domingo, 12 de fevereiro de 2012

UMA MUDANÇA DE BASE


Alexandre Aragão


O ser humano possui uma singularidade dentro do universo cósmico no qual habita e do qual faz parte: possui corporeidade e subjetividade. Consequentemente, no exercício de sua subjetividade, não pode furtar-se a perguntas que lhe surgem ineludivelmente em sua travessia existencial. Quem sou? De onde venho? Qual é o meu lugar dentro desta miríade de seres? O que significa estar jogado neste minúsculo planeta Terra? De onde provém o universo? O que podemos esperar além da vida e da morte? Por que choramos a morte de nossos amigos e parentes e a sentimos como um drama sem retorno?


Possuir a capacidade de levantar semelhantes interrogações é próprio de um ser portador de espírito. Espírito é aquele momento do ser humano corporal-espiritual em que ele escuta estas interrogações e procura dar-lhes respostas. E para tal, utiliza-se de diversos recursos e conhecimentos para formulá-las: por meio de estórias mitológicas, de desenhos em paredes de cavernas ou mediante sofisticadas filosofias, produções teológicas, ritos religiosos e conhecimentos científicos e artísticos..


Como um ser falante, o ser humano é um ser interrogante, um ser espiritual.


Assim, vamos encontrar as mesmas perguntas nos escritos de diversos povos e culturas: nos escritos bíblicos de Israel; nos Vedas e no Avestá; nos escritos de Confúcio e Lao-Tse; nas pregações de Tirtankara e de Buda; nos poemas de Homero, nas tragédias de Eurípides e Sófocles, como nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. São questões que se apresentam como uma fonte comum de uma exigência de sentido que urge no coração humano. E das respostas a tais perguntas depende efetivamente a orientação que se imprime à existência.


Portanto, o ser humano não se contenta apenas com os fatos. Sua dimensão espiritual impõe-lhe desenvolver a capacidade de continuamente criar sentidos e inventar símbolos que lhe permitam discernir valores e significações. As coisas, para os humanos, não são meramente coisas, pois são portadoras de indicações de mensagens a serem decodificadas. É dessa dimensão espiritual humana que nasce a espiritualidade.


O que seria então uma espiritualidade humana?


Pode ser concebida como a atitude de desenvolver o cuidado pelas compreensões, sentidos, símbolos, significações e valores garantidores do bem da existência pessoal e coletiva de todos os humanos, implicando compromissos éticos correspondentes.


A ética nasce justamente das perguntas pelos critérios que tornem possível o enfrentamento da vida com dignidade. O ser humano é o ser que pode levantar a questão da validade sobre a sua práxis, sobre aquilo que deveria ser e não é, e sobre aquilo que não é e deveria ser. A ética emerge nesse contexto como reflexão crítica destinada a tematizar os critérios que permitam superar o mal e conquistar o bem à humanidade. Seu objetivo fundamental é estabelecer o marco no qual seja possível configurar o mundo humano enquanto espaço efetivo de liberdade e justiça para todos.


Pode-se dizer que há um duplo momento no exercício de uma espiritualidade: um primeiro momento de solidão, em que o espírito humano se sente impelido para dentro de si, realizando uma viagem a lugares de sua interioridade nunca antes visitados, buscando responder suas indagações; e um segundo momento de comunicação com os outros humanos, na perspectiva de construir novos relacionamentos interpessoais, graças à nova interpretação de si e da realidade desvelada.


Para o Dalai-Lama, espiritualidade é uma atitude que produz em nós uma mudança.


Há mudanças que não transformam nossa estrutura de base; são superficiais e exteriores ou meramente quantitativas. Mas há mudanças que são interiores, capazes de dar um novo sentido à vida e de abrir novos campos de experiência e de profundidade rumo ao próprio coração e ao mistério das coisas. Não raro, é no âmbito das religiões que ocorrem tais mudanças.


Todavia, a singularidade do tempo contemporâneo suscita novas espiritualidades como componentes profundas da dimensão humana, como o momento necessário para o desabrochar pleno de sua individuação e como espaço de construção de paz em meio aos conflitos e desolações existenciais e sociais.


A espiritualidade permite ao ser humano perceber-se como um projeto ilimitado, que possui uma dimensão de abertura, um desejo de ir além, de transcender, exercendo sua capacidade criativa. Imanência e transcendência não seriam aspectos inteiramente distintos, mas dimensões de uma única realidade humana.


O exercício da dimensão transcendente do ser humano caracteriza-se por possibilitar a ampliação de sua liberdade, fornecendo-lhe mais energia para os enfrentamentos dos desafios existenciais, tornando-o mais generoso, compassivo, solidário e, ao mesmo tempo, promove o autoconhecimento, gerando uma energia integradora que lhe possibilita o encontro com um sentido significativo para sua existência. A partir desse encontro interior, a partir da espiritualidade, a pessoa é capaz de desencadear uma ação transformadora em suas relações interpessoais, comunitárias e no meio da sociedade.


A espiritualidade pode ser comparada ao sal no alimento: não se vê, mas se sente, e quando não está presente, sente-se fortemente a sua falta. Ou por exemplo, o ar que respiramos: não se vê, mas sem ele não é possível existir. Assim, a vivência ou não de uma espiritualidade transparece nas atitudes, nos modos de agir e de reagir diante das pessoas, das coisas e dos fatos. Revela-se numa postura ética e no cuidado com os outros humanos e com a natureza.


Inclusive quando se trata do exercício do poder. Exercer uma espiritualidade nesse campo implica saber como se concebe o poder: como domínio ou como possibilidade representativa, de forma prepotente ou de forma participativa dialogal?


O valor de uma espiritualidade é o de poder propiciar às pessoas atitudes como modos-de-ser humanos, muito mais do que atos isolados, resultado de uma mudança de mentalidade, uma mudança de base em suas vidas, expressando uma verdadeira contestação ao modo de pensar, de querer (sentir) e de agir da sociedade consumista-materialista-individualista contemporânea. É a possibilidade de encontrar-se com novos saberes capazes de dar novos sabores à existência humana.