quarta-feira, 8 de julho de 2009

O SENTIDO DA VIDA

Alexandre Aragão

Hoje pela manhã, após o café, percebi que a pia da cozinha estava repleta de louças por lavar. Assim, concluída a refeição matinal, decidi-me pela limpeza dos pratos, panelas e talheres. Minha esposa, antes de sair para o seu trabalho, deu-me um beijo e disse-me que “eu ficava muito bonito lavando os pratos”. Sorriu e partiu.

Depois de sua saída, percebi que aquele tinha sido um belo elogio para o início de mais uma manhã que teria entre outras coisas novas leituras na construção do meu referencial teórico para a elaboração de minha dissertação. Mas parei para curtir um pouco sobre o que ela me falou.

Perguntei-me: que motivação profunda me fez tomar aquela iniciativa?

Rapidamente viajei no tempo, chegaram-me várias imagens. Primeiramente a imagem de meu pai. Lembro-me quando as enchentes históricas do rio Capibaribe assolavam Recife na década de 1960, ele após deixar-nos em lugar seguro, geralmente na casa de minha bisavó Lila [pois a nossa casa ficava inundada pelas águas do rio consagrado por João Cabral de Melo Neto], saía de barco, com alguns amigos, para socorrer pessoas em dificuldade tomadas de surpresa pelas enchentes.

Outro episódio marcante para mim, numa noite, quando um mendigo fora brutal e covardemente agredido por um de nossos vizinhos, imediatamente colocou-o num táxi e levou-o para o hospital. E ainda, quase que diariamente, após chegar do trabalho, colocava uma bermuda e camiseta branca, pulava o muro e ia prosear com o seu tio, portador de deficiência motora e visual. Este cuidado e atenção de meu pai pelo outro, seja ele quem fosse, foi um ensinamento que carrego comigo desde minha tenra idade. Esses atos de gratuidade e solidariedade ficaram registrados desde sempre em mim.

Outra lembrança foi a de minha avó Conceição. Em sua modesta casa, até o final de sua vida, sempre fora aberta a todos, principalmente aos empobrecidos. Porém, o que mais eu gostava nela era quando, no final dos anos 60, chamava-me para contar histórias da vida dos santos. Eu, aos meus sete anos de idade, me maravilhava naqueles relatos sobre aquelas pessoas capazes de feitos grandes e imprevistos por amor ao outro.

Lembrei-me também do que diz o filósofo Manfredo de Oliveira: o ser humano constrói a vida a partir dos sentidos e das categorias a que recorre para descrever o mundo. Eles nos condicionam e condicionam o mundo que nos rodeia. Isso torna possível diferentes interpretações da mesma experiência. Assim criam-se mundos espirituais – individuais e sociais. Na realidade todos os conceitos são idealizações da realidade empírica e, por essa razão, emerge a possibilidade de perguntar-nos se as representações são verdadeiras e se os desejos são moralmente corretos. O ser humano pode dizer sim e não (internamente e externamente). E aqui está uma grande descoberta humana: a idéia do que é Verdadeiro e do que é Bom. É uma descoberta ineliminável, pois mesmo aquele que julga toda verdade uma ilusão tem de considerar verdadeira a sua convicção. O Verdadeiro e o Bom abrem para o ser humano um espaço de liberdade. Ele sempre pode se perguntar sobre as razões teóricas e práticas de suas suposições e com isso libertar-se de causas cegas que o impulsionam. Assim o ser humano está sempre além de qualquer realidade dada. Ele pode perguntar-se pelo sentido de tudo. O ser humano é o ser que pode levantar questão sobre a validade de sua prática: o que é e não deveria ser, e o que não é e deveria ser.

Não há liberdade, sem processo de libertação. Liberdade, em sentido pleno, é auto-determinação. Ação livre é aquela que o ser humano determina a si mesmo ao invés de ser determinado por outros poderes, ação em que o ser humano não é simplesmente de causas fora dele mesmo, mas determinado pelo que é racional. Para Tomás de Aquino, o fim, determinado pela vontade que o gerou, especifica, enquanto bem ambicionado, forma caráter ético da ação humana. O fim é a primeira causa que movimenta a vontade para uma ação. A liberdade sempre implica motivação, ou seja, uma deliberação racional a respeito dos motivos a favor ou contra a escolha de um determinado valor. O ser humano é tanto mais livre em relação ao finito quanto mais se radica no infinito. A presença do infinito nele é condição de possibilidade de sua liberdade. O Absoluto é a raiz da liberdade.

Se a liberdade num primeiro momento é transcendência, autonomia do eu sobre toda a fatalidade, e se num segundo momento é decisão tomada de posição diante de uma multiplicidade de possibilidades, ela só se plenifica na medida em que se exterioriza, se faz mundo, se autoconfigura como ser efetivo na natureza e na sociedade. A liberdade efetiva é liberdade enquanto construção intersubjetiva de relações, a construção do ser pessoal como ser-com-a-alteridade, decisão a respeito da configuração específica desse ser-com. O que torna possível a constituição de sujeitos enquanto sujeitos é esse processo de construção de comunhões como espaço de efetivação da liberdade na contingência dos eventos.

Construir espaços de comunhão, a partir da gratuidade do agir pessoal como um dom para o outro. Penso que este tenha sido o sentido profundo que me levou a lavar os pratos hoje pela manhã. Um simples gesto concreto como este chamou atenção sensível de minha esposa, arrancou-lhe um sorriso, um elogio e um beijo. Maravilha!

8 comentários:

  1. Olá, Alexandre. Parabéns pelo Blog.

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  2. Josênio Parente - Grupo Democracia e Globalização9 de julho de 2009 às 06:56

    Alexandre, você é um místico.
    Abraço,
    Josênio

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  3. Para mim, ele (o sentido da vida) parte da vontade de construir coisas boas, fazer felicidade, tentar fezer o menor mal possivel, ser responsável e ser feliz...

    A isso se segue várias outras indagações como, o que é ser feliz? E algo que verdadeiramenta me atormenta desde a minha infancia "LIBERDADE": como ter? como ser? o que é? como ser livre sem machucar ninguém?

    Daí vem a frase: "O que torna possível a constituição de sujeitos enquanto
    sujeitos é esse processo de construção de comunhões como espaço de
    efetivação da liberdade na contingência dos eventos".

    Gostei bastante do seu texto, quando você escreve desabafa.

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  4. Que Olivia me perdoe, Aragão, mas também achei lindo você no pé da pia lavando a louça... Isso porque a real beleza surge justamente desses gestos, por menores que possam parecer, mas que expressam essa gratuidade de agir que você comentou. Que belo é sentir que agimos em prol da comunhão com o outro após uma decisão que brota da nossa liberdade!
    Abraço, Manu

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  5. Maria Clara - Sociologia da UFC10 de julho de 2009 às 18:56

    Gostei muito do seu artigo.
    Maria Clara

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  6. Josênio Parente - Grupo Democracia e Globalização11 de julho de 2009 às 10:49

    Alexandre, vou pinçar a última frase de seu artigo:

    "Construir espaços de comunhão, a partir da gratuidade do agir pessoal como um dom para o outro. Penso que este tenha sido o sentido profundo que me levou a lavar os pratos hoje pela manhã. Um simples gesto concreto como este chamou atenção sensível de minha esposa, arrancou-lhe um sorriso, um elogio e um beijo. Maravilha!"

    A M.L. deveria ler e observar o valor da vida comunitária. É mesmo o senho. Mas sei que você também já percebeu a complexidade das relações sociais. Como romper a desestruturação dessa vida com a introdução da competitividade, isto é, com o mercado estruturando a voda comunitária e trazendo o individualismo. Ou não é real esse pesadelo? E é aí que se coloca o desafio das Ciencias Socias. Será que a utopia pode resolver?
    Seu texto lembra dos sermões de alguns padre no seminário. Faz um efeito nas comunidades e reforça o lado cooperativo. Mas volto a lembrar: Temos que pensar na realidade atual. O Brasil se converteu a uma estruturação via mercado e já liderado um setor do mundo global. A reunião do G14 busca essa conversão no mundo global. O Papa, em nova encíclica, coloca valores cristãos na crise de confiabilidade do mercado, com já fez o Islamismo.
    Esse é o desafio. E vamos pregar, como S Francisco, a abnegação para sanar esse processo? O movimento franciscano ainda sobrevive, mas o domínio tem sido do mercado.
    Bom fim de semana
    Josênio

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  7. Professor Josênio, obrigado pela reflexão acima, comentando o meu texto.
    Penso que o ser humano é um ser que se constrói, pessoal e socialmente. Esse é meu ponto de partida. Penso também que falar em gratuidade significa expressar uma visão da vida humana, afinal somos todos seres humanos, oriundos do mesmo gérmen humano.

    A vida humana tem sua dimensão natural-biológica, pessoal-subjetiva, social-intersubejtiva, coletiva-estrutural, histórico-transcendental.
    Reduzir o ser humano a uma única dessas dimensões significa torná-lo não-humano. Todas essas dimensões são constitutivas do ser humano.

    Sem a vida biológica ele sequer existe; sem a vida subjetiva ele não se conhece, sem a vida intersubjetiva ele não se reconhece nem reconhece o outro como um seu igual complementar, sem a vida coletiva-estrutural ele não produz convivência sustentável, sem a vida histórico-transcendental ele não encontra o sentido de sua existência.

    O Mercado é uma componente importante desse caminhar humano, sem dúvida. Mas o Mercado não pode ser o fator determinante (filosoficamente falando), não pode apresentar-se como algo que limita o ser humano em seu questionar e mirar novas possibilidades e sentidos da vida em coletividade. O Mercado não pode apresentar-se como um deus. Ele pode, sim, ser fator de comunhão, na medida em que dele participem todos os agentes ao produzirem e ao redistribuirem os frutos, produzidos por todos, a todos, de maneira justa e equânime. Isso é função da Política e da Sociedade Civil.

    A filosofia humana tem pelo menos 2.500 anos de existência, o Mercado tem algo em torno de 200 anos, se pensarmos em sua expressão visível plena, a partir de 1800. Existe um desafio para a humanidade: o de tornar o Mercado [as relações econômicas] uma ferramenta da emancipação humana e não de sua desumanização. Temos uma história por construir. O poeta pernambucano diz algo que me parece interessante e aplica-se a este caso: "De que lado você samba?".
    É a pergunta ética feita a cada ser humano, diariamente. De que lado nós sambamos?, de que lado nós estamos?. A resposta a esta questão definirá a nossa busca pelas respostas de novas relações sociais e construções societárias. Elas não existem, precisam ser construídas.

    Meu texto refere-se uma experiência real, interpessoal, vivida, concreta. Não tem pretensão de encerrar em si a verdade. Como também não é fruto de ficção. Radica-se na liberdade da qual o Absoluto é portador. É no Absoluto e não no Mercado que esta experiência foi inspirar-se e obteve frutos não calculados. Ele - o texto - reporta-se a relação entre pessoas e não entre mercadorias. Coqcteau diz algo interessante: "Não sabendo que era impossível, foi lá e fez". Penso que foi isso que aconteceu, o fato real esteve além da lógica do Mercado. Ou então, dito de outra forma, com o texto pretende-se apontar para a possibilidade de novas lógicas. Não estou propondo em momento algum a abnegação, como o senhor disse acima, mas a comunhão, que é bem diferente. A comunhão pressupõe pelo menos duas dimensões: ser (uma relação entre sujeitos) e o ter (para fazê-lo circular), numa base relacional de encontro e não de massacre, de aniquilação do outro.

    Abraço,
    Alexandre

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  8. E eu venho aqui, avivar a sua memória e lembrar daquela época em que a Ilha Santa Terezinha ficava inundada pelas águas, no inverno, e vc se colocou do nosso lado, e botou literalmente a mão na massa, ou seja, o pé na lama e nos ajudou a limpar o canal da comunidade.
    Um grande abraço
    Denise

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