domingo, 24 de janeiro de 2010

Zilda e o Haiti: a universalidade do sofrimento humano

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por Alexandre Aragão

Há exatamente trinta dias, o mundo ocidental estava comemorando mais um Natal. A motivação desta comemoração, no tempo contemporâneo, reside num consumismo desenfreado, base do sistema econômico e social mundial, cuja finalidade é a busca individualista de maximização de desejos pessoais. Tudo se transforma em motivo para consumo, tudo vira mercadoria. Para o capitalismo, a felicidade está em consumir sempre mais e das mais variadas formas, custe o que custar. Nesse sistema, consumir é o valor central.

Do ponto de vista ideológico, o liberalismo é a religião que sustenta axiologicamente o sistema do capital, procurando transformar o mercado num mecanismo exclusivo de socialização mundial. Assim, o sistema capitalista de produção se manifesta como uma forma de transcendência para o Absoluto. O Capital se transforma em valor supremo, numa divindade visível: “na religião da vida cotidiana”. A vida dos humanos deixa de ser um fim para ser um meio de valorização do Capital, tudo está em função do Mercado. Na ótica do Capital, a defesa da vida humana é um anti-valor. Esse novo Deus proclama a produção da mais-valia como o único e o último sentido para a vida dos homens. E quando o finito é feito absoluto, então tudo deve ceder para que ele seja afirmado como valor supremo. Adorar o não-adorável, absolutizar o relativo, estabelecer como valor radical o que não é absoluto não é um ato libertador do ser humano, é torná-lo seu escravo.

Mas o natal histórico não tem a ver com consumo, nem com vitrines ou mercado. Jesus ao se fazer pobre e não “rei” - nascendo numa estrebaria e vivendo como carpinteiro - assume uma denúncia: a existência do pobre é a denúncia de que o sistema produtivo e reprodutivo da vida coletiva humana não está de acordo com o plano do Deus-da-vida-para-todos. Jesus é o pobre que grita o abandono para mostrar a necessidade de uma conversão para "um novo céu e uma nova terra". Por isso o seu reino não é daquele mundo, do mundo da exploração da vida humana. O seu reino é da reciprocidade viva e concreta da partilha do pão material e imaterial. A Trindade apresentada por Jesus é, portanto, para os cristãos, sua utopia orientadora que os deve mover como método dialógico-amoroso em busca da construção do mundo humano. Nela os diferentes se reconhecem e se afirmam pela comunhão.

Zilda compreendeu muito bem a universalidade da denúncia e do anúncio contidos na proposta do amor cristão: tive fome, tive sede, estava nu. Ao identificar-se com aqueles que sofrem, Jesus define a centralidade do seu pensamento: o ser humano, é preciso amá-lo concretamente, seja ele quem for. Amar significa fazer ao outro todo aquele bem que gostaríamos que nos fosse feito. Assim, Zilda procurou viver, fazendo da sua vida um exemplo do quanto é possível construir um mundo da gratuidade e da reciprocidade humanas. O cume desse dom maravilhoso deu-se justamente no Haiti, o país mais pobre da América, quando, silenciosamente, mais uma vez, estava doando seu conhecimento para uma humanidade faminta, sedenta e desnudada, na busca de possibilitar-lhe algo melhor.

E como há dois mil anos atrás, a Terra tremeu, o céu rasgou-se gritando o abandono da humanidade. O terremoto atingiu os pobres mais pobres do continente americano, para mostrar-nos a todos nós o mundo que estamos construindo. A Terra colocou no centro de nossas atenções, mais uma vez, o sofrimento humano universal produzido sistemicamente.

Zilda partiu em ação, amor em movimento, dom verdadeiro e concreto, voz silenciosa, ato vigoroso, pensamento determinado.

Ao fazer-se um com aqueles que sofrem, assumindo sobre si suas identidades – “o que fizerdes ao menor dos seres humanos, é a mim que o fazeis” – Jesus nos ensina que somos uma única humanidade e que só conseguiremos ser, de fato, felizes, se compreendermos, a exemplo de Zilda, essa verdade, procurando viver a nossa vida humana coletiva – política, social, econômica, familiar - de acordo com essa, sendo os primeiros a tomar a iniciativa no amor.

Amar, como afirmava Zilda, é fazer o outro crescer.
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7 comentários:

  1. João Bosco Euclides da Silva24 de janeiro de 2010 às 08:53

    É interessante como quem defende o modelo do império do capital se aferram ao princípio da liberdade como bandeira que os indultariam para as mais desenfreadas formas de exploração, mas esquecem que ao lado da liberdade e da igualdade, o ideal da nova sociedade também tem o da fraternidade. É isso. Um mundo melhor é possível, e depende apenas de nossas vontades.

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  2. Tu tens tido a vigilância de fazer pensar e sentir os acontecimentos, como alguém que, desde de dentro dos fenomenos, extrai elementos de profunda reflexão e tomada de consciência. O equívocos e o desconhecimento da realidade reduz o ser humano a um mero objeto da manipulação dos que, querer multiplicar os consumidores, os indiferentes, os alienados, semeando a apatia da razão, para mover a imensa multidão desprovida de experiências concretas, válidas de solidariedade, com a criação de sempre novas necessidades artificiais. Os meios de comunicação fazem o grande marketing das cátastrofes, não com tanta continuidade como de novas ilusões e shows que aumentam a dispersão e, portanto, não promovem nenhuma coesão social, nem organiza os grupos para agirem e interagirem diante de barbaridades flagrantes em todos os sentidos . A agressão ao ser humano e as multidãos passa - se a agressão voraz do ambiente e vamos assisntindo sempre novas catástrofes que, sem dúvida, se precipitam porque não há nem força política e nem meios eficazes para desacerelar o desequilibrio ambiental. Perdendo-se a consciência do ser humano, o homem todo e todos os homens, não há quem segure a fúria do ter, do acumular, do esbanjar e porque não, nos políticos, do roubar, desviar, distorcendo o Estado de Direito, os sistemas de controle fiscal, a ação da justiça, tudo aquilo que conhecemos que se vende aos novos "mitos" do materialismo prático, do qual o capitalismo persiste em ser o seu maior promotor. Zilda como geralmente fazem as mulheres no dizer de São Francisco se fez sempre presente nos processos essenciais da "vida e da morte". E o seu projeto extraordinário junto a milhões de mães e crianças, valorizando a família e os meios possíveis não só de sobrevivência, mas de uma vida digna de filhos de Deus, feitos a sua imagem e semelhança, contrasta fortemente com essa subcultura do ter, do provisório,do esbanjamento, das orgias enlouquecidas das noites regadas, a alcool , droga e contraceptivos.....novas modalidades de permissividade e relativismo que tem se apresentado como formas da cultura da morte... fala-se do holocausto e de fato, foi algo tremendo. Não se fala tanto de novos holocaustos que ceifam vidas, até mesmo antes de nascer, ou da fome crescente nos meios dos mais excluidos... e faz impressão ver a multidão de jovens, engraxados de gel , com os cabelos espetados, como as principais vítimas do consumo, da confusão, das consciencias anestesiadas... e a falta de coragem de reagir, ou ainda, vidas queimadas pela inércia do egoismo institucionalizado pelo consumismo e pela confusão. Desde a ditadura militar a lavagem cerebral foi bem arquitetada e os programas vazios de televisão e novos "pão e circo " dos romanos, aperfeiçoadas se encarregam de consumar essas novas barbáries ; droga, suícidios, um egoismo refinado, inversão de generos, destruição da família, da credibilidade das instituições válidas, e uma confusão potenciada pela ignorancia. Não basta só saber ler. Cada idéia é uma responsabilidade, dizia a nossa querida Chiara Lubich. A vida da Zilda explica magistralmente essa proposta. Deu a vida até o fim , gratuitamente, sem esperar votos ou recompensas. Não ter tido os Nobel não a deteve porque o seu objetivo era bem outro. Ela não era movida a elogio, ou a demagogia, ou com promessas vãs. Ela era um a grande humanista e cristã, fruto de uma família que dilatou a sua consaguinidade a toda a humanidade.
    Força Alexandre, aqui e ali vão despertando pessoas e grupos que se dão conta que se pode fazer muito. Tu conheces bem a expressão do nosso amigo Domenico Mangano "fragmentos de fraternidade" que começa nas pequenas interações e relacionamentos. E essa cultura vai penetrando, as pessoas desiludidas procuram formas de uma vida com sentido. Basta ver como essas catástrofes suscitam tanta generosidade, principalmente de pessoas anonimas que não fazem questão de serem vistos pela midia. VAmos continuar a nossa caminhada, com quem quer e sabe porque quer.

    Saad Zogheib Sobrinho

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  3. Pois é, talvez caiba aqui, de fato, a provocação de Gil e Caetano:"o Haiti é aqui;o Haiti não é aqui".Realmente,abro a janela e é como se visse um verdadeiro terremoto social que nos assola.O mais triste é quando tudo parece tão normal.Então, cada um vai vivendo sua rotina diária, seus lazeres, quem sabe, anestesiados. Vamos buscando especializações, estudar,trabalhar dobrado muitas vezes apenas com o puro interesse de ter uma melhor renda para? Aumentar a capacidade de consumo. Pessoas como Zilda Arns nos relembram a caminhada de um judeu nascido na pequena Belém. Que ir além do seu cotidiano,ir em busca do outro, comungar com o momento e também,porque não,com o espaço presente, é inerente aos seus princípios, à sua escolha de vida. Daí, nos faz ver o enorme potencial dos trabalhos de base, pequenos trabalhos voluntários, indepedentes e silenciosos.Lembro do provérbio africano de que "gente simples, fazendo coisas pequenas, em lugares pouco importantes, consegue mudanças extraordinárias".Que construamos uma comunhão com os haitianos sem esquecermo-nos de olhar nossos vizinhos.
    Grande abraço, Alexandre! TAMOJUNTO!

    Gabriel Pereira

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  4. Olá Alexandre,
    Sua inquietude não é solitária, por isso resta uma esperança...
    Tenho estado com os olhos e o coração repletos de dor diante do sofrimento humano no Haiti, e penso que somos responsáveis pelo rumo que o homem e o planeta estão tomando.
    Saber historicamente o que isso representa não me faz aquietar o espírito.
    O que fazer???? Me sinto impotente, acuada em meio a um mundo tão desigual, tão cruelmente desigual.
    Choro pelo meu povo, pelos meus filhos, choro por mim, por poder tão pouco, infinitamente pouco.
    Mas... Continuo tentando olhar com amor a humanidade e lutando para que possamos viver um tempo de amor entre nós.
    Um abraço,
    Sonja

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  5. Maravilhoso texto. Semelhante a uma cesta de tres pontos faltando tres segundos para terminar a partida garantindo a vitória. Parabéns pelo texto.

    Gonzaga

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  6. Augusto Albuquerque - UFAL - Maceió31 de janeiro de 2010 às 10:45

    Parabéns pela publicação do livro e pelos excelentes textos que tens produzido.
    Um enorme e caloroso abraço,
    do irmão que muito lhe admira,
    Guto

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  7. Denise Lima - Suiça1 de março de 2010 às 11:17

    E eu venho aqui, avivar a sua memória e lembrar daquela época em que a Ilha de Santa Terezinha ficava inundada pelas águas, no inverno, e você se colocou ao nosso lado e botou literalmente a mão na massa, ou seja, o pé na lama e nos ajudou a limpar o canal da comunidade.

    Um grande abraço,

    Denise Lima
    (Antiga moradora da Ilha de Santa Terezinha)

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