sábado, 4 de abril de 2009

Questão de fé: reaprender a confiar no outro

Alexandre Aragão


Pensar a crise de civilização que estamos vivendo implica refletir sobre que significado tem a vida humana e a vida da Natureza no tempo contemporâneo.
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De fato, o encantamento diante da vida ao senti-la em toda a sua diversidade biológica, saber-se capaz de sentir sentindo, consciente de sua existência e da existência do outro, capaz de agir, livremente, foi o começo de tudo, da vida humana. A vida humana, portanto, em sua gênese, fundamentou-se no relacionamento dinâmico do homem com a Natureza e dos homens entre si.
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Esta existência relacional é produtora de cultura, na qual o homem, nela integrado, sobre ela influi e dela depende. Simultaneamente é filho e pai da cultura na qual está inserido. Portanto, em cada manifestação de sua vida, o homem traz consigo uma constante abertura ao mistério da vida e o seu desejo inexaurível de conhecimento. Em conseqüência, cada cultura traz gravada em si mesma e deixa transparecer a tensão para uma plenitude. Quando as culturas estão profundamente radicadas na natureza humana contêm em si mesmas a capacidade da abertura, própria do ser humano, ao universal e à transcendência. As culturas alimentam-se da comunicação de valores e a sua vitalidade depende da sua capacidade de permanecerem abertas para acolher a novidade (João Paulo II, 1998)[1].
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Ao mesmo tempo, como nos lembra o professor Carlos Rodrigues Brandão (2007)[2], a cultura pode ser um instrumento de dominação e de poder ou de libertação e comunhão. O destino universal da cultura deve encarnar-se em condições históricas concretas que permitam a comunicação real dos seres humanos pelos quais e para os quais ela é produzida: somente desta forma a cultura é autêntica. A experiência humana da cultura é e está contida nos atos e fatos, nos gestos e nos feitos, dotados de simbologia e de significados, com que nos criamos e criamos o mundo. Gestos realizados em situações interativas de troca e reciprocidade, gerados e geradores das diferentes dimensões da vida social. Gestos interativos através dos quais continuamente transformamos coletividades orgânicas em comunidades sociais.
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Entretanto, a pessoa que nasceu integrada em sua cultura, em suas tradições, com o crescimento e amadurecimento pessoal, poderá vir a questionar verdades aprendidas por meio de um rigoroso exercício crítico próprio do seu pensamento, mesmo se ao questionar as verdades de seu grupo possa vir a reintegrá-las em sua vida. Todavia, apesar desse exercício de especulação racional, constata-se que são muito mais numerosas na vida de uma pessoa a verdades acreditadas do que aquelas adquiridas por verificação pessoal.
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Cada um, quando crê, confia nos conhecimentos adquiridos por outras pessoas - pai, mãe, mestres, amigos, amigas –, e o ato de confiar no outro lhe dá segurança. Ao acreditar, você confia na verdade que o outro expressa. A capacidade e a decisão de confiar o próprio ser e a existência a outra pessoa constituem um dos atos antropologicamente mais significativos e expressivos. Dito de outra forma, a impossibilidade de confiar em alguém gera no ser humano uma insegurança existencial ontológica, desumanizando-o, coisificando-o. Todo e qualquer sistema político-econômico que não alimente e impossibilite a realização da confiança mútua, nos diversos níveis da vida humana, é um sistema desumanizador.
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Exemplos de confiança seriam muitos os que poderíamos relatar, basta pensar na vida matrimonial onde homem e mulher deixam seus núcleos familiares de origem para entregarem-se um ao outro, na aventura da construção recíproca. Mas um dos relatos históricos clássicos são os exemplos dos mártires, que superaram o medo da morte entregando o bem mais precioso que possuíam – a própria vida - por confiarem plenamente na verdade da qual um outro lhes comunicou. Eles tiveram certamente uma confirmação pessoal interior, vivenciada e refletida no seu dia a dia, que nada nem ninguém lhes podia arrancar. Supõe-se, claramente, sempre uma elaboração e uma síntese que passa pela própria pessoa em suas opções existenciais. Donde podemos concluir que a pessoa que busca a verdade, busca ao mesmo tempo uma pessoa em que possa confiar.
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Se pensarmos o contexto cultural onde vivemos e perguntarmo-nos se este nos impulsiona a desenvolver a busca da verdade e a busca de relacionamentos estáveis de confiança mútua, verificaremos que a matriz antropológica da Modernidade está fundamentada no egoísmo individualista, de base material. Para essa escola de pensamento, o homem é essencialmente um ser egoísta que procura maximizar os seus ganhos pessoais nos relacionamentos que estabelece com outros homens e com a Natureza. Assim, o outro deixa de ser um alguém com que posso me relacionar, para ser um meio para se obter uma vantagem. O outro deixa de ser sujeito e é transformado em objeto.
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Essa visão instrumental expressa-se numa razão utilitária voltada para o prazer e poder individual nos diversos campos da vida humana: econômico, político, social, religioso, familiar. Como afirmou Amartya Sen (2000)[3], o cálculo utilitarista não leva em consideração desigualdades na distribuição da felicidade (importa apenas a soma total, independentemente do quanto sua distribuição seja desigual), apresentando forte descaso com direitos, liberdades e outras considerações desvinculadas da utilidade.
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Atualmente, a combinação de novos arranjos técnicos, implicando uma brusca mudança nos processos de produção econômica, com uma nova forma de pensar e perceber politicamente o tempo e o espaço mundial pelo pensamento dominante, gerou um novo momento na história da humanidade: a globalização hegemônica. Ela não é apenas a existência desse novo sistema de técnicas, é também a emergência de um mercado dito global, responsável pelo essencial dos processos políticos atualmente eficazes, com a existência de um motor único na história, representado pela mais-valia globalizada, resultando numa globalização perversa. Isso poderia ser diferente se o seu uso político-cultural fosse outro. E esse parece ser o debate central.
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Será possível voltarmos a confiar no outro tendo como base filosófica e material um tipo de produção social na qual o egoísmo está presente como elemento estrutural de sistema?
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Será possível pensar uma nova forma de organização sócio-econômica global que tenha em sua estrutura dinâmica a solidariedade e a reciprocidade humanas?
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A que tipos e formas de conhecimento precisaríamos recorrer, que não apenas o cientificismo moderno, para reaprender a confiar uns nos outros?
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Essas perguntas e a urgente reflexão sobre elas parecem estar na ordem do dia da humanidade, na medida em que a crise econômica e ecológica globais aumentam a cada momento. Quem sabe consigamos, ao revisitar outras formas de conhecimento, tais como o aprendizado com experiência do dia a dia e o conhecimento religioso mais amadurecido ao longo da história, construir um novo caminho de volta para a Casa Materna.


[1] JOÃO PAULO II. Fides et Ratio: sobre as relações entre fé e razão. São Paulo: Paulinas, 1998
[2] BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O vôo da arara azul. Campinas – SP: Editora Autores Associados, 2007.
[3] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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Um comentário:

  1. Estou encantada com vários textos do seu blog,Reaprender a confiar, A Casa, e muitos outros cada um deles dá muitas horas de conversa.

    A maioria dos seus textos, embora não tenha lido como deva ser lido, com muita calma, estudado, são precisos, tecnicos, amorosos, profundos,apaixonados.E seu trabalho na escola, um belo exemplo, que você tem que fazê-lo ser seguido. Eu não sei como , você que tem que saber.

    Parabéns!

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