terça-feira, 26 de outubro de 2010

SAIR DO LUGAR CRISTALIZADO

Alexandre Aragão



Caros jovens amigos e amigas,

Continuando nossa conversa sobre estas eleições, estamos percebendo que não se pode fazer política sem ler a história passada e presente, para buscar construir a história futura. E como vimos, o ideal democrático alicerça-se em tres princípios básicos: liberdade, igualdade e fraternidade. Não são princípios abstratos, devem ser construídos histórica e concretamente. Ou seja, a liberdade deve ser para todos e não para alguns; as condições de igualdade devem ser distribuídas entre todos e não entre alguns.

Como atividade comprometida com o bem comum, alicerçada na história concreta dos indivíduos e povos, cabe à política corrigir as distorções ocorridas ao longo da história na aplicação desses princípios para que os povos tenham uma democracia real e universal numa determinada nação, e não uma democracia abstrata que legitime a desigualdade estrutural entre cidadãos, como denunciava Celso Furtado com o que ocorria entre nós.

É esse compromisso ético com a nossa história brasileira concreta, e não abstrata, que nos permitiu uma nova compreensão da política e do novo rumo a seguir: revisadas as teses liberais que levaram o Brasil ao arrocho salarial, ao desemprego, ao desmantelamento do Estado e ao fundo do poço de nossas reservas cambiais, a sociedade brasileira entendeu que o Estado tinha realmente um papel fundamental na correção das distorções históricas de desigualdade do Brasil. Para isso um novo projeto político precisava alçar o poder para implantar um novo modelo de agir político.
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Portanto, tratou-se de uma nova postura que nos remeteu para a construção de uma nova cultura política. Cada um de nós, pessoalmente e em nossos grupos, foi chamado, e continua sendo constantemente, a rever-se, recompreender-se, resignificar-se politicamente, procurando sair do lugar cristalizado onde eventualmente possamos nos encontrar, para irmos ao encontro da novidade que o Brasil é historicamente convocado a assumir.

Essa nova cultura que está nascendo é o amadurecimento da cidadania, da ação cidadã, da dinâmica dos movimentos sociais.
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Como lembra Wampler, a democracia participativa que emerge no Brasil pode ser conceituada como uma escola na qual os cidadãos adquirem uma compreensão nova sobre a política. A participação dos cidadãos comuns nas decisões cotidianas de seus governos é um momento ímpar, um divisor de águas na política brasileira, mesmo quando um dos candidatos à presidência se mostra explicitamente avesso aos movimentos sociais ao condenar preconceituosamente o trabalho de um movimento social.
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Ao condenar o MST, Serra condena a independência dos movimentos sociais em geral, numa evidente contradição de sua dita proposta de "união nacional", união que já aprioristicamente exclui setores organizados da sociedade civil. Para Serra, o MST é caso de polícia. Hoje é o MST, amanhã que outro movimento social seria excluido por Serra? Os professores, por exemplo, que foram tratados em seu governo estadual com cacetetes?
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Diferentemente, para Dilma, o MST (e todos os movimentos sociais) é caso de política social e diálogo político, de participação. Com ela temos um indicativo de que o processo de democracia participativa pode avançar.
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terça-feira, 19 de outubro de 2010

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

Alexandre Aragão
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Caros jovens amigos e amigas da lista,

Como já tive a oportunidade de me expressar na Revista Cidade Nova, em agosto de 2010, numa entrevista ao jornalista Antônio Faro, a democracia constitui uma nova gramática social, uma forma sócio-histórica de construir e organizar a vida em comum que não é determinada por quaisquer tipos de leis naturais ou sobrenaturais, nem por privilégios de classe nem de berço, nem por um mero procedimentalismo eleitoral como defende o elitismo dito democrático schumpeteriano.

A democracia requer a participação e a inovação das ações dos cidadãos organizados, enquanto livres e iguais, na criação democrática. Consequentemente, em seu dinamismo próprio, a democracia implica certas rupturas com tradições históricas estabelecidas na vida de uma nação, na tentativa de instituir novas concepções e determinações capazes de atender as necessidades atuais de seu povo ou de uma parcela mais marginalizada das riquezas produzidas socialmente, sejam elas materiais ou imateriais.

No Brasil, como sabemos, são muitos os irmãos e irmãs excluídos, resultado de uma construção social histórica baseada no escravismo como sistema político-econômico, seguida por um republicanismo autoritário, de cunho militarista, alicerçado no poder econômico dos cafeicultores, usineiros e pecuaristas. Essa estrutura sócio-eonômica dominou a vida de nosso país e condicionou muitas formas de pensar e ver o mundo, condicionou nossa cultura, sobretudo nossa cultura política. Essa forma de pensar e de agir, autoritária e elitista, continuou perpassando a vida social e econômica do nosso país até os dias de hoje.

A novidade que a redemocratização de 1988 trouxe, ao abrir espaço para inserir novos atores na cena política, foi instaurar uma disputa pelo significado da democracia e pela constituição de uma nova gramática social, colocando na agenda da discussão democrática três questões muito importantes: a criação de espaços públicos deliberativos com a participação do Estado e da Sociedade Civil; a questão da prestação de contas contínua e efetiva dos representantes para o representados; a questão das identidades culturais em meio à diversidade do povo, sobretudo das minorias desprovidas de poder político e econômico, que lutam pelo seu direito democrático à liberdade e à igualdade.

Essa disputa, a partir da Constituição Brasileira de 1988, levou a uma ampliação do campo político no qual ocorre um embate pela re-significação das práticas políticas. Os movimentos sociais em geral estão, assim, inseridos em ações pela ampliação do campo político, pela transformação de práticas dominantes conservadoras, pelo aumento da cidadania e pela inserção de atores sociais excluídos no interior da política.

Portanto, não existe uma concepção única e universal de democracia. Ela é fruto de uma construção sócio-histórica que deve responder aos desafios de um tempo e de um espaço bem definidos.

E é isso que está em questão nessas eleições. Não se trata de votar em Dilma ou Serra, porque não é um presidente que conduz a vida de um país, mas um projeto político.

Portanto, trata-se de escolher o projeto que entendemos ser melhor para o país e que esteja sintonizado com a proposta de DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, que o mundo contemporâneo orienta-se por construir historicamente e que olha para o Brasil desde a criação do Orçamento Participativo.

O Projeto do Governo Lula inovou bastante, também nessa área.

Em primeiro lugar, na proposta pioneira de realizar consultas com entidades da sociedade civil para a elaboração do Plano Plurianual (PPA). Em segundo lugar, através do reforço dos conselhos de políticas nas áreas em que eles já existiam e da criação de novos Conselhos em áreas sem tradição de participação. Em terceiro lugar, através da realização de um conjunto de Conferências que ajudaram a estabelecer as prioridades dos diferentes ministérios. Em quarto lugar, não se pode esquecer que o Orçamento Participativo, experiência de inovação democrática nascida no Brasil e exportada para diversas cidades do mundo, presente em centenas de cidades brasileiras, nasceu em Porto Alegre, a partir da vontade política da Prefeitura do PT, em 1989.

Apesar de a mídia oficial orquestrada partidariamente querer desqualificar e apagar essa história, buscando atingir de forma odiosa a imagem pessoal da candidata Dilma Roussef, que representa este projeto, o povo está consciente da mudança ocorrida neste país nos últimos 8 anos.

Só se pode falar em democracia participativa no Brasil depois da chegada do PT ao poder municipal, estadual e federal. Isto não é uma visão partidária, mas uma justiça que precisa ser moralmente assumida pela História.

Grande abraço!

Até breve,

Alexandre Aragão

domingo, 17 de outubro de 2010

BUSCANDO NOVAS RELAÇÕES PARA A PRODUÇÃO DE NOVOS PENSAMENTOS

Alexandre Aragão
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Oi, Rodrigo: bom dia!

Compartilhaste comigo teus diálogos com Mário. Penso que tu gostarias que eu refletisse algo a respeito.

Vou tentar dizer algumas palavras com o objetivo de ajudar nesse processo de conversas digitais que vocês estão promovendo que, no meu entender, é muito salutar porque coloca em evidência várias contradições reais que existem na vida real, mas que estão submersas por falta de espaço de discussão da vida cotidiana em vossos movimentos de jovens.
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Entendo que não existe unidade abstrata entre seres humanos; ou ela aplica-se à vida concreta real, com suas contradições, ou não existe, é um belo discurso imaginário onde o Logos não consegue ganhar carne social, política ou econômica.

Uma verdadeira revolução copernicana no campo político começou a ser produzida, a partir de 1500, com o nascimento de uma nova teoria política. Com ela foi construído um novo objeto de observação: O PODER. Consequentemente um novo método de pesquisa e reflexão começou a desenvolver-se: a observação prática, buscando a verdade efetiva do objeto, uma vez que, segundo esses pensadores precussores do novo método, existe uma distância muito grande entre aquilo como se deveria viver imaginariamente e o modo como se vive de fato.

Assim, mais que as finalidades filosóficas ou teológicas, os fatos reais passam a ser considerados a matéria do estudo político, vindo em evidência sobretudo o estudo das causas que produzem os conflitos entre os atores políticos e de como encontrar soluções.

A primeira conclusão que a nova teoria política proclama é que o Poder não é algo revelado, mas algo que se conquista. Não é um dom de Deus para algumas pessoas ou grupos, como até a Idade Média se proclamava, mas uma conquista humana. Consequentemente, como segunda conclusão, a construção da vida coletiva é responsabilidade dos humanos. Aos humanos não é vedada a ação; pelo contrário, cabe-lhes a responsabilidade (virtù) de agir de forma sapiente para construir novas realidades, novas instituições, novas concepções de vida que sejam capazes de garantir a felicidade para todos.

Para a teoria política moderna que se inicia não existe um modelo de sociedade ideal. Boas seriam aquelas repúblicas que conseguissem acolher a imperfeição humana e a contingência do mundo, em vez de negá-las, como ocorria com as fogueiras da Idade Média. Consequentemente, o conflito típico do exercício da liberdade humana, expressão das posições antagônicas das relações políticas que florescem numa sociedade, devem ser garantidas suas expressões no espaço público num quadro legal da democracia que começava a ser gestada.

Consequentemente, surge um novo sujeito político. Não mais o príncipe, que era o represante da divindade na terra, mas a multitudo (no pensamento spinozano) ou o cidadão (no pensamento rousseauniano). Surge, como fruto das lutas políticas, um novo regime: a democracia (não mais o feudalismo ou a monarquia absolutista), no qual o poder político é participado.
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A democracia requer a existência de seres humanos livres e iguais, com espaços políticos plenamente visíveis onde todos os atos, motivos e palavras dos ocupantes do poder possam ser vistos, ouvidos, avaliados, julgados, aceitos, recusados, fiscalizados pelos cidadãos. Portanto, na democracia, o poder popular não é uma virtualidade, deve ser exercido de fato. A liberdade de ação política dos cidadãos não é uma contingência, mas uma condição fundamental para a vida democrática.

Portanto, no meu entender, o que está em jogo nessas eleições são visões de mundo.

E aqui, para efeito didático, volto a buscar auxílio novamente na estrutura das religiões, para a gente tentar compreender melhor o que significa isto de que falei acima.

No mundo ocidental antigo, a Lei Mosaica era expressão do regime político teocrático de um povo. De repente, surge no meio do povo, um carpinteiro que coloca em questão os valores e procedimentos desta Lei. Começa a visitar publicanos em suas casas (que eram considerdos pecadores públicos); começa a falar com os pobres, as prostitutas, leprosos, estrangeiros e crianças; começa a repartir pães e peixes com os despossuídos; começa a curar em dia de Sábado (que era a expressão máxima de Lei), começa a anunciar que a vida deve ser plena para todos. Ou seja, começa a colocar novas bases culturais para a construção de uma nova ordem onde todos fossem tratados como filhos e filhas de Deus. A nova referência não deveria ser Moisés, mas ele próprio, o carpinteiro com sua nova mensagem, a luz de um novo mundo. Que ousadia!, que provocação! (na perspectiva daqueles que pensavam segundo os padrões mosaicos).

Então os detentores da Lei mosaica sentem-se ameaçados e passam a acusar aquele jovem carpinteiro, com 30 anos de idade, de estar possuído pelo demônio (novamente o demônio!) porque fazia coisas que não estava prevista na Lei, desrespeitava a Lei (interessante!). O jovem foi considerado um subversivo da Lei e condenado à morte de cruz (que simbolicamente não era uma morte qualquer).

Esse carpinteiro era portador de uma nova visão de mundo, consequentemente, desestabilizava a visão hegemônica e aqueles que dela se beneficiavam. A visão hegemônica sentia-se ameaçada e precisava condená-lo antes que os pobres, seus adeptos, começassem a perceber que um novo mundo era possível.

Portanto, caro Rodrigo, pelo que li dos diálogos, vocês possuem visões de mundo diferentes. Se são compatíveis ou não, eu não posso dizer.

Mas o esforço talvez seja cada um pessoalmente tentar, pelo modelo cartesiano, dissecar-se intelectualmente para saber o que faz vocês terem a visão de mundo que cada um tem. Esse esforço de autoanálise é fundamental, porque na maioria das vezes não sabemos o que pensamos, nem porque pensamos, e quem faz a nossa cabeça pensar do jeito que ela pensa. É a Globo?, a Folha de São Paulo?, o Estadão?, a Veja? etc. etc. etc.

E pelo modelo da complexidade, o esforço interessante seria o de buscar as relações entre o teu pensar e o pensar de Mário, para tentar descobrirem os passos que cada pensamento precisa dar na direção do outro na tentativa de construção de um NOVO PENSAMENTO.

É um trabalho e tanto! Mas se for honesto, competente, sapiente, humilde e paciente, poderá trazer bons frutos para vocês e para aqueles com quem vocês convivem.

Boa empreitada para vocês!!! Espero que eu tenha ajudado.

Abraço,

Alexandre Aragão

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

DIÁLOGO COM JOVENS SOBRE O SEGUNDO TURNO DAS ELEIÇÕES

Alexandre Aragão
a
Caro Rafael, bom dia! Gostaria de continuar o diálogo contigo. OK?

De fato você aponta para alguns aspectos interessantes e importantes, quando fala da "concorrência desleal" dos meios de comunicação na formulação da "verdade social", enquanto aparelhos da classe dominante que busca impor ao todo social sempre a sua visão elitista.

Quando pensamos em democracia, em seu sentido radical (nota: radical é diferente de sectário), isto é, na sua acepção mais enraizada e profunda, pensamos na liberdade de expressão e no pluralismo das idéias visando a construção do bem coletivo. E para isso, não basta que um povo tenha um espírito democrático, mas é fundamental que existam instituições capazes de promover e garantir a encarnação desse espírito, como bem lembrava Tocqueville. E aqui o papel ativo da Sociedade Civil, como também da natureza democrática do Estado surgem como fundamentais para garantir e ampliar a existência de tais instituições.

A ausência dessas instituições promotoras de uma liberdade de expressão equânime, provoca nos povos um estado de mutismo forçado, como tão bem refletiu nosso querido Paulo Freire, ao categorizar a construção de nossa história política brasileira como pre-política em virtude da impossibilidade de fala e de audiência pública imposta aos atores sociais, a partir dos oprimidos.

Lula da Silva, um tipo de oprimido brasileiro, nordestino, migrante, operário, que não alcançou o ensino universitário, é expressão do início do processo de ruptura com a nossa fase pre-politica, ao assumir o poder e colocar questões que nunca estiveram na pauta da política nacional oficial, que incomodam bastante setores de nossa elite econômica conservadora, como distribuição de renda, por exemplo. A taxa histórica do salário mínimo no Brasil, até Lula da Silva, sempre ficou, no máximo em torno de US$ 100. A partir de Lula da Silva, a política de Estado pode promover uma nova concepção de política de salário mínimo que hoje atinge cerca de US$ 300. Neste sentido produzi um artigo MERGULHANDO EM ÁGUAS MAIS PROFUNDAS, publicado no nosso blog Ação Fraterna que recomendo a leitura:

http://acaofraternatextos.blogspot.com/2010/09/mergulhando-em-aguas-mais-profundas.html

Voltando a Tocqueville, ele afirma que a soberania de um povo e a liberdade de imprensa são duas realidades correlativas: um povo que não tenha uma imprensa livre, plural e competitiva, corre o risco de acreditar piamente na primeira notícia que aparece. Como é o caso de nossa imprensa que é dominada e orquestrada por algumas pouquíssimas famílias: Marinho, Frias, Civita, Mesquita e mais recentemente Macedo.

Nisso a internet aparece como uma pequena mas real possibilidade de resistência e de contra-hegemonia. Basta pensar no processo de articulação do Ficha Limpa, que se deu todo pela rede digital. A meu ver, é instrumento que precisamos utilizar sempre na produção e circulação das idéias, buscando dialogar com real de nossa população, para poder produzir um conhecimento capaz de construir, no dizer de Boaventura, uma vida decente para todos e todas.

Um grande abraço. E boa semana!

Alexandre

Olá, Rodrigo. Bom dia!

Vejo que não resististe, e mesmo aí da Itália quiseste entrar no diálogo conosco. Muito bom, porque mostra o quanto a política é feita de paixão e não apenas da frieza de certas medidas, certas razões. Legal!!! É a paixão que nos compromete.

Na sua reflexão você introduz o tema religioso, consequentemente, de fundo mais ético. E eu gostaria de acrescentar algumas palavrinhas para a gente ampliar o debate.

O tema religioso, do ponto de vista da teoria política, pelo que entendo, parece que vai além da questão sagrada e transcendental, para atingir um debate acerca da moralidade humana. Entendendo, portanto, a religião - sagrada ou civil - como aquele laço capaz de ligar e religar os indivíduos em torno de um conjunto de crenças, princípios, normas e atitudes levando-os a constituir uma sociedade. Por isso Política e Religião andam sempre juntas, pois debatem o mesmo tema: as condições para existência da vida humana em comum.

O Estado-Nação nasce com esse objetivo bem definido: garantir a vida para todos. Busca portanto, num certo sentido, o mesmo objetivo das Deidades religiosas tradicionais. Este valor central da natureza do Estado moderno encontra-se naquilo que é denominado na teoria da autorização de "espaço autopístico". Autopístico é o espaço onde os valores centrais de certa sociedade humana são indispensáveis e indiscutíveis.

Por outro lado, a diversidade da dita pós-modernidade está abrindo uma necessária possibilidade de revisão dos nossos lugares ideológicos e epistemológicos na busca de encontrar novos sentidos capazes de explicar o momento histórico que estamos atravessando na tentativa de construir novos vínculos sociais capazes de garantir continuidade da experiência humana de forma satisfatória para todos em sua diversidade existencial. E aqui entramos num outro espaço de articulação da vida comum, denominado pela teoria da autorização de "espaço autotélico". Ao contrário do espaço autopístico, o conteúdo autotélico de um dado sistema de autorização (um sistema politico) consiste naqueles valores, naquelas crenças e naquelas regras que são discutíveis, ou seja, passíveis de interpretação, discussão, justificação e atualização. É no espaço autotélico onde são gerados os atos que são uma orientação intencional que procura obter autorização pública para determinado valor.

Ambos espaços são construídos social e historicamente. Têm a ver com o passado, o presente e o futuro das sociedades humanas. Assim a forma como garantir a vida continua sendo o tema central dessas discussões. E uma eleição é o momento onde são colocadas em debate - bem ou mal - essas questões, implicita ou explicitamente:

1) De que forma pode-se garantir a vida para todos na pos-modernidade?
2) A quem compete esta garantia? Ao Estado? Ao Mercado? A Sociedade Civil? As Religiões? Aos indivíduos isoladamente?
3) Como?
4) De que necessita hoje a vida humana para ser bem vivida humanamente?
5) O que significa vida humana bem vivida?
6) Quem tem autoridade para determinar como uma vida deve ser vivida?
7) Existe um receituário único? Um Pensamento Único? Uma única forma de viver a vida?
8) E assim por diante...

O aborto, portanto, é um entre tantos temas importantes relativos à vida humana.
No espaço autopístico a garantia da vida do nascituro aparece como indiscutível.
No espaço autotélico, a discussão se dá indagando-se de que forma a sociedade precisa garantir a existência dessa vida humana, do seu início até o seu fim.
Portanto, votar, autorizar alguém assumir o poder, é um exercício de corresponsabilidade com o projeto de sociedade em construção. Afinal, só quem pode autorizar são os autores, aqueles capazes de produzir algo.

Grande abraço,

Alexandre
a
Meu Caro Rodrigo, boa tarde! Como andam as coisas por aí? Aceitando o teu convite, vou tentar expressar novas palavras.

Na continuidade do diálogo para o qual me convidas, gostaria antes de expressar minha impressão quanto aos papéis que os representantes são chamados a atuar no sistema democrático. O que parece ser importante é que a representação seja autêntica, ou seja, que os candidatos assumam um papel autêntico através do qual os auditores (que são aqueles membros do "espaço da autonomia", o terceiro espaço do qual não falei na reflexão anterior para não ficar muito extensa) tenham condições de observá-los plenamente na esfera pública para posteriormente legitimá-los mediante autorização através do voto. Uma representação autêntica gera identificação. Por isso precisamos também de auditores autênticos, conscientes de seu papel histórico e corresponsável na construção da democracia.

Em sistemas autoritários os auditores não exercem sua responsabilidade histórica porque não existem eleições, mas nomeações de cima para baixo. Portanto não existe representação. Nos sistemas democráticos, a partir das identificações estabelecidas, os auditores são chamados a exercer sua responsabilidade história elegendo seus representantes. É essa relação que permite, na outra fase do processo democrático, que os auditores exerçam sua fiscalização, seu acompanhamento e sua participação na construção da sociedade comum.

Penso que o debate anteontem, domingo, na BAND (não sei se assististe) foi muito pedagógico ao permitir a nós auditores assistir a exibição pública desses papéis, para verificarmos sua autenticidade. Eu pessoalmente fiquei "decepcionado" com a multiplicidade de papéis interpretados pelo candidato Serra, chegando a afirmar no debate que iria estatizar diversas empresas, ele, que nas palavras de Fernando Henrique Cardoso, foi o ministro mais empenhado nas privatizações na era FHC. E ao mesmo tempo esquivando-se de assumir a responsabilidade por haver regulamentado o aborto em 1998, para os casos de violência sexual sofrida pelas mulheres. Com essa dissimulação serrista pode-se contemplar a falta de autencidade em sua representação. Pode-se dizer que no debate ele teve uma representação dúbia.

O mesmo não ocorreu com a candidata Dilma, mostrando uma coerência do início ao fim em seu desempenho. Dilma apresenta-se compacta em sua representação como candidata. No meu entender, uma representação verossímil.

Este deve ser, talvez, no meu entender, um dos maiores exercícios que nós auditores soberanos precisamos realizar neste momento do segundo turno para poder legitimar aquela personagem que possuir maior autencidade em seu desempenho ao dar veracidade ao seu papel. Basta pensar como foi que Fernando Henrique e Lula da Silva assumiram o seus papéis de presidentes da república. Existem diferenças clássicas em seus desempenhos com consequências reais para a vida dos brasileiros e brasileiras, principamente aqueles mais empobrecidos.

Depois, acho que não podemos medir o grau de crença ou de espiritualidade que os candidatos têm, até porque a manifestação de Deus na vida de uma pessoa se dá de diversas maneiras ("A casa do pai tem muitas moradas") como também a forma de cada um manifestar sua fé numa razão transcendental também se expressa em diversas linguagens, visíveis ou invisíveis aos nossos olhos, muitas vezes não cabíveis no nosso metro particular. Deus é sempre mais do que aquilo que imaginamos ou convencionamos ser. Esse é o desafio que é proposto continuamente às religiões.

Por último, caro Rodrigo, você me pergunta sobre a temática do aborto, que no meu entender acho que já sinalizei na resposta anterior. Ele faz parte do conjunto que chamei de Vida Humana, da Defesa da Vida Humana. Para mim, não é um tema que esteja desconectado dos outros temas envolvidos com esta questão. A Defesa da Vida Humana precisa ser contemplada como um todo orgânico, articulado em suas diversas dimensões familiares, educacionais, econômicas, sociais, políticas, para que se possam ser construídas condições que permitam a todos e todas uma vida decente.

Fica aqui meu grande abraço!!!

Alexandre


Oi, Davi! Legal essa tua comunhão. Ela me faz pensar em duas dimensões humanas, pelo menos. Humanos enquanto seres morais e Humanos enquantos seres sociais.

Na nossa dimensão moral, no pensamento de Bauman, nós estamos sós, porque o apelo moral é inteiramente pessoal. Apela à minha responsabilidade pessoal em responder àquilo que somente eu vejo. No meu espaço de liberdade pessoal, posso agir ou não agir diante daquilo que vejo. E o impulso moral é aquele que me leva a não me omitir, consciente de que somente eu posso dar aquela resposta diante daquilo que vejo. Ser moral significa ser abandonado à minha própria liberdade. É nesse espaço de liberdade que posso assumir a minha humanidade responsável diante da vida, indo além de qualquer prescrição legal ou normativa, construindo um bem além do previsto, do normatizado. É isso que me faz húmus, uma terra fértil, capaz de produzir novos frutos.

Portanto, no início de toda ação moral estamos sós! E aqui basta pensar, por exemplo, em Maria que estava só diante da proposta que lhe apresenta o anjo Gabriel.

Entretanto, como seres sociais, realizamo-nos enquanto seres morais na vida em coletividade. Somos sociedade. É na sociedade e para a sociedade que nos realizamos enquanto seres morais. Se no início do agir moral estamos sós, porque estamos diante de algo que somente nós vemos, no final estamos juntos e em comunhão com todos porque o desfecho de minha ação moral sempre deságua na vida comum para todos os outros com os quais sou humanidade. O bem da moralidade humana resulta na construção da coletividade.

Grande abraço, Davi. Obrigado por sua comunhão. E vamos em frente!

Alexandre Aragão
a
Olá, Júlia! Bom dia!

Obrigado pelo agradecimento aos meus e-mails.

Acho que minha colaboração é sobretudo participar nesse debate em que vocês estão envolvidos, buscando promover uma reflexão possível, já que seria muito melhor se esse diálogo tivesse ocorrido presencialmente, face a face, por exemplo num amplo encontro ou num fórum nordestino de jovens voltado para uma reflexão profunda e madura sobre nosso tempo histórico. Mas eu não perdi a esperança de ver o Movimento Juventude Nova amadurecer e encabeçar um fórum deste tipo. No meu entender, o Movimento Juventude Nova precisa acontecer, ganhar autonomia, deixar de ser uma mera dependência, um apêndice, ter luz própria e crescer enquanto movimento para produzir seus frutos específicos da sua natureza existencial. Mas isso é tarefa de vocês, jovens. Deve ser resultado de vossas inquietações, reflexões e articulações. Na minha época como jovem, nossa tarefa foi a de gerar Juventude Nova no Nordeste. E nós realizamos essa tarefa histórica, e a realizamos muito bem por sinal. Não esperem pelos adultos, articulem-se, pensem, ajam.

Na experiência da Escola Civitas de Fortaleza (2007-2008) vivenciamos um sinal bastante promissor do que significa o envolvimento da juventude no processo político, a partir da base categórica da fraternidade. Infelizmente, por motivos internos, tive de interromper meu trajeto na Civitas, mas pessoalmente eu alimentava a esperança de que as outras escolas do Nordeste encabeçassem nesse período a articulação de um amplo debate político em torno do nosso tempo histórico. Porém, infelizmente, isso não ocorreu.

Existem campos diante dos quais cada um de nós precisa se definir. Não são campos ideais nem idealizados, mas possíveis e concretos. E como diria Chiara Lubich quando falava para os membros do Movimento Juventude Nova, "uma vez escolhida uma via, deve-se persegui-la até o fim". Como a via da política é "o amor dos amores", com certeza é a mais empenhativa e difícil de concretizar: requer dedicação, trabalho árduo, paciência, determinação e compromisso.

Conforme escrevi para Rodrigo, acho importante perceber como um representante assume o seu papel publicamente, para que a gente, enquanto cidadãos soberanos, tenha condições, as melhores possíveis historicamente, de avaliar a autenticidade de seu desempenho. Nesses dias, entre outras coisas, procurei reler textos, reler noticiários, ver alguns vídeos, que me ajudem em minhas reflexoes. Por curiosidade encontrei alguns vídeos interessantes, entre muitos, que os relaciono abaixo, para que você também possa analisar. Além disso, o último link (x) apresenta o decreto presidencial de 1481/1995 que tencionava priviatizar a CHESF.


Grande abraço,
Alexandre Aragão
a
Rodrigo, boa tarde! Tudo bem contigo?
Ainda bem que estás podendo participar e realizar outras leituras, quem sabe menos metafísicas e mais existenciais através desse diálogo com teus amigos e amigas a respeito do processo eleitoral. Que maravilha !!!

Neste teu último e-mail abaixo, parece que vocês estão deixando as considerações mais gerais, para penetrar no campo mais concreto das contradições da realidade brasileira. Eu acho muito bom, porque a fraternidade não dispensa a disputa limpa das idéias e visões. Pelo contrário, a base da democracia são a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

E me colocas alguns difíceis desafios, ao apresentares algumas indagações a partir de tuas constatações em relação aos comentários de Mário e José Luiz.

Vou tentar dizer-te alguma coisa. Espero que te ajude. OK? Estamos aprendendo juntos. Lembrando sempre que minha visão é sempre limitada, a partir do lugar existencial onde estou. Importante é essa abertura para um diálogo aberto.

Bem, ao continuar o diálogo contigo, penso que seja importante fazer algumas considerações básicas, mínimas, sempre a partir da teoria política:

Primeiro:
Nas religiões encontramos definições de deus como Logos e como Pathos. Da forma como compreendemos deus, resultará a construção de nossa sociedade. Por isso, como afirmei antes, Religião e Política andam bem juntinhas. Religião não é só logos (pensamento), mas pathos (paixão) também, que nos movem por um sentido de viver. O mesmo acontece com a Política. Fiquemos tranquilos!

Segundo:
Nas religiões vamos encontrar determinadas estruturas que lhe são fundamentais. A existência de um salvador que anuncia um paraíso para aqueles que o seguirem e renegarem o demônio. Para os seguidores do demônio o destino é o inferno. Existe portanto uma demarcação explicita entre os que estão com o salvador e os que não estão - "quem não é por nós, é contra" -; a Política inspira-se neste mesmo axioma. Para diversos autores, é preciso definir quem é o adversário.

Terceiro:
Portanto, nas religiões o que está em jogo não são apenas os fins, mas também os meios pelos quais os fins possam ser atingidos, ou seja, o Poder. O Deus salvador de uma determinada religião precisa ser mais poderoso que o Diabo, para que o paraíso seja garantido a seus seguidores e o inferno para os inimigos. Portanto, é fundamental definir quem são os inimigos e condenar-lhes ao inferno (ou então promover suas conversões). Para alguns autores, o mesmo acontece com a Política, só é possível realizar os fins prometidos mediante a posse do poder e de uma demarcação do campo.

Quarto:
Para poder afirmar-se como ideologia dominante, uma religião precisa de um conjunto de preceitos, símbolos, ritos e regras que sejam assimilados continuamente por seus seguidores. A Política também.


Bem, com estas premissas teóricas mínimas, acho que precisamos entender que seres humanos não são nem anjos nem demônios, mas simplesmente seres humanos em busca da construção de sua humanização. Sâo seres concretos, existenciais, resultado de suas histórias e culturas. Mas capazes de transformá-las a partir de uma tomada de consciência e de uma ação consequente.

Por exemplo, até bem pouco tempo, no Brasil Colonial e Imperial, era natural e legal, humanos de pele branca serem senhores e proprietários da vida de humanos de pele preta. Além disso, quando da descoberta do Novo Mundo, um dos grandes temas em questão para os humanos de pele branca europeus era se os nativos poderiam ser considerados humanos e se eles teriam alma. Os humanos de pele branca jamais pensaram que seriam condenados ao inferno por açoitar, torturar, violentar, estuprar "sub-humanos" de pele negra ou nativos "sem alma".

Portanto, no Brasil recente, os humanos de pele branca tinham o PODER total sobre a vida dos humanos de pele preta e os nativos. E para que suas consciências não lhes condenasse, existia uma ideologia dominante que naturalizava e legitimava tal tipo de dominação. Os humanos de pele branca estavam tranquilos de que quando morressem iriam direto para o paraíso prometido pelo seu deus. Mais do que isso, essa ideologia era incutida na mente dos humanos de pele preta e dos nativos para que eles assimilassem sua condição de seres inferiores, e a ordem politica e social branca escravista fosse garantida sem maiores problemas.

Devolvo-lhe, então, a pergunta que me fizeste abaixo: Nesse quadro histórico real, acima apresentado, para você, o que seria ser um bom cristão?

Hoje nós vivemos tensões e conflitos sociais típicos de nossa época. Alguns pretendem manter os privilégios que o satus quo lhes confere. Outros não, conseguem compreender que esta naturalização não é algo legítimo mas é resultado de um conjunto de fatores que podem ser mudados mediante o engajamento na ação política. Porque se assim não o fosse, a escravidão continuaria sendo o sistema político-econômico vigente em nosso país. O sistema escravista não caiu por obra de anjos ou demônios, mas por obra de humanos - de peles de várias cores - que questionaram o sistema de dominação vigente.

A modernidade burguesa traz uma quebra de paradigma da vida tradicional, que era baseda na hierarquia e em privilégios de origem, ao anunciar um projeto de sociedade entre seres humanos livres e iguais. E é muito difícil para o brasieiro e a brasileira escravistas (e para os seus filhos herdeiros) admitir que os brasileiros e brasileiras pobres, de pele preta e de pele nativa, lhe são iguais.

O Brasil, segundo diversos autores contemporâneos, está começando a viver a modernidade agora, a partir dos anos 90. As classes sempre existiram no Brasil, mas os inferiorizados não tinham direito a voz nem a visibilidade. Porém, para o Brasil se tornar um país moderno burguês, ou seja, tratar todo o seu povo como cidadãos livres e iguais, os sufocados em suas vozes durante séculos no Brasil agora precisam ter direitos aos espaços de poder (que antes somente os ricos tinham). Isso incomoda muita gente, principalmente os herdeiros dos privilégios do Brasil tradicional. Incomoda sobretudo o fato de um nordestino, migrante, operário, nível médio de escolaridade, ter alcançado o maior posto do poder, a Presidência da República e ter promovido uma mudança de paradigma na política de Estado brasileiro. Ter modernizado o Brasil.

Salário mínimo de US$300? É um "absurdo" para a elite. Em minha sala de aula, na Pós-Gradução, um advogado e professor de cursinho disse que era um absurdo uma empregada doméstica ganhar R$510,00.

Bolsa Família? É outro "absurdo" para elite, porque permite às famílias pobres buscarem formas de trabalho com salários que lhes garantam mais que a simples sobrevivência. Os pobres agora têm a liberdade para dizer não (Nota: dizer não é uma condição básica para o exercício da liberdade básica) a determinadas propostas imorais de trabalho e salário. (lembre-se: modernidade = livres e iguais).

Pre-Sal Estatizado, para garantir educação e saúde de qualidade pra pobre? É um "absurdo", para aqueles que têm seus planos de saúde e educação de qualidade na escola particular.

Então, para a elite tradicional e conservadora, diante desta situação, o que resta fazer?

É preciso configurar estes nordestinos, migrantes, operários, nivel médio e seus amigos e amigas como hereges, como endemoniados, buscando na Lei e no imaginário coletivo algo que os condene ao fogo do inferno. Na época mosaica, a Lei dizia que os leprosos eram impuros e deviam ser condenados a viver à margem da sociedade...

Bem, Rodrigo, o momento agora é o da disputa real, que está bastante acirrada, mas não devemos ter medo. Como diz São João, na sua Primeira Epístola: "quem ama, não teme". Portanto, é hora de exercer um amor maior e de arregaçar as mangas. Lembro que Frei Caneca, ao ser fuzilado, gritava sem cessar: Liberdade, Liberdade, Liberdade.

Depois, passada a disputa, é a hora de a Política promover o encontro, ou melhor, o re-encontro, e construir um novo cenário de construção nacional. Afinal é possível "recomeçar sempre". Ou não?

Grande abraço e bons estudos.

Alexandre Aragão
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