segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

VIGILÂNCIA DEMOCRÁTICA

Alexandre Aragão



Na última sexta-feira encerrou-se o I Seminário de Partidos Políticos: repensando os tradicionais partidos políticos de esquerda por eles mesmos, promovido pelo Grupo de Pesquisa do CNPQ - DEMOCRACIA E GLOBALIZAÇÃO -, entre os dias 11 e 14 de janeiro corrente, com o apoio do Departamento de Ciência Política da UECE, com o objetivo de provocar a reflexão em torno dos espaços e da dinâmica a serem estabelecidos pelos respectivos partidos a partir da conjuntura histórica na qual uma parcela significativa da esquerda há oito anos está no poder formal da política nacional ao assumir a condução do Governo Federal.

Os argumentos apresentados nas palestras foram ricos em perspectivas, assinalando uma ampla diversidade de visões em torno do papel político a ser adotado por esses partidos. Há aqueles que continuam pensando, por exemplo, na construção da revolução popular para a implantação do socialismo e, ao mesmo tempo, existem outros que se definem pela construção e consolidação gradual e contínua da democracia através da luta política e social. Nesse sentido então não se pode falar de esquerda, no singular, mas da existência de esquerdas, no plural.

Uma das contribuições significativas ao Seminário emanou das palestras proferidas pelos representantes políticos – deputados e senadores – ao apresentarem detalhes do dia a dia da prática legislativa institucional, da sua relação com os movimentos sociais, da sua relação com o poder executivo, ao denunciar a cooptação praticada, por aqueles que se acham donos do poder, aos parlamentares com o objetivo de garantir a efetivação de interesses particulares ou corporativos. Estas revelações colocaram em luz a fragilidade de um dos fundamentos sobre os quais se alicerça a nossa democracia brasileira: a representação política.

O modelo de representação política institucional foi herdado do pensamento europeu liberal dos séculos passados, receosos do domínio da minoria pela maioria popular, concebendo a democracia apenas como um procedimentalismo autorizativo através de eleições periódicas, construindo assim uma forma de elitismo político com o qual a elite econômica pudesse gerenciar seus interesses sem maiores problemas.

No Brasil, esse elitismo político encontrou um cenário ainda mais preocupante na medida em que os condicionamentos culturais sobre os quais fomos formados forjaram uma sociedade colonial, fechada, escravocrata, reflexa, sem povo, antidemocrática; nossa formação histórica não criou condições para que o nosso povo pudesse construir-se pelas próprias mãos.

Como lembra Paulo Freire, o que caracterizava a sociedade brasileira era sua condição pré-política; entre nós, o que predominou foi o mutismo do homem, foi a sua não-participação na solução dos problemas comuns, da não participação popular na coisa pública. Esse mutismo conduziu, desde o início, a um poder exacerbado, provocando a tendência para a submissão acrítica, ao ajustamento e à acomodação. Nossas disposições mentais, historicamente herdadas, são rigidamente autoritárias e sempre legitimaram tanto o afastamento do povo da experiência de autogoverno como a negação efetiva dos direitos elementares.

Na Assembleia Legislativa do Ceará, por exemplo, existem apenas 46 deputados com o poder de realizar a representação política de cerca de oito milhões de cearenses. O voto de um parlamentar representa a voz e o interesse de 194.000 cidadãos.

Segundo um dos deputados palestrantes no Seminário, com a ampla maioria parlamentar conseguida na recente eleição, o executivo estadual tem total condição de encaminhar qualquer proposta para a Assembleia que certamente a aprovará. O deputado chamou atenção para o fato de na recente convocação extraordinária do parlamento, entre as mensagens encaminhas pelo executivo estadual, constar a polêmica dispensa de licenciamento ambiental para as obras a serem construídas de interesse do governo (no momento em que no Brasil sofre-se com a maior tragédia provocada pelas chuvas na região sudeste, com a morte de centenas de brasileiros e brasileiras), além de quatro emendas à Constituição estadual, tudo isso para ser debatido e votado no máximo em 15 dias. São temas muito graves, segundo o deputado, que não podem ser votados num tempo tão exíguo, sem o devido debate popular.

E num contexto como este, indagou o palestrante, o que significa ser de esquerda? Significa ceder às pressões do poder econômico ou político, pelo fato de pertencer a uma mesma agremiação, e votar com o governo? Ou há que ser fiel ao programa partidário e aos discursos proferidos em praça pública na busca da autorização dos cidadãos? A quem se deve ser fiel? Com quem se deve manter-se coerente? E de que forma os cidadãos podem, em casos como este, exercer sua soberania e o controle sobre seus representantes?

Esta questão coloca em relevo um aspecto de maior relevância para o exercício da representação política democrática, o do relacionamento dinâmico e efetivo entre o representante com os cidadãos soberanos que o autorizaram tal encargo político, como também dos partidos políticos com a sociedade civil.

Sabe-se que a representação é necessária porque, como lembra Young, a rede da vida social moderna frequentemente vincula a ação de pessoas e instituições em um determinado local a processos que se dão em muitos outros locais e instituições diferentes. Nenhuma pessoa ou grupo pode estar presente em todos os organismos deliberativos cujas decisões afetam sua vida, uma vez que eles são numerosos e estão dispersos.

Assim a representação política tem a ver com três dimensões fundamentais para o seu funcionamento efetivo: a identificação, a autorização e a prestação de contas.

Se pela autorização os cidadãos soberanos, devidamente esclarecidos, identificam e elegem os representantes para falarem em seu nome, é pela prestação de contas que os representantes e partidos políticos se obrigam a apresentar o resultado de suas ações públicas aos cidadãos soberanos.

Consequentemente, a prestação de contas por parte dos políticos não deve reduzir-se apenas ao momento de uma nova eleição, coincidindo com uma nova autorização, mas deve ser um processo instituído e desenvolvido ao longo dos mandatos, em períodos frequentes nos quais representantes e representados possam sentar-se num mesmo espaço e dialogarem em condições de igualdade sobre as questões que lhes atingem, caso contrário aqueles que alegam estar representando, na ausência desses encontros periódicos para prestação de contas de suas ações, estarão representando a si mesmos ou a suas corporações.

Portanto, é preciso que exista uma conexão real, dinâmica e efetiva, entre representantes e representados, capaz de produzir um acompanhamento vivo da vida política em um determinado território.

Ainda mais, se pensarmos numa democracia de alta intensidade, noção desenvolvida pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, na qual a soberania popular não apenas autoriza o exercício do poder político através do voto, mas também participa da gestão de governos e de políticas públicas, exercendo um acompanhamento e controle efetivo dos seus representantes, faz-se mister a existência de espaços públicos de participação dos cidadãos, em condições de igualdade com a de seus representantes, sem nenhum status especial atribuído a qualquer organização ou indivíduo, viabilizando o debate amplo em torno das questões que envolvem suas vidas.

A existência desses espaços públicos contribui sensivelmente para a formação de uma vigilância política, necessária para o pleno exercício da democracia. Como lembra Wampler, a participação política é considerada como um instrumento de transformação social que faz parte de uma trajetória histórica de mudança política mais ampla, com potencial para educar, transferir poder e socializar os atores participantes. Pode ser conceituada como uma escola onde os cidadãos e cidadãs adquirem uma compreensão sobre o que os políticos e os governos fazem, sobre o que os políticos e os governos não podem fazer e sobre como eles, os cidadãos e cidadãs, podem exercer o controle do Estado, além de apresentar seus interesses e demandas para os representantes públicos na elaboração das políticas públicas.

Como afirma o compositor baiano Tom Zé, “a democracia atua quando ousamos, amua quando repousamos”. No repouso, ficamos desligados do que está ocorrendo ao nosso redor. E na democracia vigiar é preciso. A vigilância democrática é uma das atribuições mais importantes dos cidadãos e cidadãs soberanos que o I Seminário sobre Partidos Políticos vem trazer a público como contribuição à práxis democrática de todos nós.



2 comentários:

  1. Alexandre, você como sempre nos ajudando a refletir sobre a nossa conjutura política...Parabéns pelo texto!Está ótimo!
    Um abraço

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  2. Olá, Alexandre! Agradeço pelo texto. Bom ver uma análise desse seminário, ainda mais terminando com Tom Zé. Acredito que ser de esquerda é algo que se constrói para além das amarras partidárias, para além de uma democracia, como você falou, elitista. Há muitos outros espaços em jogo. Daí eu não ser muito adepto do pensamento de que o "povo brasileiro" (se é que se pode definir com um só nome toda uma infinidade de particularidades - Ver H. Bhabha) não se construiu com as próprias mãos. As relações entre os grupos sociais, que são constituídas, vale lembrar, historicamente, não são uma via de mão única, como nos fala Michel de Certeau. Os grupos se fazem nas suas diferenças, na circularidade cultural (de Ginzburg), na negociação. Acredito nos trabalhos de base, na representação e na luta a partir da base. Lembro-me da conversão de classe, de que fala Clodovis Boff. De outro modo, restringimo-nos à eleição, que chega a parecer um mercado. Nasce o marketing político. A democracia representativa parece, assim, ser mais uma instância das lutas populares. Quem sabe não podemos fazer um momento, inclusive com a participação de outras pessoas, para discutir essas questões, não é? Grande abraço pra você, Olívia, Raoni, Clara e Renata!
    Gabriel Pereira

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