quarta-feira, 8 de abril de 2009

FONTE DE SOLIDARIEDADE

Alexandre Aragão

Em seu clássico estudo sobre a divisão social do trabalho, no qual reflete sobre as solidariedades presentes nos grupamentos humanos, Emile Durkheim[1] faz uma crítica à economia política pelo fato de esta transformar o trabalho humano de fonte de riqueza a um simples meio de fazer aumentar os ganhos do capital.
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Para ele, a divisão social do trabalho é uma fonte de “solidariedade orgânica” por produzir uma vasta diversificação do tecido social através das especializações humanas, possibilitando uma comunicação de diferentes realidades que enriquecem e fortalecem os vínculos da vida social. Este tipo de solidariedade só é possível se cada indivíduo tiver uma esfera própria de ação e, conseqüentemente, uma personalidade.
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Entretanto a história demonstrou que a forma como as sociedades capitalistas dos séculos XIX e XX organizaram o trabalho provocou não o desenvolvimento das personalidades dos sujeitos a partir das atividades exercidas em seus ambientes de trabalho; pelo contrário, com a ideologia fordista e taylorista de organização empresarial e de controle do sistema produtivo, o homem foi reduzido a um mero repetidor de operações mecânicas, sendo diminuído a um papel de máquina. Diariamente, ele repetia [e ainda repete] os mesmos movimentos com uma regularidade monótona, sendo-lhe negada uma compreensão do todo do qual é produtor nem uma participação efetiva na riqueza social final por ele produzida. O trabalhador não passou [e ainda não passa] de uma peça na engrenagem que uma força externa põe em funcionamento e que se move sempre no mesmo sentido e do mesmo modo.
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E o autor levanta uma questão: “se a moral tem como objetivo o aperfeiçoamento individual, não pode permitir que se arruine a tal ponto o indivíduo, e se ela tem por fim a sociedade, não pode deixar que se esgote a própria fonte da vida social, porque o mal não ameaça apenas as funções econômicas, mas todas as funções sociais, por mais elevadas que sejam”.
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Portanto, a questão ética apresentada por Durkheim nos remonta a refletir sobre em que condições reais o trabalhador pode desenvolver sua personalidade humana em seu trabalho diário ao ponto de esta ser fonte de solidariedade social.
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Primeiramente, parece importante anotar que dizer personalidade significa afirmar que o homem é uma pessoa, ou seja, um ser dotado de subjetividade e dignidade, capaz de agir de maneira refletida, planejada e racional e de decidir por si mesmo no exercício de sua realização pessoal. Portanto, o trabalhador não é um instrumento, não é uma máquina, e é como pessoa que ele trabalha. Ele é o sujeito do trabalho: o valor ético do trabalho resulta justamente deste sentido subjetivo. E isto precisa acarretar conseqüências concretas na ordem política, econômica e jurídica capazes de garantir uma nova ética no mundo empresarial que contemple verdadeiramente essa realidade.
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Mas além do argumento subjetivo, o trabalho humano tem um fim: a realização do homem enquanto ser social. O trabalho comporta em si uma marca particular, a marca de uma pessoa que opera numa comunidade de pessoas, e tal marca determina a qualificação interior do próprio trabalho[2]. É resultado de um por teleológico, proto-forma do ser social, que possibilita o salto ontológico das formas pré-humanas para o ser humano social. É um fenômeno originário que previamente o ser social tem ideado em sua consciência. Com o trabalho, a consciência humana deixa de ser uma mera adaptação ao meio ambiente e configura-se como uma atividade autogovernada. É um processo, de uma contínua cadeia temporal que busca sempre novas alternativas. Pelo trabalho, o ser social produz-se a si mesmo como gênero humano; pelo processo de auto-atividade e autocontrole salta da sua origem natural baseada nos instintos, para uma produção e reprodução de si como gênero humano, dotado de autocontrole consciente, caminho imprescindível para a realização da liberdade[3].
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Como nos lembra Paulo Freire[4], a humanização se dá coletivamente, no processo de produção social. O trabalho é uma matriz de humanização, onde a cultura se forma: formamo-nos como humanos na maneira como produzimos nossa existência. Portanto, o trabalho deve estruturar-se socialmente de forma humanizada e humanizante para que o ser humano atinja plena e dinamicamente sua humanização. O homem moral é consciente de que cada uma de suas ações é ação sobre o outro e sobre a comunidade a qual pertence[5].
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A primeira comunidade, como sabemos, é a família. E o trabalho constitui o fundamento sobre o qual se edifica a vida familiar, é a condição que torna possível a fundação de uma família, uma vez que a família exige os meios de subsistência que o homem obtém mediante seu trabalho. A família é ao mesmo tempo uma comunidade tornada possível pelo trabalho e a primeira escola de trabalho para todos e cada um dos seres humanos[6]. A experiência cotidiana de união no interior da família enriquece o ser humano e o libera para além dele próprio: é na família que o homem tem ocasião de vivenciar as diversas dimensões que o constitui[7]. A família é a comunidade de cuidados, em razão das necessidades que se prolongam por toda a vida. O amor nasce e cresce com esse cuidado, em uma realidade partilhada e séria. Sem tal realidade de inter-subjetividade verdadeira as relações humanas correm o risco de tornarem-se patológicas[8].
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Portanto, esta parece ser uma das questões centrais para nós do século XXI: que mudanças se fazem necessárias para promover novas concepções e organizações de empresas, da economia e do mundo do trabalho como um todo, que sejam capazes de promover o crescimento da personalidade humana, gerando novas estruturas da sociedade que desenvolvam e fortaleçam os vínculos de convivência social solidária?
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Para Durkheim, faz-se necessária uma unidade viva do todo orgânico social, onde todos possam, a partir de suas especificidades, sentirem-se colaboradores de uma mesma obra humana. Não uma unidade abstrata, mas uma unidade viva.
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Sem dúvida, uma unidade dinâmica dos atores da comunidade humana acolhendo as diferenças e colocando-as num diálogo contínuo, e que seja fruto da coragem de superar as injustiças sociais através da construção de novas formas concretas de convivência fraterna capaz de permitir a todos os homens e mulheres viverem com dignidade e com liberdade das riquezas produzidas pelo seu trabalho.


Notas
[1] Durkheim, Emile. Sociologia. São Paulo: Ática, 1978.
[2] João Paulo II. O trabalho humano. São Paulo: Paulinas, 1982.
[3] Antunes, Ricardo. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 8ª. ed., 2006.
[4] Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987
[5] Weil, Éric. Philosophie Politique. In: OLIVEIRA, Manfredo et. al. Filosofia política contemporânea. Petrópolis - RJ: Vozes, 2003
[6] João Paulo II. Ibid.
[7] Arruda, Marcos. Tornar real o possível. Rio de Janeiro: Vozes, 2006.
[8] Jonas, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto : Ed. PUC-Rio, 2006.
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sábado, 4 de abril de 2009

Questão de fé: reaprender a confiar no outro

Alexandre Aragão


Pensar a crise de civilização que estamos vivendo implica refletir sobre que significado tem a vida humana e a vida da Natureza no tempo contemporâneo.
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De fato, o encantamento diante da vida ao senti-la em toda a sua diversidade biológica, saber-se capaz de sentir sentindo, consciente de sua existência e da existência do outro, capaz de agir, livremente, foi o começo de tudo, da vida humana. A vida humana, portanto, em sua gênese, fundamentou-se no relacionamento dinâmico do homem com a Natureza e dos homens entre si.
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Esta existência relacional é produtora de cultura, na qual o homem, nela integrado, sobre ela influi e dela depende. Simultaneamente é filho e pai da cultura na qual está inserido. Portanto, em cada manifestação de sua vida, o homem traz consigo uma constante abertura ao mistério da vida e o seu desejo inexaurível de conhecimento. Em conseqüência, cada cultura traz gravada em si mesma e deixa transparecer a tensão para uma plenitude. Quando as culturas estão profundamente radicadas na natureza humana contêm em si mesmas a capacidade da abertura, própria do ser humano, ao universal e à transcendência. As culturas alimentam-se da comunicação de valores e a sua vitalidade depende da sua capacidade de permanecerem abertas para acolher a novidade (João Paulo II, 1998)[1].
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Ao mesmo tempo, como nos lembra o professor Carlos Rodrigues Brandão (2007)[2], a cultura pode ser um instrumento de dominação e de poder ou de libertação e comunhão. O destino universal da cultura deve encarnar-se em condições históricas concretas que permitam a comunicação real dos seres humanos pelos quais e para os quais ela é produzida: somente desta forma a cultura é autêntica. A experiência humana da cultura é e está contida nos atos e fatos, nos gestos e nos feitos, dotados de simbologia e de significados, com que nos criamos e criamos o mundo. Gestos realizados em situações interativas de troca e reciprocidade, gerados e geradores das diferentes dimensões da vida social. Gestos interativos através dos quais continuamente transformamos coletividades orgânicas em comunidades sociais.
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Entretanto, a pessoa que nasceu integrada em sua cultura, em suas tradições, com o crescimento e amadurecimento pessoal, poderá vir a questionar verdades aprendidas por meio de um rigoroso exercício crítico próprio do seu pensamento, mesmo se ao questionar as verdades de seu grupo possa vir a reintegrá-las em sua vida. Todavia, apesar desse exercício de especulação racional, constata-se que são muito mais numerosas na vida de uma pessoa a verdades acreditadas do que aquelas adquiridas por verificação pessoal.
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Cada um, quando crê, confia nos conhecimentos adquiridos por outras pessoas - pai, mãe, mestres, amigos, amigas –, e o ato de confiar no outro lhe dá segurança. Ao acreditar, você confia na verdade que o outro expressa. A capacidade e a decisão de confiar o próprio ser e a existência a outra pessoa constituem um dos atos antropologicamente mais significativos e expressivos. Dito de outra forma, a impossibilidade de confiar em alguém gera no ser humano uma insegurança existencial ontológica, desumanizando-o, coisificando-o. Todo e qualquer sistema político-econômico que não alimente e impossibilite a realização da confiança mútua, nos diversos níveis da vida humana, é um sistema desumanizador.
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Exemplos de confiança seriam muitos os que poderíamos relatar, basta pensar na vida matrimonial onde homem e mulher deixam seus núcleos familiares de origem para entregarem-se um ao outro, na aventura da construção recíproca. Mas um dos relatos históricos clássicos são os exemplos dos mártires, que superaram o medo da morte entregando o bem mais precioso que possuíam – a própria vida - por confiarem plenamente na verdade da qual um outro lhes comunicou. Eles tiveram certamente uma confirmação pessoal interior, vivenciada e refletida no seu dia a dia, que nada nem ninguém lhes podia arrancar. Supõe-se, claramente, sempre uma elaboração e uma síntese que passa pela própria pessoa em suas opções existenciais. Donde podemos concluir que a pessoa que busca a verdade, busca ao mesmo tempo uma pessoa em que possa confiar.
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Se pensarmos o contexto cultural onde vivemos e perguntarmo-nos se este nos impulsiona a desenvolver a busca da verdade e a busca de relacionamentos estáveis de confiança mútua, verificaremos que a matriz antropológica da Modernidade está fundamentada no egoísmo individualista, de base material. Para essa escola de pensamento, o homem é essencialmente um ser egoísta que procura maximizar os seus ganhos pessoais nos relacionamentos que estabelece com outros homens e com a Natureza. Assim, o outro deixa de ser um alguém com que posso me relacionar, para ser um meio para se obter uma vantagem. O outro deixa de ser sujeito e é transformado em objeto.
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Essa visão instrumental expressa-se numa razão utilitária voltada para o prazer e poder individual nos diversos campos da vida humana: econômico, político, social, religioso, familiar. Como afirmou Amartya Sen (2000)[3], o cálculo utilitarista não leva em consideração desigualdades na distribuição da felicidade (importa apenas a soma total, independentemente do quanto sua distribuição seja desigual), apresentando forte descaso com direitos, liberdades e outras considerações desvinculadas da utilidade.
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Atualmente, a combinação de novos arranjos técnicos, implicando uma brusca mudança nos processos de produção econômica, com uma nova forma de pensar e perceber politicamente o tempo e o espaço mundial pelo pensamento dominante, gerou um novo momento na história da humanidade: a globalização hegemônica. Ela não é apenas a existência desse novo sistema de técnicas, é também a emergência de um mercado dito global, responsável pelo essencial dos processos políticos atualmente eficazes, com a existência de um motor único na história, representado pela mais-valia globalizada, resultando numa globalização perversa. Isso poderia ser diferente se o seu uso político-cultural fosse outro. E esse parece ser o debate central.
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Será possível voltarmos a confiar no outro tendo como base filosófica e material um tipo de produção social na qual o egoísmo está presente como elemento estrutural de sistema?
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Será possível pensar uma nova forma de organização sócio-econômica global que tenha em sua estrutura dinâmica a solidariedade e a reciprocidade humanas?
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A que tipos e formas de conhecimento precisaríamos recorrer, que não apenas o cientificismo moderno, para reaprender a confiar uns nos outros?
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Essas perguntas e a urgente reflexão sobre elas parecem estar na ordem do dia da humanidade, na medida em que a crise econômica e ecológica globais aumentam a cada momento. Quem sabe consigamos, ao revisitar outras formas de conhecimento, tais como o aprendizado com experiência do dia a dia e o conhecimento religioso mais amadurecido ao longo da história, construir um novo caminho de volta para a Casa Materna.


[1] JOÃO PAULO II. Fides et Ratio: sobre as relações entre fé e razão. São Paulo: Paulinas, 1998
[2] BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O vôo da arara azul. Campinas – SP: Editora Autores Associados, 2007.
[3] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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