sábado, 29 de maio de 2010

INCLUSÃO RELACIONAL

a
ALEXANDRE ARAGÃO

a
Com o pensamento político de Hobbes, o Estado nasce para garantir a vida de todos os humanos. Com Locke a vida recebe uma significação mais específica sob o conceito de propriedade. Na concepção deste autor, o indivíduo aparece como propriedade de si mesmo. A partir daí, tudo aquilo que o proprietário burguês venha a adquirir como resultado do seu trabalho passa a incorporar-se ao seu patrimônio pessoal.

Acontece que, como não tinham mais as garantias e proteção do sistema feudal, o trabalhador e o camponês assalariados ingleses foram obrigados a vender sua força de trabalho, cedendo ao proprietário burguês o direito de empregar essa força onde ele quisesse. Ao comprar a força de trabalho do operário e ao pagá-lo pelo seu valor, o proprietário burguês adquire como qualquer outro comprador o direito de consumir ou usar “a mercadoria comprada”. Assim, a força de trabalho de um homem é consumida ou usada fazendo-o trabalhar como se consome ou se usa uma máquina fazendo-a funcionar (MARX, 1982). Logicamente, o capitalismo exigiu o desenvolvimento de uma ideologia do trabalho na qual os homens considerassem a venda da força de trabalho como um direito e não como uma exploração. Portanto, é esse “livre trabalho”, que se aliena ao proprietário burguês, o defendido por Locke.

Consequentemente, se a vida (e por extensão tudo o que é direito) se vê pensada a partir da propriedade, governar significa proteger as propriedades individuais, perdendo-se de vista, em certo sentido, a vida comum que compete ao Estado proteger, como houvera sinalizado Hobbes.

Que conseqüência a concepção lockeana da centralidade da defesa da propriedade individual acarreta para a política?

Uma tendência a reduzir o direito público ao direito privado, uma tendência a reduzir política à economia. Mas a vida comum não se reduz apenas à dimensão econômica. A vida comum não é apenas um bem no sentido restrito que o capitalismo lhe atribui, uma mercadoria. A vida comum é um bem também, e principalmente, no sentido relacional, isto é, ético e moral: não apenas uma soma de propriedades privadas, mas um bem positivo que se contrapõe a algo que é visto como mal ou como mau (RIBEIRO, 2001).

A ética nasce das perguntas pelos critérios que tornem possível o enfrentamento da vida com dignidade. O ser humano é o ser que pode levantar a questão da validade sobre a sua práxis, sobre aquilo que deveria ser e não é, e sobre aquilo que é e não deveria ser. A ética emerge nesse contexto como reflexão crítica destinada a tematizar os critérios que permitam superar o mal e conquistar o bem à humanidade. Seu objetivo fundamental é estabelecer o(s) marco(s) no qual seja possível configurar o mundo humano enquanto espaço efetivo de liberdade e justiça para todos (OLIVEIRA, 2008).

Um dos temas mais caros para as ciências sociais na atualidade trata-se da inclusão relacional (BRUNI, 2005) de todas as pessoas e povos nas sociedades local e global, que se constrói a partir da solidariedade humana, tendo como base os valores fundamentais da liberdade, da justiça e da paz. O ser humano realiza-se não na solidão, mas nas relações interpessoais. E a solidariedade não é algo que se pode adquirir por decreto normativo; ao contrário, requer uma decisão de pessoas e grupos em sentirem-se responsáveis uns pelos outros.

O que seria, portanto, o bem público?

Na linguagem acadêmica, bem público trata-se do bem coletivamente produzido que não pode ser usufruído por um indivíduo sem beneficiar muitos ou mesmo todos. É público aquele bem que não sabemos ex ante a quem beneficiará.

Segundo Charles Taylor (apud. OLIVEIRA, 2006) tais bens são considerados bens porque correspondem às preferências dos indivíduos: são os indivíduos que pensam, preferem e agem, todas essas manifestações expressam, para além da subjetividade individual, um contexto mais amplo significativo a ela irredutível. Visível em instituições, papéis, regras, leis e costumes, a dimensão especificamente pública é, portanto, distinta do conjunto de preferências dos indivíduos isoladamente.

Além disso, como afirma Tocqueville (2005), é na vida comum que se pode exercer o respeito ao outro, a qualquer outro. Para o autor existe uma diferença fundamental entre individualismo e egoísmo. O egoísmo é incompatível com a democracia republicana por ser um vício tão antigo como o mundo, que nasce de um instinto cego, como amor apaixonado e exagerado de si mesmo (no caso lockeano, de sua propriedade), eliminando qualquer virtude e levando o homem a se preferir (e preferir a sua propriedade) a tudo mais. Já o individualismo, na concepção tocquevilleana, seria expressão de um sentimento refletido, que guia cada cidadão na direção de seus grupos identitários - como familiares e amigos - delegando a vida pública às instituições democráticas.

Assim, a garantia do respeito ao outro deve ocupar lugar central em uma sociedade democrática e republicana, a qualquer outro, com sua inclusão integral na vida da sociedade. E isso é atribuição não somente do Estado, mas da sociedade como um todo. Para Tocqueville não há grandes povos sem idéia dos direitos humanos; não há grandes homens sem respeito aos direitos humanos: pode-se dizer que não há sociedade, pois o que é uma reunião de seres racionais e inteligentes cujos únicos vínculos são o egoísmo e a competição?
A
REFERÊNCIAS
a
BRUNI, Luigino. Comunhão e as novas palavras em economia. Vargem Grande Paulista, SP: Editora Cidade Nova, 2005.
a
MARX, Karl. Para a crítica da economia política. Coleção Os Economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

OLIVEIRA, Isabel Assis Ribeiro de. O mal-estar contemporâneo na perspectiva de Charles Taylor. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 21 nº. 60 fevereiro/2006.
a
OLIVEIRA, Manfredo de Araújo. Desafios Éticos da Globalização. 3ª. ed. São Paulo: Paulinas, 2008.
a
RIBEIRO, Renato Janine. A República. São Paulo: Publifolha, 2001.
a
TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia Americana. 5ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Um comentário:

  1. Muito legal esse texto.
    O reducionismo do público ao privado, e a concepção patrimonialista que tomou a democracia representativa são de fato fatores impeditivos para o real desenvolvimento de uma democracia solidária.
    E acho que essa política da solidariedade poderia até ganhar viés mais sociológico e mesmo ciberdemocrático: a construção da democracia solidária deve perpassar pela dinâmica de uma sinergia de competências ciberdemocrática, que falaria Lévy, e de uma solidariedade orgânica, que falaria Durkheim.
    Até,
    Fernando Feitosa

    ResponderExcluir