terça-feira, 29 de setembro de 2009

PENSAMENTO E EXPERIÊNCIA COLETIVA: individualismo ou interdependência?


por Alexandre Aragão de Albuquerque

O concreto é concreto porque é resultado de múltiplas determinações. Consequentemente, o concreto é complexo; não é resultado apenas de uma única dimensão da vida humana seja ela econômica, política, subjetiva ou cultural. O complexo é um conjunto onde o simbolismo, o mito, o imaginário, o racional e a experiência se encontram em seus respectivos lugares para juntos costurarem o tecido daquilo a que chamamos real, como nos lembra Edgar Morin.

Nestes dias vivi uma experiência muito particular, quando na disciplina de Sociologia da Educação propus aos estudantes fazerem uma pesquisa no território onde habitam, procurando identificar alguns sofrimentos humanos concretos presentes em seus bairros e pessoalmente escolherem um para fazer uma pesquisa mais aprofundada na tentativa de conhecê-lo melhor e identificar algumas possíveis causas que o determinam.

A motivação de fundo para essa iniciativa decorreu de uma ampla reflexão que fizemos em sala sobre uma pergunta lançada por Theodor Adorno, num trecho em que reflete sobre a educação: “Com quem devemos ser solidários?”.

Para Adorno, é com o sofrimento dos homens e mulheres que se deve ser solidário. Por isso é fundamental vivenciar a experiência concreta com o outro, porque a perda da capacidade de experienciar é a insensibilidade perante o próprio sofrimento e perante o outro. A experiência é sempre um agir e um sofrer com o outro de forma real.

Foram muitos os sofrimentos colhidos pelos estudantes nessa ação. Uma verdadeira descoberta, a possibilidade de olharem de forma diferente, conforme registraram em seus relatórios, a partir do momento em que se aproximaram mais de perto do sofrimento do outro, tão próximo a si.

Relato aqui brevemente a pesquisa de uma aluna realizada com três jovens adolescentes que praticam tráfico de drogas em seu bairro. Entre os seus entrevistados estava uma criança de apenas 12 anos de idade. O garoto entre outras coisas afirmou que tem dificuldade de freqüentar a escola na qual está matriculado, porque todas as vezes que chega em sala de aula a professora o expõe diante dos colegas chamando-o de “fedorento”, mandando-o retornar para casa e só voltar quando estivesse cheirando bem. Assim, ele prefere estar na rua como “avião” porque ganha R$15,00 por dia e com esse dinheiro dá para ele sustentar a sua mãe e seu irmão mais novo.

Quando a estudante apresentou em sala esse relato, começamos então a conversar e nos perguntar: por que será que uma professora, que passou por uma universidade, recebeu uma formação superior, estudando uma série de teorias sobre o processo educativo, expõe uma criança de 12 anos a tal constrangimento? Seria um problema apenas daquela professora, ou seria um problema da forma como estamos produzindo e transmitindo o conhecimento em nossas universidades? É o sofrimento humano um tema central em nossos estudos universitários? Qual a ética que dá sustentação à produção do nosso conhecimento dito científico?

Como nos lembra Heidegger, a experiência do pensamento só tem sentido quando se baseia na experiência humana. Só ela permite ter a certeza de que se está baseado na rocha da realidade. Só ela legitima a visão criadora sem a qual nenhuma sociedade pode perdurar. Para isso, é preciso olhar a vida concreta que passa ao nosso redor. E olhar não se trata apenas de ver, pelas lunetas de teorias descoladas da realidade. Olhar significa cuidar, zelar, tomar conta de, quando por exemplo dizemos “olhe as crianças enquanto vou fazer o almoço”.

O individualismo moderno recusa-se a enxergar os sofrimentos humanos concretos que batem diariamente em sua fortaleza. Constrói carros blindados à prova das balas da realidade. O individualismo moderno continua alheando-se da dor que habita o planeta. O individualismo moderno quer apenas a maximização da felicidade pessoal, independente das conseqüências que possa causar a outrem. É em cima dessa antropologia individualista que construímos o conhecimento no mundo moderno.

A experiência de milhões de crianças “fedorentas” de 12 anos pelo mundo afora vem nos mostrar que algo se perdeu, algo continua se perdendo, e que a legião de consumidores e de traficantes de droga não é obra do acaso. A chave do individualismo parece não ser mais capaz de fazer a leitura real da realidade. Precisamos descobrir outra chave que possa abrir a porta do vínculo solidário de nossa interdependência humana, derrubando os muros da indiferença e do apartheid social a que nos submetemos pela mão invisível do individualismo.

5 comentários:

  1. Saad Zogheib - Beirute29 de setembro de 2009 às 10:08

    Caríssimo Alexandre : tudo bem? pena que sou muito crú em informática . Caso contrário eu entraria mais vezes no teu blog. Hoje por acaso, consegui ter uma visão de conjunto e além dos artigos , ví as fotos e fiquei emocionado sobretudo, quando vi a nossa querida Teresa intervindo. Sabe essa tua forma de envolver inteligentemente as pessoas em ações conjuntas, onde cada penso, procura dar o melhor de si, traz uma sensação íntima de gratificação. Se esse empenho, essa continuidade, essa sementeira de questionamentos e de propostas, experiências, pesquisas, comunicações, a vida se cristaliza, mesmo com a melhor das boas intenções. Esse grupo é vivo e faz a diferença. Antes de tudo porque torna-se uma verdadeira escola de formação humana, política, intelectual, criando uma massa crítica consistente com sentimentos de solidariedade abertos e atuantes. Se nós conseguímos ativar as potencialidades todas, ao invés de ficar sómente na cobrança e ou na denúncia puramente teórica, estou certo de que os efeitos possam ser vistos sempre mais. Além de tudo, tu tens demonstrado uma especial capacidade para comunicar com clareza, conteúdos e conceitos, elaborações teóricas, nem sempre acessíveis. Eu estou aprendendo muito, refrescando os conhecimentos de autores que tive pouca oportunidade de conhece-los. Enfim, um grande obrigado a ti e a todo grupo por essa presença tão criativa e ativa.

    Saad

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  2. Estou aqui lendo seu texto com um grande amigo e ex professor da Universidade de Heidelberg, Friedrich Muller,que, como eu, gostou muito do que leu. Ele observa aqui comigo sua ênfase ao princípio da reciprocidade e o louva. Obrigada pelo compartilhamento. Parabéns pelo texto!

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  3. Marconi Aurélio - UFPE7 de outubro de 2009 às 15:51

    Muito bom, Alexandre. Parabéns!

    Marconi Aurélio
    Doutorando em Ciência Política - UFPE

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  4. Sandra Helena - Fortaleza - Faculdade Christus7 de outubro de 2009 às 19:24

    Olá Aragão,

    Parabéns pelo seu texto!! Fiquei muito feliz pelos comentários que tens recebidos de grandes intelectuais como a profa. Cláudia Leitão e Friedrich Muller. Semana passada, fomos prestigiados (alunos da Faculdade Christus) com a palestra do ilustre professor Friedrich Muller, autor de inúmeras obras sobre Direitos Fundamentais.
    Parabéns mais uma vez, fico muito feliz por você, porque sei da sua dedicação e esforço para tentar contribuir para a sociedade com seus trabalhos teóricos em prol de uma política voltada para a fraternidade.

    Um grande abraço à vc e a Olívia

    Sandra

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  5. Alexandre, muito bom o artigo. Além de uma linguagem clara, oportuníssimo.
    O individualismo é a morte da sociedade humana. Paradoxalmente, nossa civilização greco-romana nasceu da individuação, da divisão e separação do todo para, compreendendo-se as partes, compreender o todo. O individualismo a sepultará.
    Sem o sentimento de pertença à tribo, à comunidade, nos permitimos ser passivos, indiferentes à dor alheia, focados no próprio umbigo. Funciona como um falso escudo protetor: eu não me mostro, ninguém vê minha fragilidade, minhas dores. Eu, em troca, me permito não dar atenção aos outros, não são da minha tribo, não há o sentimento de pertença, não os reconheço tão valiosos quanto eu.
    Assim, seguimos construindo coletivamente, e sem culpa, uma economia voltada para si - capitalismo, liberalismo, concentração de renda, acumulação, miséria e opulência - um comportamento familiar voltado para si - desagregação, paternidade irresponsável, aborto provocado e LEGAL, transferência de responsabilidade da educação dos filhos ao Estado, falta de comunicação e de afeto - uma política voltada para si - ausência de participação, indiferença ao bem comum, compra de votos, corrupção, carreirismo.
    Viva a comunidade, viva a tribo!
    Sérgio Campello

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