terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Em busca da fraternidade na política

por Alexandre Aragão


Como sabemos, na Atenas antiga, apenas os cidadãos atenienses machos tinham o direito a participar do espaço público: mulheres, estrangeiros, escravos e adolescentes não eram livres em sua dimensão política, ou seja, não eram considerados cidadãos, conseqüentemente não participavam da vida pública na polis grega.


O mesmo também ocorria com a outra tradição fundadora do mundo ocidental, a judaico-cristã, de centralidade patriarcal, para a qual, na criação do mundo, hierarquicamente, primeiro foi criado o varão e somente depois a mulher era formada a partir da costela de Adão (Gn 2, 22). Outro exemplo, entre muitos, que reforça a idéia patriarcal do mundo na mentalidade judaica de então: somente os primogênitos masculinos eram consagrados a Deus (Lc 2, 23).

Essa forma elitista, hierárquica e machista de conceber o mundo condicionou a história da política ocidental.

Nos tempos atuais, na busca por uma nova política, uma das questões importantes que se coloca trata-se da descoberta do espaço público como espaço de todos e não apenas de alguns. Todos os membros da polis devem possuir cidadania plena, que lhes contemple a capacidade de influenciar nos rumos da vida em comunidade, com direito à voz e à ação. Portanto, é preciso que existam espaços reais que permitam a esses atores entrarem na cena pública, agirem e deliberarem sobre a construção do seu mundo.


De fato, os indivíduos serão livres quando puderem instituir uma sociedade que promova e proteja sua liberdade. Isso significa primordialmente poder influenciar as condições da própria existência, dar um significado para o bem comum e fazer as instituições sociais se adequarem a esse significado (Bauman, 2000).


A capacitação política exige a vontade e habilidade de se engajar com outras pessoas num esforço contínuo para transformar a convivência humana num ambiente hospitaleiro e amigável; requer a reconstrução da esfera pública [a ágora] onde os sujeitos possam engajar-se na busca contínua dos interesses comuns e na aplicação justa de direitos e deveres para todos, num processo de institucionalização de espaços e mecanismos de discussão coletiva, tendo em vista decidir o interesse da coletividade, desenvolvendo um senso de consciência e responsabilidade social. E a habilidade que mais necessitamos, para oferecer à esfera pública a chance de ressurreição, é a da interação com os outros, através da prática do diálogo, da compreensão mútua e de uma fraternidade social viva e madura, capaz de resolver os inevitáveis conflitos da vida compartilhada (Aragão, 2008).


Conseqüentemente, entendemos que a categoria da fraternidade passa a ser um elemento muito importante para a construção de uma nova política inclusiva de todos os membros da polis, na medida em que permite renovar e inovar nosso olhar para com outro, vendo nele um alguém que possui nossa mesma origem humana.


O vocábulo latino germánus significa “aqueles que possuem o mesmo gérmen, a mesma origem” (Houaiss, 2008). Deste vocábulo originam-se em espanhol, hermanos, e em português, irmãos. Nesta perspectiva, o fundamento da fraternidade política é universal, e não particular, pois se trata de olhar para cada ser humano, independente de etnia, sexo, credo, idade, partido, sindicato ou nação, como um igual em origem humana, como um irmão humano. Eu e o outro – todos os outros – surgimos da mesma fonte geradora: a humanidade. Pensar politicamente a fraternidade implica esforçar-nos por compreender sempre mais o elo que nos une a todos nós seres humanos, de todos os tempos e espaços. Somos todos filhos da Humanidade, filhos do Húmus. Possuímos em nós a fertilidade capaz de nos ligar uns aos outros como irmãos, numa dinâmica de superação dos conflitos a partir do olhar fraterno para com o outro. A própria Humanidade não é filha de si mesma, foi gerada a partir de um movimento cósmico de bilhões de anos de sua gestação. Portanto, a Humanidade não é só mãe, mas também filha de um processo vital que lhe é anterior e genitor.


Além de ser o fundamento sobre o qual se alicerça nosso olhar para o outro como um igual, a fraternidade apresenta-se como um método de se estabelecer a relação interpessoal através do qual se pode edificar o sentido da convivência social e política. Fraterno é também o modo afetuoso, terno, de relacionar-se com o outro. Diferentemente do modo rancoroso, odioso, individualista ou egocentrista pensado por alguns autores e colocado em prática na Modernidade.

Portanto, a partir da fraternidade, dizer humanidade significa afirmar a capacidade que temos, enquanto espécie humana, de amar os outros e de nos amarmos a nós mesmos, ou seja, de amar-nos reciprocamente, de trabalhar juntos uns pelos os outros.


Tzevetan Todorov (1996) nota que ao final de algumas semanas após o nascimento, dá-se um acontecimento especificamente humano: a criança tenta captar o olhar da mãe, não só para que ela venha a alimentá-la ou reconfortá-la, mas porque esse olhar fornece por si só um complemento indispensável: ele o confirma em sua existência. É o amor que funda a humanidade. O sujeito se constitui pela existência do outro: é porque um outro nos ama, nos fala e nos olha que nós existimos enquanto sujeitos humanos. Sem a presença dos outros nós não poderíamos aceder à humanidade.


Assim, a fraternidade política contempla uma universalidade, no sentido do amor dirigido a todos os membros da comunidade humana, uma vez que o homo fraternus é um homem-mundo, um homem-humanidade. E na medida em que toma consciência de sua cidadania local e planetária, percebe que a renovação da vida social depende do seu engajamento ao assumir a responsabilidade política que lhe compete, agindo na construção do mundo em comum.


A fraternidade contempla igualmente os princípios da responsabilidade e da diferença, na medida em que reconhece a existência do outro como um alguém único, diferente de mim, impulsionando-me a aceitar a sua existência e a tornar-me responsável por ela uma vez que a fraternidade não se baseia num valor de troca, mas num sentido de co-pertença a uma mesma comunidade humana que nos gera e alimenta a todos nós (Aragão, 2008b).


O professor Marcos Arruda (2006, p. 209) reflete que:

A chave para conseguir erguer esta ponte entre o pessoal e o social, entre o diverso e o uno, é que cada um respeite a subjetividade do outro como quer que a sua seja respeitada. Respeito e aceitação do outro, compreensão da alteridade como prolongamento e complementaridade de si próprio, busca cotidiana de superação da tensão entre o Eu e o Outro, tudo isso tem o nome simples de amor. Para articular criativamente diversidade e unanimidade, para realizar a democracia, a partilha, a racionalidade dirigida à satisfação das necessidades de todos (eqüidade), a transcendência (sacrifício), a consideração para com as outras gerações (sustentabilidade), a responsabilidade pelo humano e pelo natural, a solidariedade, a sociabilidade, a conviviabilidade, a irmandade... a chave é o amor.


Conseqüentemente é da natureza da fraternidade procurar colocar-se no lugar do outro para compreender seus sentimentos e dificuldades, antes de julgar suas atitudes, exercitando a capacidade de escuta – sem a qual é impossível a realização de uma comunicação fértil – e de percepção das dores e das potencialidades do outro, no esforço de “inculturação” para que a ação política seja fruto de um relacionamento entre irmãos, e não como um projeto imposto ou previamente estabelecido de alguns para com os outros.


A atitude de escuta e de diálogo gera uma dinâmica de reciprocidade fraterna na condução das ações, contribuindo para renovação da vida do tecido social e de cada um de seus membros. A máxima expressão da fraternidade está na reciprocidade que gera a comunhão. Não basta ser portador da fraternidade para com os outros; é preciso gerá-la ao redor, criar uma verdadeira cultura da fraternidade, que é uma cultura de participação, de solidariedade e de ternura, capaz de produzir uma democracia participativa, porque política é relação, é projeto comum a todos.


Mestre do espírito, Chiara Lubich atesta a eficácia da fraternidade como elemento indispensável para a construção dos vínculos sociais. Um fragmento do seu pensamento, apesar de haver um conteúdo de natureza mais espiritual, exprime com grande maestria o valor da relação fraterna humana:

Para acolhermos em nós o Tudo, temos de ser o nada. É preciso nos colocarmos diante de todos numa posição de aprender, porque temos de aprender realmente. E só o nada reúne o tudo em si e liga a si cada coisa em unidade. É preciso ser nada diante de cada irmão para unir a si o Ser presente nele (LUBICH, 2006).


A crise que estamos compartilhando de forma global impõe-nos repensar o mundo. E somente se formos capazes de um questionamento profundo acerca das possibilidades criativas – no campo da moralidade, da ética, da economia, da fé, da estética, da política, da técnica – de criar um novo mundo, colocando em prática esses caminhos experimentais de forma autocrítica, pedagógica, cuidadosa e cautelosa, cientes de suas limitações que implicam reconhecer erros e iniciar novos começos, teremos a esperança no surgimento de uma nova civilização mais humanizada pela vivência da relação fraterna, aberta e tolerante, respeitosa e solidária com o outro.


O autor é Arte-educador (UFPE), Especialista em Democracia Participativa (UFMG) e Mestrando em Políticas Públicas e Sociedade (UECE).


Referências

Aragão, Alexandre. Educação para uma cidadania ativa e solidária. Revista Cidade Nova. Vargem Grande Paulista, SP: Ed. Cidade Nova, 11/2008, p. 21.
_____________. A fraternidade como categoria política, a comunhão como categoria econômica: motores da construção de um paradigma intercultural-democrático-participativo global. Monografia do Curso de Especialização em Movimentos Sociais, Organizações Populares e Democracia Partipativa. UFMG. Belo Horizonte- MG, 2008b.

Arruda, Marcos. Tornar real o possível: a formação do ser humano integral: economia solidária, desenvolvimento e o futuro do trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

Bauman, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

Houaiss, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Endereço eletrônico: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=iirm%E3o&stype=k. Último acesso em 06/01/2008.

Lubich, Chiara. Coligação telefônica mundial aos membros do Movimento dos Focolares. Janeiro de 2006.

Todorov, Tzevetan. A vida em comum. Campinas, SP: Papirus Editora, 1996.

Um comentário:

  1. Caro Aragão,

    Desculpe-me se só agora me manifesto sobre o seu artigo enviado anexo ao e-mail sobre resposta.
    É que esperei para ler com mais calma, dada a densidade do artigo.
    Achei-o, como os outros, mas especialmente este, EXCELENTE!
    Muito obrigado pela partilha.
    Um grande e fraternal abraço.

    Mauricio.

    ResponderExcluir