domingo, 17 de novembro de 2013

O longo processo de conquista da cidadania brasileira



Alexandre Aragão de Albuquerque


Neste mês comemoramos 124 anos da proclamação da república. Duas revoluções nos serviram de referência: a francesa e a estadunidense. Uma diferença básica entre ambas, como lembra Hannah Arendt, situa-se no fato de que a revolução estadunidense não devorou os seus filhos, como ocorreu com o terror jacobino francês, pois a verdadeira revolução ocorreu muito antes da declaração da independência, por meio da organização dos colonos das Treze Colônias, na qual a ênfase foi colocada na igualdade dos indivíduos e não em títulos de nobreza, o que levou os fundadores a se preocuparem com aspectos organizativos da nova sociedade mediante laços de solidariedade e de participação política.

Segundo Tocqueville, aquele país tirou o maior partido da associação, valorizando a diversidade cultural existente: havia centenas de associações que devem seu desenvolvimento às iniciativas dos cidadãos. Com a revolução estadunidense, a pátria passou a significar o território cujo soberano é o povo organizado sob forma de Estado independente.

Entre nós não houve uma revolução. A sociedade brasileira da época se caracterizava por profundas desigualdades sociais, econômicas, raciais e regionais, juntamente com uma forte concentração de poder. Nessas circunstâncias de desequilíbrio estrutural, a implantação de uma república liberal adquiriu um caráter de consagração da desigualdade, com a sanção da lei do mais forte que desenvolveu instrumentos ideológicos e políticos para estabelecer um regime profundamente autoritário, como atesta José Murilo de Carvalho: não havia preocupação com o público, predominando uma mentalidade que quis modular “um capitalismo sem a ética protestante”.

A estrutura escravocrata brasileira deu à classe dominante e à classe média tradicional, que naquela se espelha, uma profunda ambivalência em relação aos indivíduos trabalhadores. De um lado, o reconhecimento capitalista da necessidade do trabalho para a existência da acumulação; de outro, a percepção dos trabalhadores como instrumento de trabalho, e não como seres humanos. Aqui o espírito do capitalismo veio acompanhado de uma estranha ética escravista. Por isso, a classe média tradicional reage fortemente a políticas reformistas que privilegiem as classes inferiores por se sentir ameaçada pela ascensão dos pobres que não mais querem submeter-se a condições de trabalho e a formas de remuneração obscenas.

Duas heranças ideológicas marcam esse percurso republicano. O positivismo, que possuía um arsenal teórico bem articulado, centralizado na separação entre Estado e Religião, na busca do progresso pela ciência, com apelo intervencionista de um Estado forte, por meio da ideia de uma ditadura republicana. A incorporação do proletariado à vida republicana deveria ser obra do Estado. Os militares brasileiros sentiam-se fortemente atraídos por essa ideologia. E o verdeamarelismo, ideologia elaborada pelas classes ruralistas dominantes celebrando o país como essencialmente agrário. Nessa época, explica Caio Prado Jr., quando falavam em progresso pensavam no avanço das atividades agrárias e extrativistas. O excedente econômico não era investido em atividades produtivas e de infraestrutura, mas era destinado ao consumo de luxo das classes abastadas. O verdeamarelismo construiu a ideia de que aqui não é o lugar para a luta de classes, mas para a colaboração entre capital e trabalho sob a vigilância atenta do Estado.

Com isso, até o final dos anos de 1970, como assinala Marilena Chauí, a república brasileira apresentava várias lacunas: a ausência de uma burguesia nacional plenamente constituída, não tendo condições de apresentar-se como classe dirigente. Como também a ausência de uma classe operária madura, autônoma e organizada, preparada para propor um programa político capaz de confrontar o da classe dominante fragmentada. Esse vácuo foi preenchido pelo Estado, até então o único sujeito político e único agente histórico nacional.

Mas a partir das mobilizações sociais dos anos 1980 que desaguaram na promulgação da Constituição de 1988, bem como com a abertura do Brasil à economia mundial, um novo marco regulatório sob uma nova base material são geradores de novos sujeitos políticos que entram em cena pública na luta pela conquista de direitos de cidadania, etapa fundamental para a consolidação de nossa república. Assim, o processo de conquista da cidadania continua, afinal revoluções, via de regra, tendem a ocorrer quando as coisas estão melhores porque o crescimento tem a qualidade de exaltar forças antes inexistentes.

terça-feira, 2 de julho de 2013

UM NOVO SONHO

Alexandre Aragão de  Albuquerque



Um sonho acabou: a Brigitte envelheceu. 

Boa parte de seus seguidores nórdicos encontravam na população do hemisfério sul alguns defeitos: o gosto pela dança, o gosto pelo canto, o gosto pela festa, o gosto pelo futebol, o gosto por pensar diferente. 

Essa população colonizada, ao longo de sua história de formação resistente, continuou insistindo em seu "defeito". Desse parto sofrido nasceram filhos e filhas maravilhosos: Zumbi, Caneca, Chiquinha, Cacilda, Pixinguinha, João, Mané, Edson, Celso, Darcy, Paulo, Chico, Tom.

O "defeito" dessa população estava em perceber a vida não como uma redução ao verbum. Para eles, a vida é também o passio que vai até o convivium. 

Do convivium nasce a festa. Festa é convivência, não existe festa de um só. 

Festa é vida compartilhada: é samba, é frevo, é forró, é futebol.

Festa é povo na rua: às vezes cantando e dançando, às vezes gritando e xingando.

Festa é movimento entre sol e lua, entre céu e terra, entre paz e guerra, entre mar e farol.



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quarta-feira, 26 de junho de 2013

REDESCOBRIR O PRAZER DE FAZER POLÍTICA

“Há mais diversão no trabalho, do que na própria diversão”


ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE


Damos continuidade à nossa reflexão na busca de decodificar os momentos recentes na cena pública nacional, protagonizada por jovens estudantes e incorporada por adultos, em seus direitos inalienáveis de manifestação enquanto portadores da soberania popular que fundamenta o Estado Democrático.

Em 2013 comemoram-se os 500 anos de publicação de uma obra que veio dividir as águas da teoria política: O Príncipe, de Nicolau Maquiavel. Com Maquiavel a política começa a construir um novo objeto de observação: o poder.

Diferentemente dos gregos que analisavam a política a partir de um telos, Maquiavel inaugura uma abordagem tentando analisar os meios para se alcançar tais finalidades, ou seja, o poder, discutindo o modo como os principados podem ser conquistados, governados e preservados.

Não só constitui um novo objeto de estudo da política, como também cria um método próprio de pesquisa e reflexão a partir da observação prática, uma vez que, para ele, existe uma distância muito grande entre o modo como se vive e o modo como se deveria viver imaginariamente.

Para o autor, o poder não é algo revelado, mas algo a se conquistar e a preservar. Ao elucidar os bastidores do estado de sua época, seu objetivo é o de advertir os homens sobre a responsabilidade que têm diante da condução da vida da coletividade. Ao colocar em luz a prática adotada pelo Príncipe, chama atenção para a força que o poder político possui e da necessidade de os homens conhecerem-no bem para ordená-lo.

O pensador brasileiro, Otávio Ianni, produziu em 1999 um excelente estudo intitulado O Príncipe Eletrônico, no qual atualiza a leitura de Maquiavel, procurando elucidar como na época da globalização modificam-se de alguma forma radical as condições sob as quais se desenvolvem a teoria e a prática políticas com a chegada do “príncipe eletrônico” que, simultaneamente, subordina, recria, absorve ou simplesmente ultrapassa os outros.

No processo de globalização, entre outras coisas, desenvolvem-se tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas que agilizam, intensificam e generalizam as articulações, as integrações, as tensões, os antagonismos, as fragmentações e as mudanças socioculturais e políticas. Esse é o novo palco da política – imenso e complexo – onde as instituições clássicas da política estão sendo desafiadas a remodelar-se, ou mesmo a serem substituídas, já que outras novas instituições e técnicas da política estão sendo criadas, praticadas e teorizadas, afirma o autor.

Se o Príncipe maquiaveliano é um alguém concreto que busca o poder hegemônico (categoria que Gramsci irá teorizar no século XX), contrariamente o Príncipe eletrônico é uma entidade nebulosa e ativa, presente e invisível, predominante e ubíqua, permeando continuamente todos os níveis da sociedade nos âmbitos local, nacional e mundial. Não é homogêneo nem monolítico. Entretanto, o Príncipe eletrônico expressa principalmente a visão de mundo prevalecente nos blocos de poder predominantes, habitualmente muito bem articulados.

A mídia dos blocos de poder apresenta-se como uma potência radicalmente nova, em crescimento exponencial, cujo objetivo é a manipulação continua das consciências.

Neste âmbito destaca-se a televisão que é um veículo de informação e propaganda intenso, presente no cotidiano de indivíduos e coletividades. Não só registra, como interpreta, seleciona, esquece, enfatiza e sataniza o que poderia ser a realidade e o imaginário.

Transformando a realidade às vezes em algo fantástico (não é à toa que o programa de domingo se intitula assim), seja em algo escatológico, mas quase sempre virtualizando a realidade em tal escala que o real aparece como forma espúria do virtual.

Por isso a cada dia, por exemplo, a publicidade se qualifica em técnica e forma, com o objetivo de eliminar a atitude crítica por parte da receptividade pública a fim de intensificar constantemente o consumo dos produtos produzidos pelas empresas multinacionais.

Como consequência, o Príncipe eletrônico dos blocos de poder realiza “o milagre” de transformar mercadoria em ideologia, mercado em democracia, consumo em cidadania, operando decisivamente na formação de corações e mentes, em escala global. É a tirania eletrônica do Príncipe da reificação da vida humana.

Nos primeiros dias de manifestação, a mídia global logo quis pautar o fenômeno caracterizando-o como manifestação de vândalos (vide Arnaldo Jabor, o Enéas global). Não esperavam, no entanto, que o movimento ganhasse as proporções que ganhou, depois do vandalismo violento da PM do estado de São Paulo.

De fato, para a mídia global foi uma surpresa, porque os longos anos de neoliberalismo exaltando o individualismo e o consumismo haviam, aparentemente, retirado de algumas gerações o prazer de fazer Política voltada para a solidariedade e transformação social.

Mas nem tudo parece estar perdido. Movimentos como o que estamos a presenciar vêm sinalizar que a História não chegou ao fim.

A alegria da ação politica presente nessas ações, como também tivemos a oportunidade de constatar em pesquisa que realizamos com jovens adolescentes de Fortaleza – CE envolvidos com o Orçamento Participativo, é resultado da luta por  conquistas de bens públicos para a coletividade, tornando assim a vida compartilhada mais humana.

O exercício da política voltada para a solidariedade juntamente com os bens públicos conquistados na luta ajuntam valores a essas existências humanas, seja de jovens como de adultos, desenvolvendo o gosto e o sentido de responsabilidade pela vida em comum.


A ação política voltada para a solidariedade coletiva apresenta-se não somente como uma fonte de alegria, mas também como um poderoso antidoto contra o Príncipe eletrônico.

domingo, 23 de junho de 2013

PELA LIBERDADE DE EXPRESSÃO EM BUSCA DO BEM PÚBLICO E DA HUMANIZAÇÃO DA VIDA


“Uma simples faísca pode incendiar a cidade”



ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE




Na quinta-feira 13 boa parte do país foi tomado de surpresa pela cobertura que a mídia global fazia da manifestação de alguns jovens pelas ruas de São Paulo no seu legítimo e democrático direito de manifestar-se contra o aumento das passagens de ônibus.


Essa mídia global, de forma orquestrada, imediatamente tratou de caracterizar aquela manifestação buscando enquadrar o Movimento Passe Livre (MPL) como um grupelho extremista. Entretanto, a ação truculenta da Polícia Militar (PM) paulista naquela noite chamou a atenção da população e foi a gota d’água para despertar a população em favor dos jovens manifestantes, atraindo, como efeito viral, uma massa avassaladora para às ruas.


Papel importante para o desvelamento da verdade foi desempenhado pelas redes sociais e smartphones para derrubar as distorções construídas pela mídia global conservadora – que é especialista em mostrar apenas o seu lado de visão de um fenômeno e tenta-lo impor como verdade única, neste caso ao buscar enquadrar aquela manifestação como extremista e baderneira.


Os jovens – como também os adultos que os acompanhavam – decidiram ocupar o espaço público por uma questão óbvia: o direito inalienável da liberdade de se manifestar. O espaço público é de todos e deve estar a serviço de todos. Eis a primeira questão que emerge como ponto fundamental para nossa reflexão, resultado dessas manifestações das quais estamos um tanto desacostumados.

Para o mundo desigual concebido pelo neoliberalismo do Estado mínimo que produz a volta ao estado de natureza do cada um por si e todos contra todos, onde vence o mais forte economicamente e danem-se os fracos, são priorizados os paraísos privados de compras, os assim chamados shoppings centers, os condomínios fechados, os carros blindados, a saúde privatizada, em detrimento do bem público. Os seguidores dessa ideologia política têm o Mercado como único fundamento de ordenação e orientação social, e desta forma mantêm-se distantes e alheios à construção de uma sociedade mais equilibrada e sustentável.

Os espaços públicos que deveriam servir a todos acabam paulatinamente sendo privatizados em nome do progresso. E os problemas das metrópoles, em todo mundo, cada vez mais se agravam abertamente: dificuldades de mobilidade pelo incentivo à compra do automóvel em detrimento do investimento no transporte público de qualidade; deterioração de bairros e territórios inteiros em nome da especulação imobiliária; enfim, ausência de políticas públicas de qualidade que contemplem a população como um todo, principalmente aquela parte que mais necessita dessas políticas.

Importante lembrar que esse tipo de manifestação da juventude só foi possível porque estamos no regime democrático, e o que seria a democracia?

Podemos dizer que a democracia moderna é, antes de tudo, o reconhecimento que a humanidade faz de si mesma, percebendo que pessoas e coletividades são capazes de ser agentes de suas histórias, como sujeitos livres e iguais, tendo o direito de agir na qualidade de criadores de suas vidas individual e coletiva, exercendo sua liberdade positiva, e não somente tendo o direito de lutar para serem libertados dos grilhões que os aprisionam, pela limitação do poder político ou econômico, a assim chamada liberdade negativa.

Um dos eixos centrais da democracia é a soberania popular, a afirmação de que a ordem política é produzida pela ação humana.

Por consequência temos que viver democraticamente requer não apenas saber das próprias razões e projetos pessoais, fechando-se neles. É preciso aprender a conhecer as razões do outro, uma vez que a dimensão comum componente de uma cultura e uma vida democrática requer visões e responsabilidades compartilhadas.

No caso específico da juventude, ela requer a existência de estruturas adequadas para o seu desenvolvimento integral, para suas buscas e inovações, para a formulação dos projetos e de suas inserções na vida política, social, cultural e econômica, que levem em conta as diversidades entre as pessoas, bem como as desigualdades de classe, gênero, etnia, condição de moradia, localização entre centro e periferia: em função destas diferenças, os recursos disponíveis pelas políticas públicas resultam em chances muito distintas de desenvolvimento e inserção para os jovens.

E como atesta Paulo Freire, com a experiência desumanizadora da pobreza e da carência, os movimentos sociais - neste caso, o movimento de juventudes -  fazem resistência e incentivo para formação de valores e ação política. É a pedagogia de reagir às limitações impostas à existência pelos modelos de produção e reprodução da vida humana, para estabelecer processos de humanização.

A experiência de viver sob desigualdades sociais e econômicas é uma matriz formadora de processos de humanização com base na consciência da desumanização a que se está submetido.

Tomar consciência, segundo Freire, é um processo que só existe quando não apenas reconhecemos, mas experimentamos a dialeticidade entre objetividade e subjetividade, entre prática e teoria. A conscientização não pode parar na etapa do desvelamento da realidade: a sua autenticidade acontece quando a prática do desvelamento da realidade constitui uma unidade dinâmica e dialética com a prática da transformação da realidade, situando os sujeitos em processo de elaboração de suas cidadanias. A cidadania para Freire é essencialmente uma transformação continua da realidade na busca coletiva da humanização.

As manifestações recentes vêm demonstrar que estamos apenas no começo.






segunda-feira, 18 de março de 2013

OS POBRES E A POBREZA EXISTENTE NO MUNDO


Alexandre Aragão de Albuquerque


Estamos completando uma semana desde a eleição do Papa Francisco. Neste curto período de tempo, pode-se colher uma grande soma de manifestações que giram em torno da grande novidade da eleição de um papa que veio do “fim do mundo”.

Partamos da missa de encerramento do conclave na qual o Papa Francisco acenou em sua homilia, ao comentar o evangelho, para um tripé por meio do qual parece apontar a nova direção que pretende dar à Igreja Católica: CAMINHAR – EDIFICAR – CONFESSAR.

Para ele, a vida cristã é um contínuo movimento que envolve sujeitos e grupos na realização de sua missão. Entretanto, nesse movimento, cada cristão – leigo ou consagrado - deve realizar sua missão sempre diante do Deus manifestado por Jesus Cristo em seu sacrifício da cruz. Caminhar, edificar e confessar a vida cristã enraizados na cruz de Jesus. Sem o abraço real da cruz não pode existir vida cristã.

De fato, se pensarmos na gênese do cristianismo, iremos encontrar um casal de pessoas pobres – um carpinteiro e sua esposa – que enfrentaram várias adversidades para dar à luz seu filho, que nasceu num estábulo. Nasceu pobre e manteve-se pobre durante toda a sua existência humana, no exercício da carpintaria, ajudando seu pai na labuta diária de sustentar a família. Abraçar a cruz não se improvisa: é resultado de uma ascese diária, fruto de uma determinação interior em busca de um sentido mais profundo do viver humano para todos os humanos.

Para o Papa Francisco, nesse triplo movimento, cada cristão deve dedicar um olhar especial para os pobres do tempo contemporâneo, oprimidos pelas nefastas formas de produção de pobreza pós-moderna.

Isso nos faz, mais uma vez, relembrar Dom Hélder Câmara. Uma passagem sua é bastante conhecida de muitos. Diz assim: “Quando dou comida aos pobres, chamam-me de santo; mas quando pergunto pelas causas de sua pobreza, chamam-me de comunista”.

A pobreza que oprime a maioria dos habitantes do Hemisfério Sul do Planeta, do fim do mundo de onde provém o novo papa, não é fruto do acaso. É resultado de formas de organização política e econômica das sociedades.

Conforme assinalou recentemente o economista Antônio Delfim Neto, em artigo na Folha de São Paulo, o capitalismo financeiro é um avassalador produtor de concentração econômica (Ver http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/98290-marx.shtml ). Sem um poder político que lhe detenha sua fome insaciável de riqueza, a tendência do século 21 será a de produzir ainda mais pobres e pobreza no mundo.

Neste sentido, parece ser importante ficar atentos ao interesse inusitado que os meios de comunicação estão demonstrando na cobertura dos passos do novo papa. Sabemos que, apesar do seu valor, os meios de comunicação têm o poder de amortizar as mentes, desviando sua atenção para aspectos editados pela cobertura jornalística, impedindo que questionamentos críticos aflorem no pensamento das pessoas.

Que interesses têm essas redes de comunicação? A que servem os milhões de dólares gastos nas transmissões ininterruptas? Do lado de quem estão esses interesses? Por que somente vozes oficiais têm direito ao microfone nessas coberturas?

Parece que a extrema dedicação dos meios de comunicação na cobertura desse momento objetiva, entre outras coisas, a formação de um perfil público do novo papa, para o imaginário popular, ditado pelo poder da mídia, que acentua mais a figura simpática, bondosa, vestida de branco, capaz de gestos de carinho. 

Não existe um movimento para despertar as consciências, não se provoca o pensamento, mas apresenta o evento como algo mágico, para manter o status quo da sociedade do espetáculo, deixando-nos maravilhados e anestesiados, enquadrados na rotina de uma sociedade extremamente violenta e geradora de pobreza global, da qual estamos cada vez mais alheios.

Eles, os meios de comunicação, chegaram ao ponto de afirmar que o novo papa não adere a Teologia da Libertação, porque, segundo os media, essa teologia seria marxista. Mas hoje termos como, por exemplo, sociedade de classes, ditadura do mercado, mais-valia são categorias sociológicas universalmente usadas por cientistas sociais.

Nota-se, assim, claramente, um tipo de “perversão” naquilo que certos meios de comunicação estão produzindo nessa cobertura. É preciso ficar atentos.

E por último fica a pergunta no ar: como os seres humanos podem realizar plenamente sua humanidade diante das inúmeras opressões e divisões que lhe impõe a organização da sociedade contemporânea?






quinta-feira, 14 de março de 2013

SINAIS DOS TEMPOS: UM PAPA QUE VEIO DO FIM DO MUNDO





Alexandre Aragão de Albuquerque


A eleição do primeiro papa latino-americano, realizada no último dia 13 de março, deixa um gostinho na boca em relação a uma inquietação que nunca quis calar: o que teria sido uma eventual eleição de Dom Hélder Câmara, designado arcebispo de Olinda e Recife em 12 de março de 1964, como pontífice máximo?

Dom Hélder é um dos pilares da Igreja Católica na América Latina, num tempo de bipolaridade mundial, que dividia as nações hegemônicas em duas partes: comunistas e capitalistas, as quais impunham, às nações que delas dependiam, a forma de fazer política externa e interna.

Neste contexto de Guerra Fria continuada, Dom Hélder nunca temeu nem calou diante das ameaças que lhe eram dirigidas e a seus colaboradores e colaboradoras.

Grande defensor dos Direitos Humanos, em plena ditadura militar brasileira, sempre apregoou e vivenciou a não-violência como caminho de construção de uma sociedade justa e fraterna, tendo como premissa a opção preferencial pelos pobres. Sua práxis pastoral era eminentemente participativa e colegiada, tendo sido um dos idealizadores e fundadores do CELAM e da CNBB, sendo seu secretário-geral até 1964.

Em Recife, entre outras ações pastorais, criou o Banco da Providência, o Movimento Encontro de Irmãos e a Comissão de Justiça e Paz, além de fortalecer o crescimento e a ação das comunidades eclesiais de base – CEB’s. E não hesitou em utilizar todos os meios de comunicação para denunciar a violência política e militar existente no Brasil daquela época, pregando uma fé cristã comprometida com as dores e angústias dos empobrecidos.

Com a publicação do Ato Institucional número 5, o AI-5, pela ditadura militar, foi-lhe negado o acesso aos meios de comunicação, sendo proibido aos veículos de comunicação circulante no país publicar qualquer referência a sua pessoa.

Por sua atuação decidida, foi o único brasileiro indicado por quatro vezes para o Prêmio Nobel da Paz, mas as manobras políticas do governo brasileiro de então impossibilitaram que viesse a ganhá-lo.

Infelizmente, a conjuntura política bipolar do mundo impediu que Dom Hélder fosse sagrado cardeal pela Santa Sé, e assim pudesse reunir condições para uma possível eleição à cátedra petrina nas quatro ocasiões em que ocorreram os conclaves.

O tempo político mundial mudou. Não é mais bipolar. Busca-se agora uma multipolaridade na qual a diversidade das nações, dos povos e grupos possa ter expressão no cenário mundial, por meio de canais de representação e participação multilaterais com os quais se possam traçar caminhos para a busca de respostas aos justos anseios de que esses sujeitos sociais são portadores. É um tempo de novas primaveras, mais plurais e horizontais, construídas com a participação de muitos.

Sinais dos tempos é uma categoria teológica. Tem como mote de sua reflexão a passagem do evangelho de Mateus, na qual Jesus de Nazaré responde a uma provocação farisaica que lhe foi dirigida: “Quando é chegada a tarde, dizeis: haverá bom tempo porque o céu está rubro. E pela manhã: hoje haverá tempestade porque o céu está sombrio. Hipócritas: sabeis discernir a face do céu, e não conheceis os sinais dos tempos?” (Mt 16, 1-3).

E Jesus de Nazaré completa seu pensamento em reposta a João Batista: “Voltem e anunciem o que estão vendo: os cegos veem, os surdos ouvem, os coxos andam, os leprosos são curados, a boa-nova é anunciada aos pobres. E feliz daquele que não se escandaliza por minha causa”. (Mt 11).

Esses sinais podem surgir por meio de circunstâncias e pessoas, independente de sexo, raça, nacionalidade, condição social, condição cultural ou credo, porque ninguém pode afirmar com absoluta certeza de onde o vento vem nem para onde vai. Como disse Bento XVI, “menosprezar estes sinais ou não os saber discernir é perder ocasião de renovação” (Mensagem enviada aos brasileiros no início da Campanha da Fraternidade 2013).

Na eleição de Karol Wojtyla já havia algo no ar. Parecia que a multipolaridade começava a soprar os muros do Vaticano, porque pela primeira vez elegia-se um papa polonês, rompendo o circuito de poder dos cardeais italianos, representados naquele conclave por Giuseppe Siri (cardeal de Gênova) e Giovanni Benelli (cardeal de Florença).

Na época Wojtyla afirmou que era “um papa que veio de um país distante”. De fato, foi o primeiro papa não italiano em 455 anos. Iniciava-se assim uma mudança, ao menos simbolicamente, do centro do poder.

Uma de suas principais preocupações como papa João Paulo II era o entendimento profundo do ser humano, “que não é possível de ser compreendido a partir de uma visão econômica unilateral”, numa forte crítica aos sistemas econômicos vigentes, que apregoavam a centralidade do Estado (comunismo) ou a centralidade do Mercado (neoliberalismo) como deuses em torno dos quais a vida humana deveria girar, segundo esses sistemas.

O seu sucessor também não foi italiano. Era alemão. No final de seu governo, inovou, renunciando, colocando sobre os telhados da opinião pública mundial os desafios que são postos à Igreja Católica no tempo presente. Poderia ter calado, mas não o fez. Abriu as feridas, retirando-as de uma invisibilidade escondida, para indicar a necessidade de uma transparência sensível, perceptível aos olhos de todos os seguidores de Jesus de Nazaré.

No caminho de preparação do conclave, uma dessas publicizações foi de vital importância para a compreensão daqueles que acompanhavam com respeito os passos que estavam sendo dados para a eleição do novo pontífice. Trata-se do debate entre os cardeais Tarcisio Bertone e João Braz Avis, no qual foi questionada pelo brasileiro a forma superficial e insuficiente dos relatórios apresentados pelo italiano em relação aos problemas elencados por Bento XVI, entre eles o que diz respeito ao Banco do Vaticano, uma das feridas abertas expostas pelo ato da renúncia.

Estava claro o sinal de que boa parte dos cardeais, que aplaudiram a exposição feita por João Avis, não estava de acordo com os procedimentos da Cúria Romana. Apesar da enorme desproporção de poder existente na distribuição do número de cardeais que constituíram o conclave, dos quais 28 (vinte e oito) eram italianos e, por exemplo, somente 05 (cinco) eram brasileiros, a compreensão do tempo presente indicava a necessidade de uma correlação de forças que fosse capaz de eleger um papa que pudesse gerar novo tempo para a Igreja Católica. Desta vez, não mais italiano nem mesmo do continente europeu, mas do “fim do mundo”.

O fim do mundo é uma categoria que pode representar não necessariamente o final absoluto dos tempos, mas o final de uma época para a chegada de outra; ou seja, o fim de um mundo, de uma forma de conceber e de fazer a realidade.

Em suas primeiras palavras na loggia de Pedro, o papa Francisco afirmou que “Agora começamos este caminho”. Portanto, trata-se de um começo que se inicia agora, coletivamente. E continua: “Um caminho de fraternidade (e não de paternidade) e de confiança. Desejo que este caminho da Igreja que hoje começamos seja frutuoso”.

“Fim do mundo” também pode significar a urgente e necessária compreensão, principalmente para aqueles que estão no centro do poder, de que existem outros mundos, com formas diferentes de sentir, pensar e agir por parte de seres humanos concretos. E que um novo caminho só poderá ser trilhado somente pelo encontro fraterno e confiante entre esses mundos.

Consequentemente, um discurso que vise à unidade, a partir desta perspectiva, não poderá jamais confundir-se com uniformidade ou imposição de uma visão sobre outra. Mas do necessário diálogo capaz de produzir sínteses formuladoras de novos mundos geradores de frutos saborosos para todos, e não apenas para alguns.