em seu penúltimo parágrafo a seguinte oração: “CN se propõe a ser uma revista pela fraternidade. Portanto, nossa linha editorial busca a neutralidade e a isenção de posturas ideológicas e políticas (grifo meu), em pleno respeito às opiniões de nossos leitores. Todos, sem distinção, somos chamados à fraternidade”.

Passei um tempo parado, esforçando-me por entender essas palavras, vindas de um veículo de comunicação nacional, presente no Brasil há mais de 50 anos, em um contexto de pleno, amplo e aberto debate em torno do processo de aperfeiçoamento democrático que nós brasileiros estamos vivendo a partir da promulgação da Constituição Cidadã de 1988, provocado por uma forte disputa pela presidência da república. Mas antes de chegar a uma conclusão precipitada, procurei passar uma vista, página por página, no corpo da revista, na esperança de encontrar algum artigo que refletisse sobre nosso momento político-eleitoral. Vã ilusão! Nenhuma página foi dedicada ao processo eleitoral. E me perguntei: neutralidade? Isenção de postura política? Isto para mim tinha cheiro de negação da política. Fiquei me indagando: o que haveria por trás desse posicionamento?

Não existe pensamento neutro, nem tampouco isenção política. Todo ato que publicamente adotamos é político. Inclusive o próprio editorial se autocontradiz quando se afirma “ser uma revista pela fraternidade”. Portanto, trata-se de uma opção política. A pergunta que se lança a esta opção é: de que fraternidade se está falando? Porque não existe um único modelo, absoluto, de fraternidade: há a fraternidade dos maçons, dos quartéis, das máfias, do fórum econômico que comanda o mundo, fraternidade dos mulçumanos, fraternidade dos evangélicos, fraternidade dos carismáticos e assim por diante.

Depois, em se tratando de uma publicação fundamentada no pensamento cristão católico, causa estranheza não perceber a atitude e as indicações recentes do seu líder máximo, o papa Francisco.

Em seu recente encontro com representantes de Movimentos Sociais, o Papa lançou um verdadeiro manifesto de orientação para os cristãos católicos envolvidos pela transformação dos rumos com  que a política hegemônica financista vem impondo às pessoas de todo o globo terrestre.

Entre outras coisas afirmou que “os pobres não só padecem a injustiça, mas também lutam contra ela”, dando ênfase a uma opção política: a solidariedade, definindo-a como um pensar e um agir que prioriza a vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. E para isso essa solidariedade precisa lutar contra as causas estruturais da pobreza, da desigualdade, da falta de trabalho, de terra, de moradia, da negação dos direitos sociais e trabalhistas. Além disso, fez uma forte advertência contra o escândalo que é a promoção de estratégias de contenção que unicamente tranquilizem e convertam os pobres em seres domesticados e inofensivos. A isso deu o nome de hipocrisia.

Ainda, o papa Francisco asseverou a necessidade moral e política de uma reforma agrária, demonstrando profunda compreensão histórica do seu posicionamento político, e não de sua neutralidade e isenção, quando disse que para muitos isso pode parecer comunismo, mas explicitou veementemente que o amor pelos pobres está no centro do Evangelho de Jesus Cristo.

E no final desta noite inesperada, ficou no meu coração uma pergunta a me provocar: se o sal perder o seu sabor como havemos de salgar?



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