sábado, 13 de novembro de 2010

APRENDER A CONVIVER DEMOCRATICAMENTE

Alexandre Aragão



Ainda respirando o clima pós-eleitoral, parece importante exercitar a reflexão em torno de algumas manifestações que emergiram após o resultado do pleito, mais particularmente em relação à onda de mensagens preconceituosas postadas nos twitters, a partir de uma jovem paulista estudante de Direito que, não aceitando a derrota do candidato José Serra, deflagrou um ataque preconceituoso e generalizado contra cidadãos e cidadãs brasileiros de origem nordestina, responsabilizando-os pela vitória de Dilma Roussef.

Também foi sintomático constatar nos diálogos e reflexões que mantive por e-mail com algumas dezenas de jovens durante o segundo turno das eleições, alguns deles, residentes no sul e sudeste do Brasil, haverem afirmado que “problema de nordestino é coisa de nordestino”.

Primeiramente é importante registrar que a vitória da presidenta Dilma é antes de tudo a vitória da democracia brasileira.

Depois, é fundamental buscar compreender que a democracia é uma experiência muito recente na vida da humanidade.

Até 1989, por exemplo, grande parte da Europa oriental era dominada por um sistema político que não contemplava o pluralismo partidário, nem a competição política em eleições diretas para dirigentes de seus governos, como tampouco possuía a liberdade de imprensa nem econômica. O Sindicato Solidariedade, dos trabalhadores portuários de Gdansk, na Polônia, foi um dos grandes atores na virada dessa situação.

Por outro lado, somente em 1994 a África do Sul pôs fim de fato ao seu regime de apartheid racial, elegendo pela primeira vez um homem negro para presidência daquele país, Nelson Mandela. Paradoxalmente, os países europeus que desenvolveram a ideia da democracia, impuseram sua truculenta dominação imperialista e colonialista ao resto do mundo, além de serem os grandes predadores do meio ambiente em escala planetária.

E no Brasil, após duríssimos anos de ditadura militar (1964 -1988), retomamos, com a promulgação da Constituição de 1988, nossa caminhada de construção democrática. São apenas 22 anos de percurso e aprendizado.

Mas, afinal, o que é a democracia?

A democracia é antes de tudo um reconhecimento que a humanidade faz de si mesma. Ela percebe que os indivíduos e as coletividades são capazes de ser atores de suas histórias, enquanto sujeitos livres e iguais. Mais do que ser capazes, indivíduos e grupos têm o direito de agir enquanto sujeitos criadores de sua vida individual e coletiva, exercendo sua liberdade positiva, e não somente de ser libertados dos grilhões que lhes aprisionam. O eixo central da democracia é a soberania popular, a afirmação de que a ordem política é produzida pela ação humana.

Consequentemente uma cultura democrática alimenta-se pelo esforço da combinação entre a diversidade e a unidade, entre a liberdade individual e a realização de vínculos e projetos coletivos tendo em vista a convivência comum. Não existe democracia se esses dois elementos não forem respeitados e articulados. Assim, a democracia não se define apenas pela representação, pela participação e pela formação de consensos políticos; mas pelo reconhecimento e pelo respeito mútuo das diversidades culturais, territoriais, religiosas, econômicas. Conforme afirma Charles Taylor, a democracia é uma política de reconhecimento mútuo.

Viver democraticamente requer o aprendizado de uma convivência com nossas diferenças em um mundo que seja aberto às diversidades. Tanto a unidade, sem a qual a comunicação e uma convivência pacífica se tornam impossíveis, quanto a diversidade, sem a qual não se poderia pensar numa efetiva liberdade criativa e autônoma dos indivíduos, não devem ser sacrificadas uma à outra.

Portanto, o individualismo – o isolamento do indivíduo das responsabilidades da vida coletiva - não é um princípio suficiente para a construção da democracia, porque o indivíduo guiado apenas por seus interesses particulares, pela satisfação de suas necessidades pessoais, ou até mesmo pela recusa de modelos centrais de conduta, nem sempre é portador de uma cultura democrática. Como lembra Touraine, aqueles que são guiados pelos respectivos interesses nem sempre defendem a sociedade democrática em que vivem e preferem salvar seus bens pela fuga ou simplesmente pela busca de estratégias mais eficazes que lhe beneficiem sem levarem em consideração o sofrimento do outro nem tampouco a defesa dos princípios, dos procedimentos e das instituições democráticas.

Para viver democraticamente é preciso conhecer as razões do outro, e não simplesmente fechar-se nas próprias razões. Construir uma vida comum democrática significa partir de visões e responsabilidades partilhadas. E o diálogo é a ferramenta essencial.

O fechamento em si mesmo – seja como indivíduos, seja como comunidades – produziu barbáries impensáveis. Um dos últimos exemplos históricos, vividos no final do século XX, foi a ação armada dos sérvios que, em nome de uma purificação étnica e homogeinização cultural, promoveu o extermínio de pessoas de filiações nacionais e religiosas diferentes, com quem haviam convivido há anos. Isto sem falar no horror que representou para a humanidade a ideologia nazista da raça pura.

Vivemos num país único, construído a partir da ampla diversidade cultural e regional. As regiões interpenetram-se constantemente para formar aquilo que chamamos de Brasil: o nordeste está no sudeste, assim como o sudeste está no nordeste; o norte está no sul bem como o sul no norte, e assim ocorre entre todas as regiões. Um único Brasil não é apenas resultado de nossa miscigenação racial e cultural, mas é também fruto da solidariedade e de nossa capacidade acolhedora do outro que nos formaram como civilização bem distinta, nas palavras de Darcy Ribeiro.

Não basta, portanto, o veemente repúdio ao ato deflagrado pela jovem paulista estudante de Direito. É preciso mais.

Que este fato abra os olhos de todos para a necessidade de um aprendizado democrático eficaz e contínuo, capaz de gerar uma cultura verdadeiramente democrática na qual nos relacionemos em sociedade através do reconhecimento e do respeito mútuo, pela via do diálogo e não do preconceito.

4 comentários:

  1. Particularmente fiquei muito chocada com todo processo eleitoral neste ano. Não sei se pelo fato de pessoalmente ter sofrido com o preconceito de discordar com o voto da maioria das pessoas, muitas das quais compartilho o msm ideal, mas por não poder estabelecer um dialogo com elas sem que ocorresse o preconceito, a intolerância e então não se podia falar nada. E esses episódios pós eleitorais me fizeram pensar que tipo de sociedade estamos vivendo? Não conseguimos conviver com o outro sem querer que o outro seja como nós, pense igualmente a nós? Sim, é preciso abrir nossos olhos para que esse tipo de intolerância, preconceito não vire uma coisa normal que passe a fazer parte do nosso dia a dia; a naturalização de coisas assim são extremamente prejudiciais para nossa socialização. Obrigada pelo texto.
    Abços, Mari - mgá

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  2. Obrigado, Mari, pelo teu comentário. Acho que a experiência vivida por você não foi isolada. E entendo que a emergência deste conflito é importante para percebermos que não exsite uma sociedade ideal, mas existem sociedades possíveis a partir daquilo que os humanos se disporem a comprometer-se continuamente a construir. Acho que essa emergência conflituosa é uma imensa matéria-primia, uma verdadeira "chave" para poder-se abrir novos caminhos visando uma tolerância mais real a partir da compreensão dos conflitos reais presentes na sociedade concreta em que vivemos, buscando superá-los de forma sensata e consequente.

    Grande abraço, Mari!

    Alexandre

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  3. Texto elucidativo!Você dá uma aula sobre a palavra democracia,com maturidade e conhecimento.Me chama a atenção a contemporaneidade e ainda que seja um assunto tão denso a estética é leve.
    Agradeço pelo e-mail sobre a matéria da economista Tânia Barcelos,acredito que aquilo dito em sua entrevista é uma verdade que o Brasil precisa se dar conta!

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  4. Caro Anônimo ou Anônima,

    Quero também agradecer-lhe pelas palavras generosas e sensíveis pelo que escrevi, principalmente quando coloca em relevo a estética leve do texto.

    Fico lisonjeado!

    A democracia, como você bem anota, é motico de aprendizado mútuo e contínuo.

    Valeu!

    Alexandre

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